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Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/A tia Izabel

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A TIA IZABEL


Conhecia-a em casa de uma familia amiga da minha.

Affirmavam os que a tinham conhecido em menina, que fôra bonita; a mim parecia-me simplesmente sympathica.

Era alta, magra, loura e muito branca, uma physionomia serena e melancolica, sem muito relevo, mas com muita doçura.

Andava sempre vestida de escuro, com uma simplicidade em que transpareciam, porventura, vislumbres de antigas elegancias.

Ao olhar para ella conhecia-se que havia de ter gostado de certas puerilidades mundanas, de se vestir e pentear bem, por exemplo, de ser citada pelo esmero do seu gosto, e pela distincção finissima de suas maneiras.

Hoje todas as vaidades se tinham apagado; fizera quarenta annos, e acolhêra-os com resignação, com dignidade, com uma certa graça melancolica que lhe ficava muito bem.

Nenhum dos rapazes que frequentavam aquella casa se atrevia a chamar-lhe solteirona.

A solteirona é a mulher solteira que não sabe acceitar resignada as amarguras da sua isolação, e as converte em ridiculos quando as não converte em pessimas qualidades.

A solteirona é pretenciosa, presumida, avida de attrahir a attenção, revolve os olhos sentimentalmente, lê romances, come gulodices, tem um king charles e inveja tudo o que é moço, radiante, feliz, tudo que tem esperanças e para quem o futuro desabrocha em promessas.

A solteirona é egoista, incommodam-na como uma injuria que lhe é particularmente dirigida todas as alegrias que não tem, persegue-a atrozmente a aspiração irrequieta a um pobre marido que podesse atormentar á vontade; sente-se na vida como n’uma casa que não é sua; d’aqui o seu mau humor continuado que torna d’ella quasi sempre o flagello da familia onde se sente pária!

A tia Izabel, porém, não era nada d’isto, pelo contrario.

Tinha para os sobrinhos um coração que, sem ser de mãe, encerrava muito de maternal, sobretudo no que as mães têem de indulgente!

Nunca a vi colerica, nunca a vi tambem excessivamente animada.

Não se ria, mas tinha habitualmente um sorriso placido, quasi distrahido, o sorriso de quem se sente um pouco estranha a todas as alegrias que a rodeiam, mas que nem por isso deseja projectar as suas sombras na luz que os outros espalham em torno d’ella.

Era muito estimada pelo irmão, pela cunhada e pelos sobrinhos, uns traquinas que andavam sempre a recorrer á sua inexgotavel paciencia, e que nunca foram expulsos com um gesto de irritação ou de desamor.

Sabia a difficil sciencia de se tornar util a todos, quasi indispensavel; estreitando d’este modo os laços que a prendiam aos seus, tornando-os por assim dizer inquebrantaveis:

Sentia-se assim menos só!

Nos jantares de familia os melhores pratos eram sempre executados debaixo da sua direcção; era ella quem fazia o menu, quem distribuia os lugares, quem presidia a todos os arranjos de casa.

Encarregava-se das tarefas mais enfadonhas, d’aquella parte aborrecida que tem uma festa e que as donas da casa acceitam com tédio, mas que lhes é mais tarde compensada no applauso, na satisfação, ás vezes mesmo na inveja disfarçada em risos dos seus convivas.

N’essas occasiões solemnes em que ninguem dava por ella, creio que se permittia um instante de innocente amor proprio, vendo a meza bonita, bem disposta, com a elegante e symetrica poesia das grandes jarras do Japão cheias de flores, dos crystaes facetados onde o vinho tomava as olympicas apparencias do nectar, da bella louça da China de lavores extravagantes e phantasiosos, da roupa fresca, pesada, macia, de linho da Russia adamascado, tendo bordadas iniciaes... que não eram as d’ella.

Depois voltava para o seu logar secundario, obscuro, e voltava de boamente com simplicidade despreoccupada.

Estava sempre bem com todos, sem se curvar obsequiosamente diante de alguem.

Tinha mesmo um modo seu de dizer as verdades com firmeza e com brandura, sem transigencias cobardes, sem severidade excessiva.

Quando havia em casa um doente, sentava-se-lhe tranquillamente á cabeceira, fazia-lhe sentir com discreta suavidade a sua influencia boa, perdia as noites com um aspecto de intrepidez e de meiguices; era inapreciavel emfim.

Tinha uma infinidade de pequenas idéas que punha em pratica e de cada uma das quaes resultava um allivio para o doente: arranjava as almofadas, aconchegava as roupas do leito, dir-se-hia que a sua mão esguia, branca, um pouco secca, tinha o segredo de verter balsamo em todas as feridas de um corpo enfermo.

Na convalescença lia alto.

Escolhia muito bem os livros, tinha a maravilhosa intuição de todas as necessidades de um espirito adormecido, n’aquella dubia luz crepuscular da doença physica.

A sua voz vellada, sem grande sonoridade, tinha umas notas macias que entravam até ao fundo do coração e que o amolleciam docemente.

Ainda nos desgostos de familia, na hora das crises e das catastrophes era para ella que instinctivamente todos os braços se estendiam.

É que ella, com o seu passo miudinho, o seu ar sereno, os seus habitos methodicos, nem diante das maximas catastrophes perdia a placidez necessaria.

Uma das suas particularidades mais accentuadas era a repugnancia pelo barulho, pelo espalhafato, por todas as exterioridades apparatosas.

Andava, fallava, trabalhava, movia-se sempre devagarinho.

Lembro-me perfeitamente do quarto d’ella, como d’uma especie de pequeno sanctuario onde poucas vezes penetravam as travêssas creanças de quem ella era como que segunda mãe.

Quando eu acertava de lá entrar com ellas, emquanto a pequenada corria de um lado para outro, vendo, tocando tudo, perguntando informações de todas as cousas, eu observava callada com o meu olhar de mais velha, mais penetrante e mais curioso.

Tudo alli era limpo, aceiado mas tudo antigo, datando sem duvida da sua adolescencia, do tempo em que ella fôra feliz, porventura requestada e formosa.

A alcova branca, discreta, com o seu oratorio de pau santo, cheio de bellas imagens, a Virgem risonha e loura com o menino nos braços, o Christo macerado e sangrento com a expressão de sobre-humana agonia no amortecido olhar.

No gabinete contiguo as cortinas, os reposteiros de chita, as poltronas, as pequeninas mezas cobertas com os seus panos de crochet, as estantes de livros, tudo emfim era bem conservado, sem ser novo; via-se que tinha sido o objecto de attentos cuidados, que todas aquellas cousas mudas haviam sido as companheiras unicas de uma existencia concentrada e solitaria.

Nas paredes, sobre as pequenas étagères, muitos retratos, todo um cortejo moço e triumphante que passava ao longe.

Exhalava se d’aquelles objectos tão esmeradamente cuidados, um vago, um indistincto perfume de saudade, como d’um herbario de flôres seccas, colhidas entre risos de crystal, nos dias radiantes da primavera...

Os pequenos então, com a sua inconsciente crueldade infantil, faziam mil perguntas, impacientes, curiosas...

— Quem era esta menina, tia Izabel? tem um vestido de seda decotado e na mão um malmequer que está desfolhando. Como ella scisma tão embebecida! Em que scismaria ella, minha tia?

— No futuro!... respondia ella sorrindo com o seu bello sorriso intraduzivel em que havia talvez muitas saudades.

— Que é feito d’ella? Era sua amiga, não era? Porque é que a não vem cá vêr nunca?

— Ao principio veio, depois casou-se; o marido levou-a a viajar, foram muito longe, divertiram-se, provavelmente ella esqueceu-se. Quando voltou trazia um filho, um baby louro e côr de rosa como o teu irmãosinho Arthur. Só o vi uma vez. As creanças absorvem muito as mães, por causa d’ellas esquecem-se de tudo, até das amigas da infancia. Hoje só sei que é muito feliz, e quando tenho saudades olho para o retrato d’ella!... Fômos tão amigas!

E callava-se baixando os olhos, receiosa de que a vissem contemplar com demasiado enlevo os dias que já não podiam voltar.

Todos aquelles retratos tinham uma historia.

Aquelle cortejo de juvenis visões louras, morenas, travêssas ou melancolicas faziam parte do passado, por isso lhes queria tanto.

Umas tinham casado, eram felizes, viviam absorvidas pelo divino egoismo da familia, todas entregues ao bem estar dos seus, aos interesses, ás alegrias, ás dôres do seu pequeno circulo de affectos.

Outras tinham morrido; eram as que alli nos appareciam mais pallidas, com um vago reflexo de luz febril nos olhos pasmados e pensativos.

Tinham morrido na plena florescencia do seu imaginar juvenil, levando para a cova, como levariam uma flôr ainda constellada pelos orvalhos matinaes, a dôce chymera que nenhum sôpro brutal lhes havia desfeito.

Fecharam os olhos cercados por todas as apparições fulgidas, que envolvem a mocidade como n’um circulo de estrellas, e foram despertar — quem sabe! n’outras regiões de que ninguem ainda voltou, do sonho feliz que haviam começado na terra.

Não eram essas as menos bemfadadas.

Ella, porém, ficára só.

Porquê?

Condemnação de que não conhecia o implacavel segredo!

Tambem fôra môça, tambem tivera crenças, esperanças, pequenos sobresaltos de amor proprio, ephemeras vaidades de quem se julgara querida!

Estremecera muita vez, ao sentir abrir uma porta, echoar um passo ligeiro e firme nos vastos corredores, vibrar uma voz viril, grave e terna!

Tivera rubores subitos, sentindo pousar na sua fronte branca, a luz d’um olhar quente e caricioso; colhêra uma rosa, prendera nos cabellos um cacho de madresilva, vestira um dia um certo vestido branco, cheia de alegria, agradecendo a Deus ter feito a vida tão boa, o céu tão azul, o cheiro das arvores tão penetrante e tão sadio!

Olhava n’este tempo para as creanças, beijava-as como a ensaiar as graças da maternidade, fazia-lhes festas, pensando que tambem havia de ter um dia uns pequeninos como aquelles, que lhes havia de querer muito, e leval-os a passear, seguida pelo olhar invejoso das outras mães... cujos filhos seriam forçosamente feios.

Então consultava comsigo mesma o systema de educação que adoptaria, e o modo porque os havia de vestir, e concluia vendo-os entrar para a Universidade, n’um dia de muitas lagrimas e de muitos dilaceramentos, altos, esbeltos, um pouco altivos, com um buçosinho louro, appetitoso como a pennugem d’um pecego mal maduro.

Foram-se-lhe dias e dias n’este sonhar que a entretinha, como a leitura d’um romance cujo interesse nunca afrouxa.

Um dia, porém, por acaso viu-se ao espelho, e despediu-lhe o seio um grito de angustia.

Despontava-lhe entre os fártos cabellos louros, o primeiro cabello branco, um fio de prata, tenue, quasi imperceptivel, uma cousa em que ninguem reparava.

Reparou ella.

Reparou tambem n’esse momento que todas ou quasi todas as companheiras tinham casado, que muitas das suas illusões se tinham desfeito ás asperas nortadas da realidade, que se ia sentindo na vida muito só.

Teve umas horas de lucta, de revolta, quasi de desespero.

Alguem, ou alguem invisivel em que ella sempre acreditára, mandou-lhe a força, porque lhe mandou a resignação!

Quando o pae lhe morreu veio para casa dos irmãos, e a pouco e pouco achou em si a fonte de todas as riquezas mysteriosas, que espalhava pelos affectos que o seu coração adoptou!


Eis pouco mais ou menos a historia da tia Izabel.