Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O cego e o moço

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97. O CEGO E O MOÇO

Um cego andava pedindo esmola pela mão de um moço; a uma porta deram-lhe um naco de pão e um bocado de linguiça. O moço pegou no pão e deu-o ao cego para mettel-o na sacóla, e ia comendo a linguiça muito á surrelfa. O cego, desconfiado, pelo caminho começa a bradar com o moço:

— Oh grande tratante, cheira-me a linguiça! Acolá deram-me linguiça e tu só me entregaste o pão.

— Pela minha salvação, que não deram senão pão.

— Mas cheira-me a linguiça, refinado larapio!

E começou a bater com o bordão no moço pancadas de criar bicho. O moço era ladino e disse lá para si que o cego lh'as havia de pagar. Quando iam por uns campos onde estavam uns sobreiros, o moço embicou o cego para um tronco, e grita-lhe:

— Salta, que é rego.

O cego vae para saltar e bate com os focinhos no sobreiro. Grita elle:

— Oh rapaz do diabo! Que te racho.

Diz-lhe elle:

Pois cheira-lhe o pão a linguiça,
E não lhe cheira o sobreiro á cortiça?

(Porto.)




Notas[editar]

97. O cego e o moço. — Esta facecia popular acha-se com variantes na Hora de Recreyo, do Padre João Baptista de Castro, t. I, p. 123: O cego e o moço comendo uvas.