Contos Populares Portuguezes/A bicha de sete cabeças

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XLIX


A BICHA DE SETE CABEÇAS


Era uma vez um homem que vivia com uma sua irmã em muito boa amizade; vem uma má d'uma vizinha e disse-lhe: «Você aqui cheiinha de trabalho e seu irmão para ali a comer na venda mais uma amiga.» «Não diga tal; isso é falso.» A vizinha veio para onde ao irmão e encontrou-o a roçar mato e disse-lhe: »Você aqui mortinho de trabalho e sua irmã em casa com um amigo a comer bons bocados.» O irmão chegou a casa; vestiu-se com o fato melhor, pegou n'uma espingarda ás costas e levou tres carneiros, tres broas de pão e tres vintens em dinheiro, que dinheiro não tinha mais. Pelo caminho pegou nos carneiros e no pão e deu tudo a um pobre que encontrou que era Nosso Senhor e elle lhe fez dos carneiros tres cães que filavam a tudo que encontravam. Era muito feliz na caça; todos os caçadores o chamavam para irem á caça com elle.

Um dia chegou a um monte e estava lá uma rapariga e assim que o viu disse-lhe: «Fuja, meu tio, que vem lá a bicha de sete cabeças e mata-o». «Que bicha será essa a que eu não posso atirar?» «É uma bicha que todos os caçadores teem andado a ver se a podem matar e não a matam e elle todos os dias come uma pessoa que vem ao monte, se lhe cae a sorte n'ella. Eu era filha do rei e caiu-me a sorte.» Elle disse: «Não tenho medo; eu hei de matal-a que trago aqui tres cães que filam a tudo.» N'isto chegou a bicha que a duas leguas de distancia já se ouvia rugir.

Chegou a bicha e elle assogou-lhe os cães e matou-a. Depois então a menina disse-lhe: «Venha commigo que ha de ter um grande premio de meu pae, que até disse que se algum homem matasse a bicha me dava a elle em casamento». «Eu agradeço, mas não quero». «Então venha commigo que meu pae dá-lhe um grande premio». «Eu não preciso de nada». Ella então tomou um annel d'ouro e deu-lh'o e elle acceitou-o.

O homem foi á bicha e cortou-lhe as linguas das sete cabeças e embrulhou-as no lenço, que metteu no bolso.

Isto constou por toda a parte e como o rei tinha dado a palavra que dava a filha a quem matasse a bicha, um preto que soube d'isto foi ao monte, cortou as cabeças á bicha e foi com ellas ao rei, dizendo que tinha morto a bicha e que lhe désse a filha. «Minha filha não tens remedio senão casar com o preto.» «Meu pae quem matou a bicha foi um homem muito bonito que tinha tres cães e disse que não queria o premio, nem casar commigo e até eu por lembrança lhe dei o meu annel». «Não tens remedio senão casar com o preto, pois, elle é quem trouxe as cabeças.»

N'isto estava o casamento preparado e o homem que matara a bicha andava no monte á caça com uns caçadores e estes contaram que a filha do rei ia casar com o preto, e disseram: «Que pena aquelle ladrão ir casar com aquella rapariga.» O homem: «Então que casamento é esse?» «Foi um preto que matou a bicha de sete cabeças e o rei tem de dar a filha, como promettera, a quem matasse a bicha. A pobre menina diz que não foi o preto que matou a bicha e todos os dias reza a Santo Antonio que lhe depare o homem que matou a bicha.»

O homem calou-se e ao outro dia caminhou e foi a casa do rei. Chegou lá e disse que queria fallar a sua magestade; o rei, como estava embebido com o casamento do preto, não lhe quiz fallar. O homem repetiu outra vez o pedido e disse que, se elle não lhe queria fallar, que ao menos lhe fallasse a princeza d'uma janella sacada, que elle ia por causa da bicha das sete cabeças. N'isto o rei que soube que o homem que ia lá a troco da bichinha, mandou-lhe dizer que lhe fallava e appareceu mail-a filha e esta apenas lhe botou os olhos disse: «Oh meu pae! aqui está o homem que matou a bicha.» Então disse o rei: «O que me contaes da bicha? Como é que aqui me appareceram as sete cabeças da bicha?» «Como a bicha tinha sete cabeças devia ter sete linguas e ellas aqui estão.» O rei desembrulhou o lenço e viu as linguas; foi ver as cabeças e não lhe viu nenhuma; mandou matar o preto e disse ao que matou a bicha: «Então ahi tendes a minha filha». «Real Senhor, eu agradeço muito; mas não quero casar». «Pois, emfim, pedi o que quizerdes que eu tudo vos dou». «Real Senhor, eu nada preciso que tenho aqui tres cães que faço quanto eu quero, entro onde quero, vou onde quero e acabo o que quero.» O rei então deu-lhe uma medalha e as maiores honras da sua côrte.

(Ourilhe).