Contos Populares Portuguezes/Esvintola

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XLII


ESVINTOLA


Era uma vez um rei que tinha tres filhas e depois foi chamado á guerra e deu um ramo a cada filha e disse: «Filhas eu vou para a guerra, e se vós procederdes bem, estes ramos que vos entrego, entregar-m'os-heis frescos como eu vol-os dou; e se vós tiverdes alguma desordem, eu logo o seu, porque os ramos seccam.» Caminhou o rei para a guerra. Havia um conde ao pé do palacio e tractou logo de conversar a filha mais velha; seccou-se o ramo que o pae lhe tinha entregado. N'isto começou a namorar a chegante á mais velha e o ramo d'ella seccou tambem. Ficou a mais nova, e como as outras lhe tinham raiva por ella ter o ramo como o pae lh'o deixára, tractaram de fazer que o conde a seduzisse tambem e disseram-lhe um dia se ella ia ao pomar do conde buscar umas alfaces e ella disse: «Eu encontro lá o conde; não vou.» — «Olha vae; é a hora do descanço; elle não está lá.» Ellas tinham justo com elle as horas marcadas que devia estar á espera no pomar. Ella foi e elle estava lá; lançou-lhe a mão ao vestido; ella puxou, rasgou-o e foi-se embora.

Ao outro dia justaram outra vez com elle de lá estar e mandaram a irmã mais nova lá buscar um limão. Ella foi e o conde botou-lhe a mão e caçou-a. Elle disse-lhe: — «Venha cá, menina, vamos a conversar um bocado.» E sentaram-se e ella disse-lhe: — «Olhe que seria bom estar um bocadinho ao fresco com os pés descalços; quer que eu lhe tire as botas?» — «Eu quero tudo o que a menina quiser.» Ella tirou-lhe as botas, que eram de montar, até ao meio da perna e fugiu; elle que ia a correr atraz d'ella, não poude andar e caiu.[1]

Chegou a casa e disse ás irmãs: — «Tomae, que eu não torno lá.» — «E porque não has de tornar?» — «Porque lá estava o conde e botou-me a mão, mas eu paguei-lh'a; tirei-lhe as botas até ao meio da perna e elle caiu no canello.» — «És tola; elle é muito boa pessoa.» — «Pois provae lá a bondade d'elle, que eu a não quero provar.»

Tornaram ellas a pedir-lhe para ella lá lhes ir buscar um cacho d'uvas. — «Não vou lá, que está lá o conde.» — «Não está; não é hora d'elle lá estar.» Ella foi, chegou lá; o conde caçou-a e disse-lhe: — «Menina, já me fez duas desfeitas, mas agora não me faz outra.» — «Eu não lhe diz desfeita nenhuma; isto em mim foi a brincar; eu gosto muito da sua pessoa; até se quiser vamos descançar.» Elle disse: — «Eu acceito; veja onde a menina quer.» — «Ha-de ser ali ao pé d'aquelle poço; mas olhe que eu da banda do poço não fico que eu sou muito medrosa.» O conde ia a deitar-se da banda do poço e ella empurrou-o e botou-o abaixo.

Foi-se embora e disse ás irmãs: «Tomae lá as uvas; e eu agora sempre arrumei com elle.» — «Tu que lhe fizeste?» — «Botei-o ao tanque do quintal.»

As irmãs mais velhas foram tractar de fazer tirar o conde do poço. Elle estava muito doente com a queda e a filha mais nova passou-lhe á porta com um letreiro no braço que dizia: medico milagroso. Como o conde estava muito doente mandaram-n'a ir dentro e ella disse que lhe dava remedio, mas que era necessario que saisse a familia toda do quarto e que ainda que lá ouvissem gritos dentro que não fossem lá que era ella a saral-o. Levava uma corda e disse ao conde: — «Lembras-te quanto me puxaste pelo vestido que m'o rasgaste?» E deu-lhe uma tósa. — «Lembras-te quanto te eu tirei as botas?» Outra tósa. — «Lembras-te, diabo, quando te eu deitei ao poço?» E deu-lhe outra tósa. No fim saiu e disse ás pessoas da familia: — «Eu cuido que elle já ficou melhor, mas eu hei de voltar aqui á tarde e dar-lhe outro remedio que elle ha de acabar de sarar.» E o conde gritou lá de dentro: — «Não venha, não venha, que eu já estou curado; paguem-lhe e mandem-n'o embora. Pagaram ao falso medico e elle foi-se embora.

Por fim o conde melhorou e o rei voltou da guerra; chegou a casa e disse-lhe a filha mais nova: — «Meu par, quer os ramos juntos ou cada um por sua vez?» — «Quero-os cada um por sua vez, como eu os dei.» Ella mostrou o seu ramo ao pae e depois passou-o ás outras que cada uma por sua vez o mostraram ao pae, que julgou vêr os tres ramos e ficou muito contente por elles estarem verdes.

O conde foi pedir ao rei a filha mais nova e o rei disse-lhe que sim; disse-o á filha e ella respondeu: — «Não, meu pae, não o quero.» — «Filha, dei a minha palavra: tu has de casar com elle. — «Meu pae, não quero.» Por fim não teve remedio senão casar com o conde; mas emquanto esteve o ajuntamento dos convidados a beber e a jogar e a dançar, ella vae ao quarto em que havia de dormir e pegou n'um ôdre de mel e pôl-o na cama e apertou uma parte d'elle com uma corda fingindo assim uma cabeça e metteu-se debaixo da cama, segurando a ponta da corda. Elle veiu-se deitar. Chegou dentro do quarto e fechou a porta e disse: — «Ora, D. Esvintola, hoje é o teu dia derradeiro. Lembras-te de quando eu te rasguei o vestido?» E deu com a espada no ôdre, suppondo ser ella, e Esvintola por baixo puxava pela corda para assenar que sim, que se lembrava. — «Lembras-te de quando me descalçaste as botas?» E ella assenava que se lembrava e elle no ôdre com a espada. — «Lembras-te quando me botaste ao poço? E ella assenava que sim que se lembrava e elle dava-lhe com a espada. — «Lembra-te a ti, diabo, quando me déste a cóça?» E ella assenava que sim e elle deu com toda a força no ôdre e o mel saltou-lhe aos beiços e elles exclamou:

«Ai! D. Esvintola,
Tão brava na vida
E tão doce na morte!»

E ella saiu de debaixo da cama e disse: — «Ai! meu marido, aqui estou viva; perdôa-me que se eu fosse tão tola não estava agora aqui.»

(Ourilhe.)




Notas do autor[editar]

  1. Caiu porque lhe embaraçavam os pés os canos das botas.