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Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Cravo, rosa e jasmim

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8. CRAVO, ROSA E JASMIM

Uma mulher tinha tres filhas; indo a mais velha passeiar a uma ribeira, viu dentro da agua um cravo, debruçou-se para apanhal-o, e ella desappareceu. No dia seguinte succedeu o mesmo a outra irmã, porque viu dentro da ribeira uma rosa. Por fim, a mais nova tambem desappareceu, por querer apanhar um jasmim. A mãe das trez raparigas ficou muito triste, e chorou, chorou, até que tendo um filho, este quando se achou grande, perguntou á mãe porque é que chorava tanto. A mãe contou-lhe como é que ficára sem as suas tres filhas.

— Pois dê-me minha mãe a sua benção, que eu vou por esse mundo em procura d’ellas.

Foi. No caminho encontrou trez rapazes em uma grande guerreia. Chegou ao pé d’elles… «Olá, que é isso?»

Um d’elles respondeu:

— Oh, senhor; meu pae tinha umas botas, um chapeu e uma chave, que nos deixou. As botas em a gente as calçando, e lhe diga: Botas, põe-me em qualquer banda, é que se apparece onde se quer; a chave abre todas as portas; e o chapeu em se pondo na cabeça, ninguem mais nos vê. O nosso irmão mais velho quer ficar com as tres cousas para si, e nós queremos que se repartam á sorte.

— Isso arranja-se bem, disse o rapaz querendo harmonisal-os. Eu atiro esta pedra para bem longe, e o que primeiro a apanhar é que hade ficar com as tres cousas.

Assentaram n’isso; e quando os tres irmãos corriam atraz da pedra, o rapaz calçou as botas, e disse:

— Botas, levem-me ao logar em que está minha irmã mais velha.

Achou-se logo n’uma montanha escarpada onde estava um grande castello, fechado com grossos cadeados. Metteu a chave e todas as portas se lhe abriram; andou por salas e corredores, até que deu com uma senhora linda e bem vestida que estava muito alegre, mas gritou com espanto:

— Senhor! como é que pôde entrar aqui?

O rapaz disse-lhe que era seu irmão, e contou-lhe como é que tinha podido chegar ali. Ella tambem lhe contou a sua felicidade, mas que o unico desgosto que tinha era não poder o seu marido quebrar o encanto em que andava, porque sempre lhe tinha ouvido dizer que só se desencantaria quando morresse um homem que tinha o condão de ser eterno.

Conversaram bastante, e por fim a senhora pediu-lhe para que se fosse embora, porque podia vir o marido e fazer-lhe mal. O irmão disse que não tivesse cuidado por que trazia comsigo um chapeu, que em o pondo na cabeça ninguem mais o via. De repente abriu-se a porta, e appareceu um grande passaro, mas nada viu, porque o rapaz quando sentiu barulho pôz logo o chapeu. A senhora foi buscar uma grande bacia dourada, e o passaro metteu-se dentro transformando-se em um mancebo formoso. Em seguida olhou para a mulher, e exclamou:

— Aqui esteve gente! — Ella ainda negou, mas viu-se obrigada a confessar tudo.

— Pois se é teu irmão, para que o deixaste ir embora ? Não sabias que isso era motivo para eu o estimar? Se cá tornar, dize-lhe para ficar, que o quero conhecer.

O rapaz tirou o chapeu, e veiu comprimentar o cunhado, que o abraçou muito. Na despedida deu-lhe uma penna, dizendo:

— Quando te vires em alguma afflicção, se disseres: Valha-me aqui o Rei dos Passaros! hade-te sair tudo como quizeres.

Foi-se o rapaz embora, porque disse ás botas que o levassem onde estava sua irmã do meio. Aconteceram pouco mais ou menos as mesmas cousas; á despedida o cunhado deu-lhe uma escama:

— Quando te vires em alguma afflicção dize: Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Até que chegou tambem a casa da sua irmã mais nova; achou-a em uma caverna escura, com grossas grades de ferro; foi ao som das lagrimas e soluços dar com ella muito magra, que assim que o viu, gritou:

— Quem quer que vós sois, tirae-me d’aqui para fóra.

Elle então deu-se a conhecer, e contou-lhe como achou as outras duas irmãs muito felizes, mas só com o desgosto de não poderem os seus maridos desencantar-se. A irmã mais nova contou-lhe como estava com um velho hediondo, um monstro que queria casar com ella por força, e que a tinha ali preza por não lhe querer fazer a vontade. Todos os dias o velho monstro vinha vel-a para lhe perguutar se já estaria resolvida a tomal-o como marido; e que ella se lembrasse que nunca mais tinha liberdade, porque elle era eterno.

Assim que o irmão ouviu isto lembrou-se do encantamento dos dois cunhados, e pensou em apanhar o segredo por que elle era eterno; aconselhou á irmã que fizesse a promessa de casar com o velho, se lhe dissesse o que é que o fazia eterno.

De repente o chão estremeceu todo, sentiu-se como um grande furacão, e entrou o velho, que chegou ao pé da menina e lhe perguntou:

— Ainda não estás resolvida a casar commigo? Tens de chorar todo o tempo que o mundo fôr mundo, porque eu sou eterno, e quero casar comtigo.

— Pois casarei comtigo, disse ella, se me disseres o que é que faz que nunca morras?

O velho desatou ás gargalhadas:

— Ah, ah, ah! pensas que me poderias matar! Só se houvesse quem fosse ao fundo do mar buscar um caixão de ferro, que tem dentro uma pomba branca, que hade pôr um ovo, e depois trouxesse aqui esse ovo, e m’o quebrasse na testa.

E tornou a rir-se na certeza de que não havia ninguem que fosse ao fundo do mar, nem fosse capaz de achar onde estava o caixão, nem mesmo de o abrir, e tudo o mais que se sabe.

— Agora tens de casar commigo, porque já te descobri o meu segredo.

A menina pediu ainda uma demora de tres dias, e o velho foi-se embora muito contente. O irmão disse para ella, que tivesse esperança, que dentro em tres dias estaria livre. Calçou as botas e achou-se á borda do mar; pegou na escama que lhe deu o cunhado e disse:

— Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Appareceu logo o cunhado, muito satisfeito; e assim que ouviu o acontecido mandou vir á sua presença todos os peixes; o ultimo que chegou foi uma sardinhinha, que se desculpou por se ter demorado porque embicou n’um caixão de ferro que está no fundo do mar. O rei dos peixes deu ordem aos maiores que fossem buscar o caixão ao fundo do mar. Trouxeram-n’o. O rapaz assim que o viu, disse á chave:

— Chave, abre-me este caixão.

O caixão abriu-se, mas apesar de todas as cautellas, fugiu-lhe de dentro uma pomba branca.

Disse então o rapaz, para a penna:

— Valha-me aqui o Rei dos Passaros.

Appareceu-lhe o cunhado, para saber o que elle queria, e assim que o soube mandou vir á sua presença todas as aves. Vieram todas e só faltava uma pomba, que veiu por ultimo desculpando-se, que lhe tinha chegado ao seu agulheiro uma antiga amiga que estava ha muitos annos preza, e que lhe tinha estado a arranjar alguma cousa de comer. O Rei dos Passaros disse que ensinasse ao rapaz onde é que era o ninho onde a pomba estava, e lá foram, e o rapaz apanhou o ovo que ella já tinha posto e disse ás botas que o levassem á caverna onde estava a irmã mais moça. Era já o terceiro dia, e o velho vinha pedir o cumprimento da palavra da menina; ella, que já estava aconselhada pelo irmão, disse que se reclinasse no seu regaço; mal o apanhou deitado, com toda a certeza quebrou-lhe o ovo na testa, e o monstro dando um grande berro, morreu. Os outros dois cunhados quebraram ao mesmo tempo o encantamento, vieram ali ter, e foram com as suas mulheres, que ficaram princezas, visitar a sogra, que viu o seu choro tornado em alegria, na companhia da filha mais nova, que lhe trouxe todos os thesouros que o monstro tinha ajuntado na caverna.

(Algarve.)


Notas

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8. Cravo, Rosa e Jasmim. — Apparecem outras versões d'este conto, nos Contos populares portuguezes, n.º XVI; e nos Contos populares do Brazil, colligidos pelo Dr. Sylvio Romero, com o titulo O Bicho Manjaléo. (Rev. Brazileira, tomo VI, p. 120.) Nos Contes populaires de la Grande Bretagne, de Brueyre, p. 81 e 119. Nos Old Deccan Days, de Miss Frere, o conto do Punchkin versa sobre este mesmo assumpto de um Mago que encanta todos, e cuja vida estava resguardada sendo impossivel descobrir esse talisman: é uma criança que livra sua mãe e sete tios, principes.