Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Frei João sem cuidados
O rei ouvia sempre fallar em Frei João Sem Cuidados como um homem que não se affligia com coisa nenhuma d’este mundo.
— Deixa-te estar, que eu é que te heide metter em trabalhos.
Mandou-o chamar á sua presença, e disse-lhe:
— Vou dar-te uma adivinha, e se dentro em trez dias me não souberes responder, mando-te matar. Quero que me digas:
Quanto pesa a lua?
Quanta agua tem o mar?
O que é que eu penso?
Frei João Sem Cuidados saiu do palacio bastante atrapalhado, pensando na resposta que havia de dar áquellas perguntas. O seu moleiro encontrou-o no caminho, e lá estranhou de vêr Frei João Sem Cuidados, de cabeça baixa e macambuzio.
— Olá, senhor Frei João Sem Cuidados, então o que é isso, que o vejo tão triste?
— É que o rei disse-me que me mandava matar, se dentro em trez dias eu lhe não respondesse a estas perguntas: — Quanto pesa a lua? Quanta agua tem o mar? E o que é que elle pensa?
O moleiro pôz-se a rir, e disse-lhe que não tivesse cuidado, que lhe emprestasse o habito de frade, que elle iria disfarçado e havia de dar boas respostas ao rei.
Passados os trez dias, o moleiro vestido de frade, foi pedir audiencia ao rei. O rei perguntou-lhe:
— Então, quanto pesa a lua?
— Saberá vossa magestade que não póde pesar mais do que um arratel, porque todos dizem que ella tem quatro quartos.
— É verdade. E agora: Quanta agua tem o mar?
Respondeu o moleiro:
— Isso é muito facil de saber; mas como vossa magestade só quiz saber da agua do mar, é preciso que primeiro mande tapar todos os rios, porque sem isso nada feito.
O rei achou bem respondido; mas zangado por vêr que Frei João se escapava das difficuldades, tornou:
— Agora, se não souberes o que é que eu penso, mando-te matar!
O moleiro respondeu:
— Ora, vossa magestade pensa que está fallando com Frei João Sem Cuidados, e está mas é fallando com o seu moleiro.
Deixou cair o habito de frade e o rei ficou pasmado com a esperteza do ladino.
(Coimbra.)
Notas
[editar]71. Frei João Sem Cuidados. — Merece comparar-se a versão oral com a redacção litteraria de Gonçalo Fernandes Trancoso, do seculo XVI, em que figura um fidalgo Dom Simão. Ha uma fórma hespanhola tambem do seculo XVI, no Patrañuelo de Timoneda, n.º XV. (Coll. de Auctores españoles, de Ribadaneyra, p. 154.) A fórma mais antiga que conhecemos é a italiana de Franco Sacchetti, contemporaneo de Dante, nas Novellas, t. I, n.º IV. A primeira versão oral portugueza foi publicada no Almanach de Lembranças, para 1861, p. 323. (Vid. n.º 160.)