Contos Populares do Brazil/O Sargento verde
Havia um homem rico que tinha uma filha muito formosa; appareceu uma vez um moço tambem muito bonito que quiz casar com ella. Contractaram o casamento. Mas Nossa Senhora, que era madrinha da noiva, lhe appareceu e disse: — «Minha filha, tu vaes te casar com o cão; quando fôr no dia do casamento, depois da festa acabada, teu marido ha de querer te levar para casa d'elle; tu, então, deves dizer a teu pai que só queres ir no cavallo mais magro e feio de todos, e quando chegares a um logar da estrada onde faz cruz, teu marido ha de tomar pela esquerda, tu deves tomar pela direita e mostrar-lhe o teu rozario para elle estourar e sumir-se para o inferno.»[1] Passou-se. Quando foi no dia do casamento houve muito pagode e divertimento; mas a moça sempre triste.
Quando chegou a hora da partida veiu um cavallo muito bonito e muito bem arreiado para a moça se montar. Ella disse ao pai que não queria aquelle, e só o mais feio e magro. O pai se espantou muito e não quiz concordar; a final foi obrigado a fazer os gostos da filha. Partiram os noivos; quando chegaram longe da casa havia no caminho uma encruzilhada; ahi o cão quiz botar a moça adiante pelo lado esquerdo. Então a moça disse: «Vá o senhor adiante que sabe do caminho de sua casa e não eu que nunca lá fui.» O cão ahi se zangou; mas a moça tomou pela estrada da direita, mostrando-lhe o rozario. O cão estourou, e foi cahir nas profundas, e a moça seguiu a toda a bride.[2] Lá mais adiante, ella cortou os cabellos e vestiu-se de homem, toda de verde. Chegando a um reino, foi servir na guarda do rei com o posto de sargento. A gente toda a chamava de Sargento verde. O rei tomou-lhe muita amizade, tanto que quasi todas as tardes o convidava para ir passear com elle no jardim. A rainha ficou, com poucos dias, apaixonada por Sargento verde. Uma tarde, depois de jantar, tendo-o o rei convidado para passear no jardim, ao passar elle pela rainha, ella lhe disse: «Olha, Sargento verde, que lindos olhos, e que lindo corpo para divertir comtigo!» O Sargento respondeu: «Não sou falso a meu rei.» A rainha despeitada levantou-lhe um aleive ao rei: «Saberá vossa real magestade que Sargento verde disse que se atrevia a subir e a descer as escadas de palacio montado no seu cavallo a toda a bride, dançando e atirando para o ár tres limas e todas tres cahirem n'um copo.» O rei ficou muito admirado e mandou chamar Sargento verde, e contou-lhe o caso. O Sargento respondeu: «Saberá rei meu senhor que eu não disse tal; mas como a rainha minha senhora disse, eu vou fazer.» Sahiu muito triste, e foi ter com o seu cavallo e lhe contou tudo; o cavallo disse que elle não se importasse, que no dia marcado fosse sem medo.
No dia marcado Sargento verde apresentou-se e andou pelas escadas a cavallo, correndo para cima e para baixo, dançando e atirando para o ár tres limas e aparando todas tres n'um copo. Houve muilo viva, e a rainha ficou desesperada. Passaram-se dias; indo o rei passear de novo com Sargento verde no jardim, ao passar elle pela rainha, ella lhe disse: «Olha que lindos olhos e que lindo corpo para divertir comtigo!» — «Não sou falso a meu rei,» foi o que elle disse. A rainha, despeitada ainda mais, levantou-lhe outro aleive, que foi: «Saberá vossa real magestade que Sargento verde disse que era capaz de plantar na hora do almoço uma bananeira no chão do palacio, e, quando fosse na hora do jantar, estar ella deitando cachos com bananas maduras.» O rei mandou chamal-o e perguntou-lhe se elle se atrevia a tanto, e elle deu egual resposta á primeira e sahiu vexado e foi ter com o seu cavallo, que o animou muito. No dia seguinte, na hora do almoço do rei, Sargento verde levou um filho da bananeira, que na hora do jantar estava cahindo de carregado de bananas madurinhas. Houve muito viva e muita saude, e a rainha ficou ainda mais desesperada. Passados dias houve novo passeio do rei e do Sargento no jardim, e novo offerecimento da rainha, e egual resposta do moço. A rainha àrmou-lhe novo aleive, que foi: «Saberá vossa real magestade que Sargento verde disse que se animava a andar montado no seu cavallo no largo do palacio, por cima de duas fileiras de ovos sem quebrar um só.» (Segue-se outra scena egual ás precedentes). No dia seguinte o Sargento verde caminhou diante de muita gente, por cima das fileiras de ovos sem quebrar nenhum. Houve muita festa. A rainha ainda mais apaixonada ficou. Passados dias ella armou-lhe novo falso, que foi: «Saberá vossa real magestade que Sargento verde disse que se atrevia a ir buscar no fundo do mar a sua irmã a princeza encantada.» Chamado pelo rei, Sargento ficou triste; mas não negou, e foi fallar com o seu cavallo que lhe disse: «Não tem nada; muna-se minha senhora de um garrafão de azeite doce, de um punhado de sal e de uma carta de alfinetes; monte-se em mim, chegue na praia, com a sua espada corte as ondeas[3] em cruz, que as aguas se hão de abrir; entre, bote a moça de garupa, e largue para traz a toda a pressa e bote sentido nas tres palavras que a moça disser no caminho. Tenha cuidado no bicho feroz que guarda a princeza, porque elle ha de perseguil-a atraz; largue-lhe o sal e a carta de alfinetes.» Chegado o dia, Sargento preparou-se e se pôz a caminho montado no seu cavallo, fez tudo como lhe disse o cavallo, servindo-se da espada para abrir, e do azeite para clarear o mar. Tirou a moça e largou-se para traz a toda a bride. Ao sahir do mar a moça disse: «Já!» e o Sargento tomou nota. Estando um pouco adiante olhou para traz e avistou o bicho que vinha damnado correndo, largou o sal e logo gerou-se no mundo um nevoeiro tamanho que o bicho não pôde romper. Continuou; adiante a moça encantada disse: «Bella!» e elle tomou nota ainda. Olhando para traz, lá vinha o bicho outra vez; largou a carta de alfinetes e gerou-se uma matta serrada de espinhos e a fera não pôde passar. Já perto de palacio a moça disse: «Tudo!» elle de novo tomou sentido, e chegaram ao fim da viagem, havendo muita alegria e muitas festas, e a rainha ainda mais perdida ficou pelo Sargento verde.
No emtanto a princeza encantada não fallava; estava muda. Com pouco a rainha levantou um quinto aleive ao Sargento, e foi dizer ao rei que elle se atrevia, segundo dissera, a dar falla á muda. O Sargento foi, como sempre, ter com o seu cavallo, que lhe disse: «Não tenha medo; na hora do almoço dê com uma corda na moça, até ella dizer qual foi a primeira palavra que disse ao sahir do mar, e o que ella quer dizer; no jantar faça o mesmo,e indague pela segunda; na ceia o mesmo e indague pela terceira, e a princeza ficará fallando.»
Assim fez elle. No almoço do dia seguinte metteu a corda na princeza com as palavras: «Falle, moça! qual a palavra que disse ao sahir do mar?» A moça calada, e elle a dar-lhe, até que ella disse: «Já!» — «O que quer dizer?» A muito custo ella disse: «Já — quer dizer — já estou livre, de tantos trabalhos.» No jantar houve o mesmo, e a princeza disse: «Bella! — quer dizer — são duas donzellas, ella e o Sargento verde que se chama Lucinda.» Na ceia o mesmo, e ella disse a ultima palavra, que quer dizer: «Tudo! si Lucinda fosse homem, ha muito el-rei, meu irmão, seria cornudo.» Houve muito espanto de tudo aquillo; o Sargento verde voltou aos trajos de moça; a princeza ainda ficou no palacio e fallando, e o cavallo do Sargento desencantou-se n'um lindo moço. Este se casou com a princeza desencantada; o rei se casou com Lucinda, porque a rainha morreu amarrada em dous burros bravos, por ordem de seu marido.