Contos Populares Portuguezes/O colhereiro

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XXVI


O COLHEREIRO


Houve n'outros tempos um colhereiro que tinha por costume ir a uma mata muito longe da sua casa para apanhar madeira para fazer colheres.

Certo dia que elle estava cortando um pedaço a um castanheiro muito antigo, notou que no tronco havia um grande buraco. Cheio de curiosidade, o colhereiro, quiz ver o que havia dentro, mas mal tinha entrado quando lhe appareceu um mouro encantado; e com voz medonha lhe disse: «Já que te atreveste a penetrar no meu palacio, ordeno-te que me tragas aqui a primeira coisa que te apparecer ao chegares a tua casa, e se não cumprires fica certo que morrerás dentro em tres dias.» Foi-se o colhereiro para sua casa, aonde tinha tres filhas muito lindas, e uma cadellinha que sempre o vinha esperar á entrada da porta.

N'esse dia, porém, contra o seu costume quem lhe appareceu á entrada da porta foi a filha mais velha. Então elle, chorando, contou á filha tudo o que lhe tinha succedido, e pediu-lhe que fosse ella, senão que o mouro o mataria e ficava ella e as irmãs sem amparo.

A filha aprontou-se logo para ir e depois de ter abraçado as irmãs partiu para o palacio do mouro. Deixamos agora o colhereiro com as duas filhas, e vamos ver o que faz o mouro á outra filha. Logo que ella chegou deu-lhe as chaves de todas as salas do palacio, e deitou-lhe ao pescoço um cordão de ouro fino com a chave d'uma sala, prohibindo-a de entrar n'ella, pois se lá fosse morreria. Um dia em que o mouro tinha saido a infeliz rapariga cheia de curiosidade quiz ver o que estava na tal sala, entrou e viu muita gente com as cabeças cortadas; ella, toda horrorisada fechou a porta e poz outra vez a chave ao pescoço; mas o mouro quando voltou ao palacio foi ver a dita chave e viu que ella tinha uma mancha de sangue. Então, sem dar uma só palavra, cortou a cabeça á pobre rapariga, e foi deital-a na mesma sala aonde ella tinha entrado. Voltando ao colhereiro sabereis que elle foi ter com o mouro para que lhe désse noticias da filha, e elle lhe respondeu:» Vai buscar a tua filha do meio para vir fazer companhia á que cá está, pois ella anda muito triste com saudades d'ella. Trouxe o colhereiro a filha, e a ella succedeu-lhe o mesmo que tinha succedido á sua irmã. Restava ao colhereiro só a filha mais nova, mas como o mouro lhe ordenasse que lh'a levasse tambem, levou-lh'a. Logo que ella chegou, o mouro fez-lhe as mesmas recommendações que tinha feito ás outras irmãs.

A rapariga entrou na sala dos mortos e viu as irmãs degoladas, mas notou que ellas ainda estavam quentes e teve desejos de as tornar á vida. Na mesma sala havia um armario contendo pucarinhos com o sangue dos mortos; então ella vendo dois pucarinhos com o nome das irmãs, pegou nas cabeças d'ellas, juntou-lh'as aos corpos e despejou-lhe o sangue no pescoço; e logo as irmãs tornaram á vida. Depois recommendou-lhe que não fallassem que ella havia de arranjar meio de as mandar para casa do pae. As irmãs recommendaram-lhe que limpasse a chave para o mouro não saber o que ella tinha feito. Voltou o mouro a casa e de nada desconfiou, e começou então a amar muito a rapariga a pontos de se deixar dominar por ella. Um dia pediu-lhe ella que fosse elle levar uma barrica de assucar ao seu pae, pois estava muito pobre; o mouro disse logo que sim. Ella então metteu uma das irmãs dentro da barrica, e disse ao mouro que fosse depressa, que não parasse no caminho que ella o ia ver do mirante.

O mouro partiu, e ella ordenou á irmã que fosse dizendo pelo caminho estas palavras: «Eu bem te vejo,» para o mouro julgar que era ella que lhe falava do mirante. A rapariga dizia: «Eu bem te vejo, eu bem te vejo,» e o mouro respondia: «lindos olhos que tanto vedes; correr, correr...,» e corria, corria até que chegou a casa do pae; largou a barrica e voltou para o palacio. Passado dias quiz a rapariga mandar outra barrica ao pae, e da mesma fórma mandou a outra irmã. Restava só ella; ora isso era mais difficil; mas como era muito esperta, de que se havia de lembrar! Fez uma boneca de palha, vestiu-lhe os seus vestidos, pôl-a no mirante; metteu-se na barrica, depois de ter dito ao mouro, que fosse depressa, que ella ia vel-o do mirante. Pelo caminho foi sempre dizendo: «Eu bem te vejo, eu bem te vejo.» «Lindos olhos que tanto vêdes; correr, correr.» Assim voltaram as filhas todas para casa do seu pae; e o mouro voltou ao palacio e foi-se abraçar á boneca de palha julgando ser a rapariga, e caiu do mirante abaixo morrendo logo rebentado; o palacio e o castanheiro desapareceram, pois tudo era obra de encanto.

(Coimbra.)