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Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A donzella recatada

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153. A DONZELLA RECATADA

Em uma populosa villa havia uma dona honrada que tinha uma filha muito virtuosa, sesuda, recolhida, e amiga de seu trabalho, que per elle alcançava com que honestamente se mantinham ambas das portas a dentro, mui limpamente tratadas. Fazendo-se uma voda de uma sua parenta, assi se passaram mais de quatro mezes em recados até que a noiva lhe veiu a casa rogar que fosse um dia á sua, o que a moça acceitou por comprazer com a parenta; e chegando a noite, por ser menos vista, com um irmão mancebo que áquelle tempo viera de fóra da terra, saiu de sua casa para ir a casa da parenta. Na rua do proprio caminho por onde haviam de ir, estava um eschola de dança, a que o mancebo era inclinado, e a estas horas dançavam, e ao passar pela porta da eschola fez uma pequena detença; mas a donzella, que não tinha sua imaginação senão no caminho que levava, andava pela rua tão baixo o rosto que o não erguia. Foi vista por um nobre mancebo, que a seguiu, e poz-se-lhe diante fingindo ser seu escudeiro, encaminhou-a pera sua casa; e ella, quando ergueu o rosto, crendo ser seu irmão lhe disse:

— Tão longe é isto!

Elle ainda que entendeu, não lhe respondeu nada; e dissimulado se metteu em sua propria casa, dizendo:

— Aqui é.

E como a teve bem dentro, fez cerrar a porta, e mostrou-se-lhe, e descobriu-se a ella quem era. Grandes promessas, que lhe fazia, e ricas joias que lhe dava, com palavras amorosas e meigas, n’esta casta e honesta donzella não fizeram abalo. Elle que a viu tão determinada, a levou a um jardim, logar onde ainda que bradassem não podesse ser ouvida; e lhe ia tirando das roupas que levava vestidas; por lhe ganhar a vontade, largou-a de si um pequeno espaço, ficando-lhe porém o cabo do trançado na mão. A donzella, tanto que se viu fóra de suas mãos, tirou com diligencia o garavim da cabeça, e mettendo-o no tronco de uma arvore, se foi até chegar ao pé do muro do jardim, e subindo na parede, sem temer a queda, se deixou ir abaixo em camisa e em cabello. E assi se achou na rua a tempo que já havia muito que era achada de menos do irmão, e d’elle e da mãe buscada por todas as partes. E quando sua mãe a viu, e ella viu sua mãe, parecia que ambas ressuscitavam, e logo quietamente coberta com a capa e sombreiro do irmão se foram para casa. O fidalgo, tanto que lhe pareceu que tardava, ainda que tinha o trançado na mão, porque não lhe respondia chamando-a, foi para ella cuidando que lançava mão de sua pessoa; achou-se abraçado com o tronco da arvore onde o garavim estava posto, e sintindo o engano, e como não sabia quem era, nem cuja filha, se recolheu em sua casa triste, então lhe estava mais affeiçoado que d’antes. E com desejo de a vêr e saber quem era, e havel-a por molher, cahiu em cama doente de imaginação, e tanto esteve assi que se secava e houvera de morrer, senão dera conta do caso a uma discreta dona que o criára, a qual entendido tudo o que passara, tomou o vestido, que foi tirado da moça, e foi-se pela villa dizendo que o achara, e se alguma pessoa o conhecesse e mostrasse como era seu lh’o daria. E isto fazia por saber quem era aquella donzella; o que a boa dona fez com tanta sagacidade, que por enculcas veiu á propria casa d’onde o fato era. A dona foi dizer ao fidalgo a casa e a pessoa que era; e elle, visto e ouvido o que dizia d’aquella que já tinha feito senhora de si na vontade, folgou muito e aguardou tempo que soube que estava vestida com o proprio vestido, e então para melhor se affirmar se era ella, se subiu pela escada acima, e de supito deu com a mãe, e com ella e seu irmão, que estavam descuidados de tal vinda. E o fidalgo tanto que a viu logo conheceu ser aquella por quem passava os trabalhos que passou desde que ficou sem ella no jardim, e com muita cortezia lhe disse:

— Senhora, desde agora vos fico que nunca haverei outra molher senão a vós.

A donzella, vergonhosa de ouvir, e a este tempo se desbarretou e queria pedir-lh’o em giolhos, se lhe humilhou muito e tomandoo polas mãos o fez erguer. Depois se correram os banhos, e com muito contentamento de ambos viveram sempre; e por esta donzella se disse o rifão:


A moça virtuosa

Deus a espósa.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte I, conto 4.º)