Contos de Andersen/O companheiro de viagem

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O companheiro de viagem[editar]

“O companheiro de viagem
ilustração da obra em polonês
Hans Christian Andersen-Baśnie (1899)”

O pobre João estava muito triste, porque o seu pai estava muito doente, e ele não tinha mais esperanças que seu pai se recuperasse. João estava sozinho com o pai doente no pequeno quarto, e o lampião estava quase se apagando, porque já era tarde da noite.

"João, você sempre foi um bom filho," disse o pai doente, "e Deus irá ajudá-lo de agora em diante." João olhava para ele, enquanto o pai falava, com os olhos calmos e sinceros, deu um longo suspiro, e morreu, parecia que havia caído num sono pesado.

João chorava desconsoladamente. Ele não tinha mais ninguém nesta imensidão de mundo agora, nem pai, nem mãe, nem irmão, nem irmã. Pobre João! ele se ajoelhou perto da cama, beijou as mãos do pai que havia morrido, e chorou lágrimas amargas durante muito, muito tempo. Mas, finalmente, seus olhos se fecharam, e ele sentiu que estava dormindo com a cabeça encostada na dura guarda da cama. Então, ele teve um sonho estranho, ele sonhou que o sol brilhava sobre ele, e que seu pai estava vivo e com saúde, e até o ouviu quando ele sorriu como ele costumava fazer quando estava muito feliz. Uma garota linda, com uma coroa dourada na cabeça, com cabelos longos e brilhantes, lhe deu a mão, e seu pai falou: "Veja que noiva linda você conseguiu. Ela é a jovem mais adorável de toda a terra." Então, ele acordou, e todos aqueles momentos lindos desapareceram diante de seus olhos, seu pai estava morto na cama, e ele estava ali sozinho. Pobre João!

Na semana seguinte o falecido foi sepultado. O filho caminhava por trás do caixão que continha o corpo do pai, a quem ele amava de todo o coração, e jamais voltaria a vê-lo. Ele ouviu quando a terra caía sobre a tampa do caixão, e ficou olhando até que só conseguia ver um pedacinho do caixão, até que finalmente ele desapareceu por completo. Ele sentia que o seu coração iria explodir sob o peso de tanta dor, até que as pessoas que estavam ao redor da sepultura cantaram um salmo, e os acordes suaves e santos fizeram brotar lágrimas em seus olhos, trazendo um pouco de alívio. O sol brilhava intensamente sobre as folhas verdes, como se quisesse dizer: "Você não deve ficar tão triste, João. Você está vendo o lindo céu azul lá em cima? O seu pai está lá em cima, e ele estará orando para o amado Pai de todos nós, para que você esteja bem de hoje em diante."

"Serei sempre bom," disse João, "e então irei morar com meu pai no céu. Que alegria será revermos um ao outro novamente! Quantas coisas terei para contar para ele, e ele poderá me explicar tudo sobre as alegrias do céu, e me ensinar como ele fazia para mim quando era vivo. Oh, será uma alegria muito grande!"

Ele ficava imaginando tudo isso de uma maneira tão viva para si mesmo, que chegava a sorrir mesmo com lágrimas rolando pelas faces.

Os passarinhos cantarolavam sobre as castanheiras, "Tuit, tuit," eles estavam tão felizes, embora tivessem assistido ao funeral, mas parecia que eles sabiam que o homem que havia morrido estava no céu agora, e que agora ele tinha asas muito maiores e mais lindas do que as deles próprias, e ele era feliz agora, porque ele tinha sido bom na Terra, e todos estavam felizes com isso. João viu quando os passarinhos voaram para as árvores verdejantes daquela região imensa, e ele desejava poder voar com eles, mas primeiro ele cortou uma cruz de madeira, para colocá-la na sepultura do pai, e à noite, quando ele veio trazê-la, ele encontrou a sepultura enfeitada com flores e cascalhos. Pessoas desconhecidas haviam feito isso, aqueles que haviam conhecido seu velho e bom pai, agora morto, e que o amavam muito.

Bem cedo, na manhã seguinte, João fez uma pequena trouxa de roupas, e colocou todo o dinheiro que possuía, que não passava de cinquenta dólares e alguns centavos, na cintura, com isto ele estava decidido a tentar sua sorte no mundo. Mas, primeiro ele entrou na igreja, e ao lado da sepultura de seu pai, ele ofereceu uma oração e disse: "Adeus, meu pai."

E enquanto caminhava pelos campos, todas as flores pareciam lindas e verdejantes sob o calor do sol, e balançavam com o vento, como se desejassem dizer: "Bem vindo à floresta verde, onde tudo é novo e brilhante."

Então, João se voltou para dar mais uma olhada na velha igreja, onde ele foi batizado quando era criança, e onde seu pai o levava todos os domingos para assistir a missa e tomar parte durante o canto dos salmos. E enquanto ele olhava para a velha torre, ele viu o tocador de sino de pé numa das estreitas aberturas, com seu chapeuzinho vermelho e pontudo na cabeça, e protegia seus olhos contra o sol com a dobra do seu braço. João acenou um olá para ele, e o pequeno tocador de sino acenou para ele com o chapeuzinho vermelho, colocou a mão no coração, e mandava-lhe beijos com as mãos muitas e muitas vezes, para mostrar que tinha gratas recordações com relação a ele, e lhe desejava uma jornada próspera.

João continuou sua viagem, e pensava em todas as coisas maravilhosas que ele veria no mundo imenso e belo, até que ele se viu bem longe de casa onde jamais havia estado antes. Ele nem sequer sabia os nomes dos lugares que ele passava, e mal podia entender os idiomas das pessoas que ele encontrava, porque ele estava muito longe, num país estrangeiro. Na primeira noite ele dormiu sobre um palheiro, longe dos campos, pois não havia outra cama para ele, mas ela lhe pareceu tão boa e confortável que nem mesmo um rei desejaria coisa melhor.

O campo, o riacho, o palheiro, bem como o céu azul lá no alto, formavam um lindo quarto de dormir. A relva verde, forrada de pequeninas flores vermelhas e brancas, formavam um tapete, os bosques de sabugueiros e as cercas vivas feitas com rosas selvagens se pareciam com guirlandas penduradas nas paredes, e para se banhar ele poderia ter as águas claras e frescas do riacho, enquanto os juncos curvavam suas cabeças fazendo reverência para ele, como que desejando bom dia e boa noite. A lua, qual um imenso lampião, pairava lá no alto do teto azulado, mas ele não temia que as suas cortinas pegassem fogo. João dormia ali com toda segurança a noite toda, e quando ele acordava, o sol já estava alto, e todos os passarinhos estavam cantando ao seu redor, "Bom dia, bom dia. Você não se levantou ainda?"

Era Domingo, e os sinos tocavam na igreja. Quando as pessoas entravam, João as seguia, ele ouviu a palavra de Deus, se juntou aos que cantavam os salmos, e ouviu o pregador. Parecia para ele exatamente como se estivesse em sua própria igreja, onde ele havia sido batizado, e tinha cantado os salmos junto com seu pai. Lá fora, no pátio da igreja, havia várias sepulturas, e sobre algumas delas o mato havia crescido muito alto. João pensou na sepultura do seu pai, que ele acreditava finalmente estar se parecendo com estas, porque ele não estava lá para remover as ervas daninhas e para cuidar dela. Então ele se pôs a trabalhar, arrancou as ervas que haviam crescido, levantou as cruzes de madeira que haviam caído, e substituiu as coroas que haviam saído do lugar por causa do vento, pensando o tempo todo: "Talvez alguém esteja fazendo a mesma coisa pela sepultura do meu pai, como eu não estou lá para fazer isso."

Na frente da porta da igreja estava um velho mendigo, apoiando-se em sua muleta. João lhe deu algumas moedas de prata, e depois prosseguiu em sua viagem, se sentindo cada vez mais leve e mais feliz do que antes. Quando a noite chegou, o tempo tornou-se muito tempestuoso, e ele correu o mais rápido que conseguiu, para buscar um abrigo, mas já estava muito escuro quando ele chegou numa pequena e solitária igreja que ficava numa colina, "Vou entrar dentro dela," disse ele, "e me sentar num cantinho, pois estou muito cansado, e preciso descansar."

Então ele entrou, e se sentou, depois cruzou as mãos, e fez as suas preces antes de dormir, e em pouco tempo caiu no sono e começou a sonhar, enquanto o trovão rolava e o relâmpago iluminava tudo lá fora. Quando ele acordou, era ainda noite, mas a tempestade havia passado, e a lua ainda brilhava por cima dele vista pelas janelas. Então ele viu um caixão aberto no meio da igreja, onde havia um homem morto, esperando ser sepultado. João não era medroso de modo algum, ele era muito consciente, e sabia também que os mortos não fazem mal a ninguém. São os homens vivos e perversos que fazem mal para os outros. Duas dessas pessoas malvadas estavam perto do homem que havia morrido, e que havia sido trazido até a igreja para ser enterrado. E eles pretendiam jogar o defunto para fora da porta da igreja, e não deixá-lo que ficasse em seu caixão.

"Porquê vocês estão fazendo isso? perguntou João, quando viu o que eles pretendiam fazer, "isso é muito ruim. Deixem que ele descanse em paz, em nome de Cristo."

"Tolice," respondeu as duas criaturas sem coração. "Ele nos enganou, ele nos devia dinheiro que não conseguiu pagar, e agora que morreu, não receberemos nenhum centavo, então pretendemos nos vingar, e deixá-lo deitado como um cachorro fora da porta da igreja."

"Tenho apenas cinquenta dólares," disse João, "é tudo o que possuo no mundo, mas eu darei tudo a vocês se me prometerem de verdade que deixarão o morto em paz. Eu saberei me virar sem dinheiro, tenho braços e pernas fortes e com saúde, e Deus sempre me ajudará."

"Ora, é claro," disseram os homens impiedosos, "se você pagar o que ele nos deve nós dois prometemos não tocar nele. Você pode confiar nisso," e então, eles pegaram o dinheiro que ele ofereceu, sorriram para ele por causa do seu bom caráter, e foram embora.

Então, ele colocou o corpo do defunto de volta no caixão, cruzou as mãos dele, e se despediu do morto, saindo satisfeito através da imensa floresta. Ao seu redor ele podia ver os mais lindos e pequeninos elfos dançando sob a luz do luar, que penetrava por entre as árvores. Os elfos não ficaram assustados quando ele apareceu, pois eles sabiam que ele era bom e não representava nenhum perigo dentre os homens. Eles eram pessoas malvadas apenas quando não podiam conseguir a atenção das fadas. Alguns deles não eram maiores que o comprimento de um polegar, e eles tinham cachos dourados em seus cabelos longos e amarelados. Eles se balançavam aos pares sobre as enormes gotas de orvalho que borrifavam sobre as folhas e as relvas mais altas.

Às vezes, as gotas de orvalho rolavam, e caíam por entre os pedúnculos de grama alta, e que causavam muito riso e alarido entre os outros pequeninos. Era uma grande alegria observá-los brincando o tempo todo. Eles gostavam de cantar canções, e João se lembrou que ele havia aprendido aquelas lindas canções quando era apenas um garotinho. Enormes aranhas salpicadas, com coroas de prata na cabeça, eram empregadas na confecção de pontes e palácios suspensos de uma cerca viva até a outra, e quando as minúsculas gotas caíam em cima delas, elas cintilavam ao luar parecendo vidros brilhantes. E isso ia até o nascer do sol. Depois, os pequenos elfos entravam dentro dos botões de flores, e o vento balançava as pontes e palácios, agitando-os no ar como se fossem teias de aranha.

Assim que João saiu da floresta, uma voz forte de homem chamou a sua atenção: "Olá, camarada, para onde você está viajando?"

"Para a imensidão deste mundo," respondeu ele, "sou apenas um rapaz pobre, não tenho pai nem mãe, mas Deus me ajudará."

"Eu estou andando pelo mundo também," falou o estranho, "será que poderíamos fazer companhia um para o outro?"

"É claro que podemos," disse ele, e assim caminharam juntos. Logo começaram a gostar da companhia um do outro, pois ambos tinham bom coração, mas João achou que o estranho era muito mais inteligente que ele. O recém chegado já havia viajado por todo o mundo, e sabia descrever quase tudo. O sol já estava alto no céu quando decidiram sentar debaixo de uma grande árvore para comerem qualquer coisa, e nesse instante, uma velhinha caminhou em direção a eles.

Ela era muito velha e era toda curvada. Ela se apoiava num cajado e levava nas costas um feixe de lenha para queimar, que ela havia recolhido na floresta, o seu avental amarrava o feixe de lenha, e João viu três grandes ramos de samambaia e alguns galhos de salgueiro que saíam para fora. Assim que ela se aproximou deles, ela escorregou, e caiu no chão gritando em voz alta; pobre velhinha!, ela havia quebrado o pé. João então sugeriu que eles levassem a velhinha para a cabana onde ela morava, mas o estranho abriu o saco que levava nas costas e dele retirou uma caixa, onde ele disse que havia uma pomada que iria logo fazer bem à perna da mulher, fortalecendo-a, e que ela conseguiria ir para casa sozinha, como se a sua perna jamais tivesse sido quebrada. E tudo o que ele pediria em troca eram os três ramos de samambaia que ela carregava dentro do avental.

"Esse é um preço muito caro," disse a velhinha, balançando a cabeça de uma estranha maneira. Ela não parecia de modo nenhum inclinada a se separar dos ramos de samambaia. Contudo, não era muito agradável ficar ali com uma perna quebrada, então ela os entregou para ele, e tão grande era o poder da pomada, que mal ele tinha esfregado a pomada na perna dela e a pobre mãe se levantou e caminhou melhor do que caminhava antes. O problema era que aquele unguento não poderia ser comprado numa bodega.

"Porquê você quis ficar com esses três ramos de samambaia?" perguntou João ao seu companheiro de viagem.

"Oh, eles servirão para eu fabricar vassouras muito boas," disse ele, "e eu gosto deles porque às vezes tenho algumas estranhas idéias." Então, eles continuaram caminhando juntos por uma longa distância.

"Como o céu está ficando escuro," disse João, "e olhe só aquelas nuvens grossas e pesadas."

"Aquilo não são nuvens," respondeu o companheiro de viagem, "são montanhas — montanhas altas e gigantescas — e no topo delas estaremos acima das nuvens, respirando o ar fresco e puro. Acredite, meu amigo, é uma delícia subir tão alto, amanhã nós estaremos lá em cima." Mas as montanhas não estavam tão próximas como pareciam, eles tiveram de viajar um dia inteiro, antes de chegar até elas, e atravessar florestas negras e montanhas de rochas tão grandes como uma cidade. A viagem tinha sido tão cansativa que João e o seu companheiro de viagem pararam para descansar numa estalagem que ficava do lado da estrada, para que eles pudessem ganhar forças para a viagem do dia seguinte. No grande salão público da estalagem uma multidão de pessoas estava reunida para assistir a uma comédia representada por bonecos.

O apresentador tinha acabado de montar seu pequeno teatro, e as pessoas estavam sentadas em volta do salão para assistirem a apresentação teatral. Bem à frente deles, no melhor lugar, estava um robusto açougueiro, com um grande buldogue de lado, que parecia estar com muita vontade de morder alguém. Ele se sentou e ficou de olhos arregalados, e assim fizeram todos os demais que estavam na sala. E então a apresentação começou. Era uma peça bonita, onde havia um rei e uma rainha, que estavam sentados num lindo trono, e usavam coroas de ouro na cabeça. A cauda de suas roupas eram muito longas, de acordo com a moda, ao passo que os bonecos de madeira, usando olhos de vidro e grandes bigodes, ficavam perto das portas, abrindo-as e fechando, para que o ar fresco entrasse na sala.

Era uma apresentação muito agradável, sem nenhum drama, mas assim que a rainha se levantou e caminhava pelo palco, o grande buldogue, que deveria ter sido contido pelo seu dono, deu um salto à frente, e agarrou com os dentes, os pulsos delicados da rainha, que se partiu em dois pedaços. Este foi um acidente assustador. O pobre senhor, que fazia a apresentação dos bonecos, ficou muito aborrecido e triste em relação à rainha, ela era a boneca mais linda que ele tinha, e o buldogue havia quebrado a cabeça dela e arrancado os ombros. Mas depois que as pessoas foram embora para casa, o estranho, que havia chegado com João, disse que em pouco tempo ele poderia consertá-la.

E então, ele abriu a sua caixa, e esfregou a boneca com a mesma pomada que ele tinha usado para curar a velhinha quando ela quebrou a perna. Assim que ele fez isto, as costas da boneca se endireitaram novamente, a cabeça e os ombros ficaram firmes, e ela até conseguia mover os braços e as pernas por si mesma: não havia mais necessidade de puxar as cordinhas, pois a boneca agia como se fosse uma criatura viva, com exceção apenas que ela não podia falar. O homem que fazia a apresentação ficou muito satisfeito ao receber uma boneca que podia dançar por conta própria sem precisar ser puxada por cordinhas, nenhuma outra boneca conseguiria fazer isto.

Durante a noite, quando todas as pessoas da estalagem tinham ido dormir, ouviu-se alguns suspiros profundos e dolorosos, e os suspiros continuaram durante tanto tempo, que as pessoas se levantaram para ver o que estava acontecendo. O apresentador do teatro foi imediatamente até o seu pequeno palco e descobriu que os suspiros vinham das bonecas, e todas estavam no chão chorando de dar dó, e olhavam com seus olhos de vidro, todas queriam ser esfregadas com o unguento, para que, como a rainha, elas pudessem se locomover por conta própria. A rainha se colocou de joelhos, tirou sua linda coroa, e segurando-a na mão, exclamava: "Pode ficar com ela, mas passe o unguento no meu marido e em seus cortesãos."

O pobre homem que apresentava o espetáculo mal conseguia segurar as próprias lágrimas, ele estava tão entristecido por não poder ajudá-las. Então, ele imediatamente falou para o companheiro do João, e prometeu-lhe todo o dinheiro que ele conseguisse receber na próxima apresentação da noite, se ele passasse a pomada em quatro ou cinco de suas bonecas. Mas o companheiro de viagem disse que ele não estava pedindo nada em troca, exceto a espada que a apresentador usava na sua cintura. Assim que ele recebeu a espada, e passou o unguento em seis das bonecas, e imediatamente elas conseguiam dançar de modo tão gracioso que todas as garotinhas de verdade que estavam na sala não conseguiram deixar de se juntar na dança.

O cocheiro dançou com a cozinheira, e os garçons com as camareiras, e todos os estrangeiros se juntaram, até as tenazes e as pás de pegar brasa fizeram uma tentativa, mas elas levaram um tombo no primeiro salto. E no final de tudo foi uma noite muito alegre. Na manhã seguinte, João e seu companheiro deixaram a estalagem para continuar a sua viagem através da grande floresta de pinheiros e para além das montanhas gigantescas. Finalmente eles chegaram à uma altura tão grande que as cidades e as aldeias ficavam abaixo deles, e os campanários das igrejas se pareciam como pequenos pontos entre as grandes árvores.

Eles podiam avistar muitas milhas ao redor, distantes de lugares que jamais haviam visitado, e João conheceu outros lugares do mundo maravilhoso, do que jamais havia visto anteriormente. O sol brilhava intensamente no firmamento azul lá do alto, e através do ar cristalino da montanha ecoava o som da corneta do caçador, e as notas musicais doces e suaves faziam brotar lágrimas em seus olhos, e ele não conseguiu deixar de exclamar: "Como Deus é bom e amoroso ao nos oferecer toda esta beleza e carinho do mundo para nos fazer felizes!"

Seu companheiro de viagem estava com as mãos postas, olhando para a floresta escura, e as cidades que eram banhadas pelo calor do sol. Neste instante, uma música celestial soava acima de suas cabeças. Olharam para cima, e descobriram um cisne grande e todo branco pairando no ar, e cantava como nenhuma ave cantou antes. Mas a canção logo ia ficando cada vez mais fraca, a cabeça da ave se inclinou, e o cisne foi caindo lentamente, e pousou sem vida aos seus pés.

"É uma linda ave," disse o viajante, "e estas asas grandes e alvas valem muito dinheiro. Eu as levarei comigo. Você percebe agora que uma espada será muito útil."

Então ele removeu as asas do cisne morto com um só golpe, e as levou consigo.

Eles então continuaram a viagem sobre as montanhas e percorreram muitas milhas, até que finalmente chegaram a uma grande cidade, onde havia centenas de torres, que brilhavam como prata sob a luz do sol. No meio da cidade, levantava-se um esplêndido palácio de mármore, revestido com puro ouro vermelho, onde morava o rei. João e seu companheiro não queriam entrar na cidade imediatamente, então, eles pararam numa estalagem que ficava antes da cidade, para mudarem as suas roupas, pois eles queriam parecer respeitáveis quando caminhassem pelas ruas. O proprietário disse a eles que o rei era um homem muito bom, e que nunca havia ferido ninguém, mas com relação à filha do rei, "Deus nos livre!"

Ela era de fato uma princesa perversa. Era dona de uma beleza invulgar — ninguém poderia ser mais elegante ou mais bonita do que ela, mas, qual era o problema? o problema era que ela era uma bruxa má, e em consequência de sua situação, muitos jovens e nobres príncipes haviam perdido suas vidas. Todos tinham toda a liberdade de lhe oferecer alguma coisa, quer fosse ele um príncipe ou um mendigo, isso não era importante para ela. Ela gostava de lhe fazer três perguntas, as quais ela tinha acabado de imaginar, e caso ele conseguisse resolvê-las, ele poderia se casar com ela, e ser o rei sobre toda a terra depois que o seu pai morresse, mas se ele não respondesse às três adivinhações, então, ela mandava que ele fosse enforcado ou tivesse sua cabeça cortada.

O velho rei e seu pai, estava muito triste com a conduta dela, mas ele não conseguia impedí-la que fosse tão perversa, porque ele havia falado certa vez que ele não queria mais saber dos pretendentes dela, ela poderia fazer o que quisesse. Todos os príncipes que chegavam e tentavam responder as três perguntas, para que pudesse se casar com a princesa, não tinham conseguido respondê-las, e tinham sido enforcados ou decapitados. Todos tinham sido avisados a tempo, e poderiam ter desistido dela, caso o quisessem. O velho rei ficou tão angustiado com todas essas circunstâncias assustadoras, que todos os anos ele e seus soldados se ajoelhavam e rezavam o dia todo para que a princesa se tornasse uma pessoa boa, mas ela continuava tão perversa como sempre. As velhas senhoras que bebiam bebidas alcoólicas costumavam tingí-las de preto antes de bebê-las, para mostrarem como elas lamentavam tudo aquilo, mas, o que mais elas poderiam fazer?

"Que princesa desalmada!" disse João, "ela devia ser açoitada. Se eu fosse o velho rei, eu mandaria puní-la de alguma maneira."

Só então, eles ouviram algumas pessoas gritando lá fora: "Viva!" e quando foram olhar, eles viram a princesa que passava, e ela era realmente tão linda que ninguém mais se lembrava da sua maldade, e gritavam "Viva!" Doze lindas jovens com seus brancos vestidos de seda, segurando tulipas douradas em suas mãos, cavalgavam ao lado dela sobre cavalos negros como o carvão. A própria princesa estava montada num corcel branco como a neve, adornado com diamantes e rubis. Seu vestido era de um tecido dourado, e o chicote que ela segurava nas mãos brilhava como um raio de sol. A coroa de ouro que ela usava na cabeça reluzia como as estrelas do céu, e o seu manto era formado por milhares de asas de borboletas costuradas todas juntas. Mesmo assim, ela era ainda a mais linda de todas.

Quando João a viu, seu rosto ficou vermelho como uma gota de sangue, e ele mal conseguia dizer uma palavra. A princesa se parecia exatamente como uma linda mulher com uma coroa de ouro, com quem ele sonhou na noite quando seu pai morreu. Ela parecia tão linda para ele que ele não conseguia deixar de amá-la.

"Isso não pode ser verdade," pensou ele, "que ela fosse realmente uma bruxa malvada, que ordenava que as pessoas fossem enforcadas ou decapitadas, se não conseguissem adivinhar seus pensamentos. Todos tinham permissão de ir e pedir a sua mão, mesmo o mendigo mais miserável. "Eu vou fazer uma visita até o palácio," disse ele, "devo ir, pois não consigo me conter."

Sendo assim, todos o aconselharam para que ele não tentasse, pois, com certeza ele teria o mesmo destino que os outros. O seu companheiro de viagem também tentou convencê-lo para que não fosse, mas João parecia ter certeza do seu sucesso. Ele escovou os sapatos e o seu casaco, lavou o rosto e as mãos, penteou seus cabelos louros e macios, e depois saiu sozinho pela cidade, e caminhou até o palácio.

"Entre," disse o rei, assim que João bateu à porta. João entrou, e o velho rei, em seu roupão habitual e sandálias bordadas, caminhou em direção a ele. Ele usava uma coroa na cabeça, carregava o cetro com uma mão, e o globo terrestre na outra. "Espere um pouco," disse o rei, e colocou o globo terrestre debaixo do braço, para que pudesse estender a mão para o João, mas quando soube que João era um outro pretendente, o rei começou a chorar convulsivamente, que tanto o cetro como o globo terrestre caíram no chão, e ele foi obrigado a enxugar as lágrimas com o manto real. Pobre rei! "Deixe-a em paz," disse ele, "você terá o mesmo destino que os outros tiveram. Venha, vou lhe mostrar."

Então, o rei o levou até os jardins de recreio da princesa, e lá ele teve uma visão assustadora. Em cada árvore estavam pendurados três ou quatro pretendentes que haviam cortejado a princesa, mas, não tinham sido capazes de responder às adivinhações que ela havia feito a eles. Os esqueletos deles balançavam sob a brisa mais leve, de modo que os pássaros assustados jamais ousavam se aventurar no jardim da princesa. Todas as flores tinham por suporte ossos humanos ao invés de varas, e crânios humanos sorriam assustadoramente dentro dos vasos de flores. Era realmente um jardim muito sombrio para uma princesa. "Você está vendo tudo isso?" disse o velho rei, "o seu destino será o mesmo daqueles que aqui estão, portanto, não tente nada. Você realmente me deixa muito infeliz, — eu lamento muito tudo isso, muito mesmo."

João beijou as mãos do bondoso e velho rei, e disse que ele tinha certeza que tudo daria certo, pois ele havia ficado encantado com a beleza da princesa. De repente, a própria princesa chegou a cavalo até o jardim do palácio acompanhada de suas damas, e ele a cumprimentou dizendo "Bom dia." Ela parecia maravilhosamente bela e encantadora quando ela ofereceu a mão para o João, e ele a amava mais do que nunca. Como seria possível que ela fosse uma bruxa má, como as pessoas afirmavam? Ele a acompanhou até o salão real, e as pequenas pagens ofereceram para eles biscoitos de gengibre e guloseimas, mas o velho rei estava tão triste que não conseguiu comer nada, e além de tudo, biscoitos de gengibre eram muito duros para ele comer.

Ficou decidido que João deveria retornar ao palácio no dia seguinte, quando os juízes e todo o quadro de conselheiros estaria presente, para assistirem se ele conseguiria responder à primeira adivinhação dela. Se ele conseguisse, ele teria de voltar uma segunda vez, mas se não conseguisse responder, ele perderia a própria vida, — e ninguém nunca tinha conseguido responder nem a primeira pergunta. Todavia, João não estava nada ansioso com os resultados do seu teste, pelo contrário, ele estava muito feliz. Ele pensava apenas na linda princesa, e achava que, de alguma maneira, ele seria ajudado, mas ele não sabia como, e nem queria ficar pensando nisso, então, ele vinha dançando ao longo do caminho quando retornava para a estalagem, onde ele havia deixado seu companheiro de viagem esperando por ele.

João não conseguiu deixar de contar para o seu amigo como a princesa tinha sido elegante para com ele, e como ela era bonita. Ele estava muito ansioso pelo dia seguinte, para que ele fosse ao palácio e tentasse a sorte respondendo às adivinhações. Mas o seu companheiro balançava a cabeça, e parecia muito entristecido. "Desejo que dê tudo certo para você," disse o amigo, "nós teríamos continuados juntos por muito mais tempo, e agora provavelmente vou perdê-lo, meu pobre e querido João! Posso derramar lágrimas, mas não quero fazê-lo infeliz no último dia que ficamos juntos. Nós ficaremos felizes, muito felizes esta noite, amanhã, depois que você partir, poderei chorar sem ser incomodado."

E muito rapidamente todos os habitantes da cidade ficaram sabendo que outro pretendente havia se apresentado para a princesa, e como resultado, todos ficaram muito tristes. O teatro ficou fechado, as mulheres que vendiam guloseimas colocavam uma fita preta como sinal de luto ao redor das bonecas feitas de açúcar, e o rei mais os sacerdotes ficaram ajoelhados rezando na igreja. Os lamentos eram generalizados, pois ninguém esperava que João conseguisse melhores resultados do que aqueles que haviam se apresentado anteriormente.

À noite, o companheiro de João preparou uma grande tigela com ponche, e disse: "Vamos ser felizes agora, e beber à saúde da princesa." Mas, depois de beber dois copos, João ficou tão sonolento, que ele não conseguia manter os olhos abertos, e caiu num sono pesado. Em seguida, o seu companheiro de viagem o levantou cuidadosamente da cadeira, e o colocou na cama, e assim que a escuridão era total, ele pegou as duas asas enormes que ele havia retirado do cisne morto, e as fixou firmemente em seus próprios ombros. Depois, ele colocou no bolso o maior dos três ramos de samambaia que ele havia conseguido com a velhinha que havia caído e quebrado a perna. Em seguida, ele abriu a janela, e voou pela cidade, diretamente em direção ao palácio, e ficou sentado nun canto, debaixo da janela que dava de frente para o quarto da princesa.

A cidade estava uma total tranquilidade quando os relógios bateram quinze para meia noite. Nesse instante, a janela se abriu, e a princesa, que tinha nos ombros asas negras e enormes, e usava um manto longo e branco, voou por cima da cidade em direção à uma montanha muito alta. O companheiro de viagem, que havia se tornado invisível, para que ela não conseguisse vê-lo, voou atrás dela pelo espaço, e chicoteava a princesa com o seu ramo de samambaia, de modo que ela começou a sangrar quando ele a golpeava. Ah, era um vôo muito estranho no ar! O vento soprava o seu manto, de maneira que ele se estendia por todos os lados, como a grande vela de um navio, e a lua era refletida no manto. "Está chovendo granizo, como pode ser isso! disse a princesa, a cada golpe de vara que ela recebia, e com certeza ela merecia ser açoitada ainda mais.

Finalmente ela chegou do outro lado da montanha, e bateu. A montanha se abriu com um barulho parecido com trovão rolando, e a princesa entrou. O viajante foi atrás dela, ninguém conseguia vê-lo, uma vez que ele tinha se tornado invisível. Eles atravessaram uma passagem longa e muito larga. Milhares de aranhas reluzentes corriam para lá e para cá sobre as paredes, fazendo com que elas brilhassem como se tivessem sido iluminadas por fogo. Em seguida, eles entraram num salão enorme construído de prata e ouro. Flores imensas vermelhas e azuis brilhavam sobre as paredes, parecendo girassóis no tamanho, mas ninguém ousava colhê-las, pois os caules eram constituídos por serpentes venenosas e assustadoras, e as flores eram chamas ígneas, lançadas das bocas das serpentes.

Vagalumes brilhantes cobriam o teto, e morcegos azuis da cor do céu batiam suas asas transparentes. No geral, o lugar tinha um aspecto assustador. No meio do assoalho ficava um trono apoiado pelo esqueleto de quatro cavalos, cujos arreios tinham sido tecidos por aranhas vermelhas como o fogo. O trono propriamente dito era feito de vidro branco como o leite, e os estofados eram recheados com pequenos ratos negros, que mordiam um o rabo do outro reciprocamente. Acima do trono ficava um pálio constituído por teias de aranhas cor de rosa, manchado com pequeninas e belíssimas moscas verdes, que reluziam como se fossem pedras preciosas. No trono ficava um velho mágico usando uma coroa em sua cabeça assustadora, e um cetro na mão. Ele beijou a fronte da princesa, que se sentou ao lado do seu esplêndido trono, e uma música começou a tocar.

Gafanhotos gigantes e negros tocavam gaita de fole, e a coruja batia no próprio corpo ao invés de um tambor. No geral, o concerto era ridículo. Pequenos gnomos negros com falsas luzes em seus bonés dançavam pelo salão, mas ninguém conseguia ver o viajante, e ele havia se colocado bem atrás do trono onde ele poderia ver e ouvir tudo. Os cortesãos que entraram a seguir pareciam nobres e majestosos, mas, qualquer um com bom senso poderia ver o que eles eram realmente, apenas cabos de vassoura, portando repolhos na cabeça. O mágico havia concedido vida para eles, e os vestia com roupas bordadas. Tudo combinava muito bem, porque eles eram procurados apenas para fazerem apresentações. Em seguida, foi iniciada uma pequena dança, a princesa contou ao mágico que ela tinha um novo pretendente, e pergntou a ele o que ela deveria perguntar para que o candidato adivinhasse quando ele viesse ao castelo na manhã seguinte.

"Ouça o que vou te dizer," falou o mágico, "você deve escolher algo muito fácil, ele é pouco provável que consiga adivinhar. Pense em um de seus sapatos, ele jamais imaginará que você estará pensando. Em seguida, mande cortar a cabeça dele, e lembre-se de não esquecer de trazer os seus olhos amanhã à noite, para que eu possa comê-los."

A princesa se abaixou fazendo reverência para o mágico, e disse que ela não esqueceria os olhos.

O mágico então, abriu a montanha e ela voltou voando para a casa novamente, mas o viajante a seguiu e batia tanto nela com o ramo de samambaia, que ela suspirava profundamente achando que era a chuva de granizo que caía, e se apressou o máximo que conseguiu para voltar para o seu quarto pela janela. O viajante então, retornou para a estalagem, onde João estava dormindo, retirou as asas e se deitou na cama, porque ele estava muito cansado. Bem cedo, ao amanhecer, João acordou, e quando o seu companheiro de viagem se levantou, disse que ele tinha tido um sonho maravilhoso com uma princesa e o seu sapato, ele, portanto, aconselhava João para perguntar a ela se ela não havia esquecido os seus sapatos. É claro que o viajante sabia disto por causa do mágico da montanha que havia falado isso.

"Posso dizer isso como qualquer outra coisa," disse João. "Talvez o teu sonho possa ser realizado, mesmo assim, vou me despedir de você, pois se eu não acertar a adivinhação, nunca mais o verei novamente."

Então, eles se abraçaram, e João seguiu para a cidade, indo até o palácio. O grande salão real estava lotado de pessoas, e os juízes estavam sentados em suas poltronas, com almofadas de edredom para descanso de suas cabeças, porque eles tinham muito o que pensar. O velho rei ficava perto, enxugando os olhos com seu lenço branco de bolso. Quando a princesa entrou, ela parecia ainda mais bela do que no dia anterior, e cumprimentou a todos os presentes com muita cortesia, mas ela ofereceu a mão para o João, e disse: "Um bom dia para você."

E então, havia chegado a hora de João adivinhar o que ela estava pensando, e oh, como ela olhava para ele com tanta ternura enquanto falava. Mas quando ele disse uma única palavra "sapato", ela ficou pálida como um fantasma, toda a sua sabedoria não havia adiantado nada, pois ele havia adivinhado corretamente. Oh, como o velho rei estava feliz! Era muito divertido ver como ele dava pulos de alegria. Todas as pessoas batiam palmas, tanto pela alegria do rei como pela resposta de João, que havia respondido corretamente a primeira adivinhação. O seu companheiro de viagem também ficou feliz, quando soube do primeiro sucesso de João. Mas João juntou as mãos, e agradeceu a Deus, que, com toda certeza, iria ajudá-lo novamente, e ele sabia que teria de adivinhar mais duas vezes. A noite passou agradável como a anterior. Enquanto João dormia, seu companheiro voou atrás da princesa até a montanha, e a surrava com mais força do que anteriormente, desta vez ele havia levado dois ramos de samambaia com ele. Ninguém o via ao lado dela, e ele ouvia tudo o que eles falavam. A princesa desta vez deveria pensar numa luva, e ele contou ao João como se tivesse ouvido novamente num sonho.

No dia seguinte, portanto, ele conseguiu adivinhar corretamente pela segunda vez, e isso causou grande alegria no palácio. Toda a corte pulava de alegria do mesmo modo que o rei havia pulado no dia anterior, mas a princesa ficou sentada no sofá, e não dizia uma única palavra. Tudo agora dependia do João. Se ele adivinhasse corretamente pela terceira vez, ele se casaria com a princesa, e seria o rei daquele país depois da morte do velho rei, mas se ele falhasse, ele pagaria com a vida, e o mágico poderia saborerar os seus lindos olhos azuis. Naquela noite João fez suas orações e foi para a cama muito cedo, e logo caiu no sono tranquilamente. Mas o seu companheiro fixou as asas em seus ombros, pegou os três ramos de samambaia, e com sua espada de lado voou até o palácio.

Era uma noite muito escura, e tão tempestuosa, que as telhas voavam dos telhados das casas, e as árvores do jardim sobre as quais os esqueletos estavam pendurados, curvaram-se sobre si mesmas como juncos diante do vento. O céu relampejava, e o trovão rolava num ribombar longo e contínuo a noite toda. A janela do castelo se abriu, e a princesa saiu voando. Ela estava pálida como a morte, mas ela gargalhava para a tempestade como se ela não representasse nenhum perigo. O seu manto branco esvoaçava sob a ação do vento como se fosse uma vela gigante, e o viajante batia nela com os três ramos de samambaia até o escorrer sangue, e finalmente, mal ela conseguia voar, todavia, ela conseguiu chegar à montanha. "Que horror de tempestade de granizo!" disse ela, enquanto entrava: "Nunca tinha saído com o tempo ruim deste jeito."

"Sim, algumas vezes o excesso de felicidade pode ser prejudicial," disse o mágico.

Então, a princesa disse ao mágico que João tinha adivinhado corretamente pela segunda vez, e se ele conseguisse na manhã seguinte, ele venceria, e ela jamais retornaria à montanha novamente, ou não poderia praticar a magia negra como fazia antes, e portanto, ela estava muito infeliz. "Descobrirei algo para você pensar e que ele jamais irá adivinhar, a menos que ele seja um ilusionista mais poderoso que eu mesmo. Mas agora vamos nos divertir."

Então, ele pegou a princesa pelas duas mãos, e eles dançaram com os pequenos duendes e a abóbora iluminada pelo salão. As aranhas vermelhas pulavam aqui e ali pelas paredes totalmente felizes, e as flores de fogo pulavam como se estivessem lançando fagulhas para todos os lados. A coruja tocava um tambor, os grilos assobiavam e os gafanhotos tocavam a gaita de fole. Era um baile extremamente ridículo. Depois que se cansaram de tanto dançar, a princesa foi obrigada a ir para casa, receando que pudessem sentir falta dela no palácio. O mágico se ofereceu para ir com ela, para que eles fizessem companhia um para o outro pelo caminho. Então, eles saíram voando sob o tempo ruim, e o viajante os seguiu, e quebrou os três ramos de samambaia em seus ombros. O mágico nunca tinha saído antes debaixo de uma tempestade de granizo como aquela. Chegando perto do palácio, o mágico parou para se despedir da princesa, e sussurrou em seu ouvido: "Amanhã pense na minha cabeça."

Mas o viajante ouviu o que o mágico tinha falado, e assim que a princesa entrou em seu quarto pela janela, e o mágico se virou para voltar para a montanha, ele pegou o mágico pela sua longa barba negra, e com sua espada cortou a cabeça do perverso mágico por trás dos ombros, para que ele não pudesse ver quem estava fazendo isso. Ele jogou o corpo para os peixes do mar, e depois de lavar a cabeça dentro da água, ele a embrulhou dentro de um lenço de seda, levou consigo para a estalagem, e depois foi dormir. Na manhã seguinte ele entregou o lenço para o João, e disse para que ele não abrisse o pacote até que a princesa lhe perguntasse o que ela estaria pensando. Havia tantas pessoas no grande salão do palácio, que elas ficaram tão apertadas como raízes enroladas juntas no mesmo pacote. Os conselheiros estavam sentados em suas poltronas sobre as almofadas brancas. O velho rei usava roupas novas, e a coroa de ouro e o cetro tinham sido polidos para que ele tivesse um aspecto majestoso. Mas a princesa estava muito pálida, e usava um vestido negro, como se estivesse indo a um funeral.

"O que eu estou pensando?" perguntou a princesa ao João. Imediatamente, ele desembrulhou o lenço, e ele próprio ficou muito assustado quando viu a cabeça do mágico horrendo. Todos estremeceram, pois era terrível olhar para aquilo, mas a princesa se sentou como se fosse uma estátua, e não conseguia dizer uma única palavra. Finalmente, ela se levantou e deu a João a sua mão, porque ele havia adivinhado corretamente.

Ela não olhava para ninguém, mas suspirava profundamente, e disse: "Você é o meu amo agora, esta noite devemos realizar o nosso casamento."

"Fico muito feliz em ouvir isto," disse o velho rei. "É tudo o que eu desejo."

Então, todas as pessoas gritavam "Viva!" A banda tocava música nas ruas, os sinos tocavam, e a confeiteira retirou a fita negra dos seus bonecos feitos de açúcar. A alegria era geral. Três bois, recheados com patos e galinhas, foram assados inteirinhos no mercado local, onde todos podiam se servir à vontade. As fontes jorravam os vinhos mais deliciosos, e aqueles que comprassem um pão pequeno na padaria receberiam seis grandes panetones, cheios de uvas passas como presente. À noite, toda a cidade estava iluminada. Os soldados davam tiros de canhões, e os meninos soltavam bombinhas. Todos comiam e bebiam, dançavam e pulavam por toda parte. No palácio, os nobres cavalheiros e as belas damas dançavam uns com os outros, e poder-se-ia ouví-los à grande distância cantando a seguinte canção:—

"Aqui estão as moças, jovens e bonitas,
Dançando sob o sopro do verão
Como duas rodas de fiar trabalhando,
Lindas donzelas que gostam de dançar-
E dançam da primavera até o verão
Até que os saltos se soltem de seus sapatos."

Mas a princesa ainda era uma bruxa, e ela não podia amar o João. Seu companheiro de viagem tinha pensado nisso, então, ele deu ao João as três plumas que ele havia retirado das asas do cisne, e uma garrafinha onde ele havia derrubado algumas gotas dentro dela. E disse para que o João colocasse uma grande banheira cheia de água perto da cama da princesa, e colocasse as penas e as gotas dentro da banheira. Em seguida, no instante em que ela ia se deitar, ele deveria dar-lhe um pequeno empurrão, para que ela caísse dentro da água, e então, deveria mergulhá-la três vezes. Isto iria destruir o poder do mágico, e ela o amaria para sempre. João fez tudo o que o seu companheiro havia lhe dito para que ele fizesse. A princesa soltou um grito estridente ao ser mergulhada na água pela primeira vez, e se debatia nas mãos dele sob a forma de um grande cisne negro com olhos ígneos.

Quando ela se levantou da água pela segunda vez, o cisne se tornou branco, com um anel preto em torno do pescoço. João deixou que a água se fechasse mais uma vez sobre a ave, e no mesmo instante a ave se transformou na mais linda princesa. Ela estava mais encantadora do que nunca, e lhe agradeceu, enquanto os seus olhos lacrimejantes brilhavam, por ter sido quebrado o encanto do mágico. No dia seguinte, o rei apareceu com toda a corte para dar a ele os parabéns, e ficou até tarde da noite. Por último, veio o companheiro de viagem, ele tinha um cajado nas mãos e um saco nas costas.

João beijou o rosto dele muitas vezes e disse a ele para que não fosse, que ficasse com ele, pois, ele tinha sido o motivo da sua grande sorte. Mas o viajante balançou a cabeça, e disse gentil e generosamente: "Não, o meu tempo acabou agora, somente paguei o que devia para você. Você se lembra do morto que as pessoas desalmadas queriam jogar fora do caixão? Você deu tudo o que possuía para que ele permanecesse em sua sepultura, eu sou aquele homem." E assim que falou isto, desapareceu.

As festividades do casamento duraram um mês inteiro. João e a sua princesa se amavam apaixonadamente, e o velho rei viveu para ver muitos dias felizes, quando ele carregava as crianças no colo e as deixava brincarem com o seu cetro. E João se tornou o rei de todo aquele país.

Veja também[editar]