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Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Pedro de Malas-Artes

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75. PEDRO DE MALAS-ARTES

Uma pobre mulher tinha um filho, que era assim atolado, e porque nunca fazia nem dizia nada acertado, chamavam-lhe o Pedro das Malas-Artes. A mulher não tinha senão aquelle filho, e por isso estimava-o. Um dia trouxe a mulher para casa uma têa de linho, que tinha deitado, e disse:

— Este panno é para nós taparmos os nossos buraquinhos.

Assim que a mulher sahiu, e se demorou na missa, o filho foi á têa de linho, cortou-a em bocadinhos e começou a mettel-os pelos buracos das paredes do casebre. Quando a mãe chegou, elle disse-lhe muito contente:

— Mãe, olhe como estão tapados os nossos buraquinhos.

A mãe conheceu a tolice, lamentou os seus peccados, e fel-o prometter que nunca mais tornaria. No dia seguinte disse ao filho que fosse á feira comprar um bacoro e o trouxesse para casa. Esperou, esperou, e como o filho não acabava de vir, foi a vêr se o encontrava; achou-o caido no chão com o porco em cima de si, porque tinha entendido que o havia de trazer ás costas, e elle era bastante pezado. A mulher chorou, affligiu-se, e explicou:

— Isto traz-se para casa, com um cordelsinho amarrado pelo pé, e toca-se para diante com uma varinha.

Pedro de Malas-Artes, ouviu aquillo para seu governo; passados dias a mãe mandou-o que fosse á feira comprar um cantaro. Quando elle chegou a casa, trazia só a aza.

— Que é isto, Pedro? Onde está o cantaro que te mandei buscar.

Disse elle á mãe:

— Amarrei-lhe um cordelsinho pela aza, e toquei-o para diante com uma varinha; fiz como minha mãe me disse no outro dia.

A mãe tornou a lamentar-se, e disse-lhe:

— Se tu tivesses juizo trazias o cantaro na mão, ou então entre palha, n'algum carro que viesse para as nossas bandas.

Vae n'isto mandou-o a uma loja comprar um vintem de agulhas; Pedro de Malas-Artes trouxe as agulhas, e como ia passando um carro de palha aproveitou a occasião e despejou as agulhas entre a palha. Chega a casa, e pergunta-lhe a mãe pelas agulhas:

— Vem ahi no carro da palha do nosso visinho; botei-as lá, como minha mãe me disse no outro dia.

A mãe já estava cançada de tanta tolice, e já tinha medo de o mandar a algum recado. Um dia comprou tripas para guisar para o jantar e disse a Pedro de Malas-Artes:

— Vae ali á beira do rio lavar essas tripas, e não m'as tragas cá sem que estejam bem limpas.

— Mas eu como é que heide saber que as tripas estão limpas?

— Pergunta a alguem, que te diga.

Foi Pedro de Malas-Artes lavar as tripas; lavou, tornou a lavar, e como não passava ninguem, lavava que lavava. Até que lá ao longe viu vir um barco á vela e a remar, porque havia calmaria, e pôz-se a acenar e a chamar. A gente do barco pensando gue era algum passageiro abicou á praia, luctando contra a corrente, quando Pedro de Malas-Artes perguntou:

— Olhem lá; os senhores dizem-me se estas tripas já estão bem lavadas?

A gente do barco ficou desesperada, saltaram em terra, deram-lhe muita pancada e disseram por fim:

— O que tu deves dizer, é que sopre muito vento.

Foram-se embora. Pedro de Malas-Artes ia para casa, e aconteceu passar por um campo onde se andava ceifando trigo e armando as paveias, e começou a dizer:

— O que é preciso é que sopre muito vento; que sopre muito vento.

A gente que andava ceifando ficou desesperada, e vieram bater-lhe, dizendo:

— Oh estuporado, não sabes que o muito vento nos espalhava o trigo todo? O que é preciso é que não caia nenhum.

E deixaram-n'o ir embora. Foi-se Pedro e passou por um campo onde estavam uns homens armando uma rêde para apanhar passaros, e começou a dizer:

— O que é preciso é que não caia nenhum, que não caia nenhum.

Vem os homens da rêde, bateram-lhe muitas, e clamaram:

— O que tu deves dizer, é que assim haja muito sangue.

Passa Pedro por um caminho onde estavam dois homens engalfilhados brigando, e outros tambem querendo apartal-os, e entra a dizer em altos gritos:

— Assim haja muito sangue, assim haja muito sangue.

Já se sabe, vieram ter com elle e deram-lhe muitas pancadas, e disseram-lhe:

— O que tu deves dizer é que Deus os desaparte, Deus os desaparte.

Vae-se Pedro de Malas-Artes por ali adiante, quando vinha um grande acompanhamento com um noivo e noiva que acabavam de se casar. Começa elle:

— Assim Deus os desaparte, assim Deus os desaparte.

Os convidados deram-lhe muita pancada e disseram:

— Oh homem, o que tu deves dizer é que d'estes cada dia um.

Indo mais para diante encontra um enterro de um homem muito estimado na terra, e entra a bradar:

— D'estes cada dia um, cada dia um.

A gente que seguia o enterro não teve mão que lhe não batesse muita pancada, e disseram-lhe:

— O que você deve dizer é que nosso senhor o leve direitinho para o céo.

Vae mais para diante, e vinha passando um baptisado, e começa Pedro de Malas-Artes:

— Nosso senhor o leve direitinho para o céo.

Os padrinhos da criança tomaram aquillo por máo agoiro, e desancaram Pedro de Malas-Artes, que botou a fugir e se não chegasse a casa ainda andava a levar pancadas por esse mundo.

(Porto.)



Notas

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75. Pedro de Malas Artes. — Na collecção dos Contos sicilianos de Pittré ha este mesmo thema. (Rev. des Deux Mondes, 1875 (Agosto, 15), p. 883. Consiglieri Pedroso encontrou-o com o titulo de Manel tolo, correspondente ao Giufa dos contos sicilianos (Fiabe, vol. III, p. 353 da collecção de Pittré), e ás Molbohistorie da Dinamarca. (Ap. Romania, t. IX, p. 138 a 140.) O Positivismo, t. II, p. 450. — Nos Relogios fallantes, D. Francisco Manuel de Mello, allude a esta tradição corrente em Portugal no seculo XVII: «que me puderam levantar estatuas como a Pedro de Malas Artes…» (Apologos Dialogaes, p. 23.) N'esta mesma obra vem o conto da mulher que nas dôres do parto mandou accender uma vela benta, tendo em seguida o cuidado de a mandar apagar para outra vez. (Ibid., p. 196.)

Crêmos que é a esta mesma tradição que se refere o typo de Pedro de Urde-Lamas, citado na Lozana andalusa, da litteratura hespanhola do seculo XVI. No Cancioneiro da Vaticana vem uma allusão a este typo: «Chegou Payo de maas Artes.» (Canç. 1132.)