Dicionário de Cultura Básica/Roland

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ROLAND, La chanson de (epopéia francesa, ciclo carolíngio, Carlos Magno)

La chanson de Roland ("o canto de Rolando"), Orlando em italiano, tem por núcleo narrativo o fato histórico da expedição de Carlos Magno, rei da França de 768 a 814, contra a cidade espanhola de Saragoça, no ano de 778. O motivo da expedição francesa era atender à solicitação de ajuda de algum emir sarraceno, atacado pelo rei mouro de Saragoça. Mas uma revolta de saxões obrigou o rei da França a voltar para seu território, antes de levar a termo sua missão bélica. Durante a retirada, cristãos bascos atacaram sua retaguarda nos montes Pirineus e dizimaram seu exército. Ao redor deste fato histórico, foram surgindo paulatinamente lendas populares que adulteraram a realidade dos fatos, idealizando a ação dos Paladinos de Carlos Magno. Após uma longa tradição oral, que durou mais de três séculos, os cantos primitivos, relativos ao chamado "ciclo carolíngio", devem ter encontrado um rapsodo que lhes deu unidade e estrutura de poema épico. A primeira redação conhecida da obra, que remonta ao ano de 1170, apresenta as seguintes deturpações históricas: os cristãos bascos são transformados em muçulmanos; o herói Rolando é considerado sobrinho de Carlos Magno; o número dos componentes dos exércitos francês e mouro é exagerado; a duração da expedição é prolongada por vários anos; a derrota do exército de Carlos Magno é convertida em vitória; é acrescentada a intervenção do maravilhoso cristão no fato histórico; as ações de guerra são misturadas com episódios familiares e amorosos; enfim, são encontráveis no poema anacronismos de costumes, lugares e personagens. Essas alterações explicam-se pela longa distância existente entre o tempo da história e o tempo da narração. O manuscrito de 1170 ficou por longos séculos no oblívio e só foi descoberto em 1832. A partir desta data, começaram as edições e os estudos sobre a epopéia francesa. O manuscrito de Oxford, nosso texto de base, contém 3 998 versos, decassílabos na sua maioria, com cesura no quarto pé, de rima assonante, sem uma divisão regular em estrofes. O assunto poemático é dividido em três partes: "A traição de Ganelão", "A morte de Rolando" e "O castigo". Eis o início do poema, onde se encontra o prólogo ou a "proposição", a antecipação resumida dos fatos a serem contados:

"O rei Carlos, nosso grande imperador,
ficou na Espanha sete longos anos:
até o mar, ele conquistou a remota terra.
Não existe castelo, que lhe resista;
nenhuma fortaleza ou cidade resta para dominar,
com exceção de Saragoça, que fica numa montanha.
É domínio do rei Marsílio, Marsílio que não ama a Deus,
que serve a Maomé e invoca Apolo;
mas ele não pode evitar a desgraça que o espera"

A traição de Ganelão

Após o breve prólogo, a trama do poema começa com a assembléia dos sarracenos em Saragoça. O rei Marsílio, ouvido o conselho de Blancandrin, resolve enviar uma embaixada ao rei Carlos Magno, que está com seu exército sediado em território espanhol, com ricos donativos e a promessa de conversão à religião cristã, em troca da retirada do exército francês. Recebido Blancandrin, o rei Carlos submete a proposta dos mouros à apreciação dos doze "pares" de França e dos demais nobres cavaleiros, entre os quais se destacam Rolando, sobrinho do rei; Oliveiro, cuja irmã Aude é noiva do herói; o conde Ganelão, casado com a viúva Berta, irmã de Carlos Magno e mãe de Rolando; o arcebispo Turpin, valoroso guerreiro. A opinião de Rolando é de não aceitar o acordo e de continuar a luta contra os muçulmanos, mas vence o parecer contrário de seu padrasto. A pedido do herói, então, o próprio Ganelão é nomeado embaixador junto ao rei de Saragoça, recebendo o bastão (símbolo da paz) e a luva (símbolo da guerra). Este aceita a incumbência com falsa relutância e demonstra seu ódio para com o filho de sua esposa. Chegado a Saragoça, Ganelão maquina a traição para causar a morte de Rolando: convence o emir de que ele só obterá a vitória sobre os franceses se eliminar Rolando, o mais forte dos doze paladinos de Carlos Magno. Aconselha Marsílio a fingir aceitar as condições de paz impostas pelos franceses para, no momento oportuno, atacar o exército do rei da França durante a retirada do território espanhol. Recebidos ricos donativos e a promessa de um tributo anual, Ganelão volta aos acampamentos franceses e anuncia o sucesso de sua embaixada. Aconselha, então, ao rei Carlos deixar Rolando e um bom número de cavaleiros na retaguarda, enquanto o grosso do exército volta para a França. Entretanto, mais de cem mil muçulmanos se preparam para atacar a retaguarda do exército francês.

A morte de Rolando

O sábio Oliveiro, percebendo a enorme superioridade numérica do exército mouro, pronto a assaltá-los em Roncesvales, num estreito das montanhas dos Pirineus, pede a Rolando para tocar uma corneta cujo som, ouvido a longa distância, avisaria o rei Carlos do perigo. Mas o herói, considerando a solicitação de socorro como um ato de covardia, nega-se a seguir o conselho do amigo, confiando no valor de seus nobres guerreiros. Na primeira escaramuça, os franceses, chefiados por Rolando, Oliveiro e o arcebispo Turpin, obtêm um bom resultado, conseguindo matar milhares de muçulmanos, inclusive o irmão e o sobrinho do rei Marsílio e o terrível sarraceno Abismo. Mas a grande massa inimiga, aos poucos, vai dizimando os nobres cavaleiros cristãos. Apesar do grande valor de Rolando que, empunhando sua milagrosa espada Durendal, mata inúmeros sarracenos, os franceses são reduzidos a um punhado de cavaleiros que ainda conseguem resistir à superioridade numérica dos inimigos. Face à certeza da iminente derrota, Rolando decide tocar a corneta. Carlos Magno, que se encontra a muitas milhas de distância, ouve o apelo do sobrinho e imagina a traição de Ganelão. Imediatamente ordena a volta do exército para socorrer os paladinos. Mas é tarde: o rei da França, pelo fraco eco do último som da corneta, percebe que Rolando está morrendo. Com efeito, após a valorosa morte do conde Oliveiro e do arcebispo Turpin, Rolando, último supérstite da chacina, gravemente ferido, sente a morte se aproximar. Protegendo com seu corpo a espada e a corneta, dirige a Deus uma fervorosa prece e sua alma é levada ao céu pelo arcanjo São Gabriel.

O castigo

Carlos Magno e seu exército chegam a Roncesvales e avistam os muçulmanos que se afastam da chacina. Começando a cair a noite, o rei Carlos, como fizera o bíblico Josué, pede a Deus que pare o sol e retarde a chegada da noite para ter tempo de alcançar os infiéis. São Gabriel lhe comunica que sua prece é atendida por Deus. Os sarracenos, para salvarem-se, jogam-se no rio Ebro, invocando inutilmente a proteção das divindades Apolo, Tervagant e Maomé. Todos morrem afogados, com exceção do rei Marsílio, que chega a Saragoça com a mão direita cortada. O exército francês volta a Roncesvales e são realizados os funerais dos nobres franceses perecidos no campo de batalha. Os corpos dos três maiores heróis, Rolando, Oliveiro e Turpin, são embalsamados. Entretanto, o emir de Babilônia, o forte Baligant, desembarca na Espanha para vingar as derrotas dos muçulmanos. Mas Carlos Magno e seu exército conseguem uma clamorosa vitória sobre a armada sarracena, o próprio rei Carlos, ajudado por São Gabriel, enfrentando em luta singular e matando o valoroso Baligant. Os infiéis supérstites fogem e são perseguidos até a cidade de Saragoça. Os cristãos destroem os templos e as estátuas dos deuses pagãos, batizam pela força todos os muçulmanos e levam para a França a rainha Branimonde como prisioneira. Chegados a Aix, a cidade sede do império de Carlos Magno, dá-se início ao julgamento do traidor Ganelão. Antes, porém, o poeta descreve a morte da jovem Aude, noiva de Rolando. Ela morre de dor à notícia do falecimento de seu amado. É sepultada com honras régias. Ganelão, aprisionado e torturado, é levado perante a corte judicial. Trinta familiares tomam sua defesa e um deles, Pinabel, propõe que a culpabilidade do traidor seja decidida mediante um duelo, desafiando o nobre Thierry, o mais violento acusador de Ganelão. O campeão de Rolando, com a ajuda divina, consegue derrotar o campeão de Ganelão. A vontade de Deus está revelada: o traidor, amarrado a quatro cavalos, é condenado a morrer esquartejado.

Sentido do poema: defesa da fé cristã e dos ideais da Cavalaria.

La Chanson de Roland é a expressão artística do complexo de idéias e sentimentos dominantes na Europa ao redor da passagem do primeiro Milênio. Nessa época, a história registra uma série de expedições francesas e de outros povos da Europa central para libertar Saragoça e todo o vale do rio Ebro do jugo muçulmano. Tais expedições militares tinham duas finalidades: uma, política, que era a expulsão dos mouros, povo etnicamente diferente, do território espanhol; outra, religiosa, pois a Igreja apoiava e até organizava essas lutas, sob forma de cruzadas, enviando bispos e clérigos para ajudar os exércitos cristãos a derrotar os infiéis. Era natural que, nesse clima histórico, as antigas lendas do ciclo carolíngio fossem retomadas e reelaboradas como estímulo para os cavaleiros cristãos. Acrescente-se que o sistema político vigente, o Feudalismo, fundamentado no ideal de fidelidade a Deus e ao soberano escolhido por vontade divina, favorecia a união de todos os cristãos para a luta contra o inimigo comum, que era o mouro infiel. A instituição da cavalaria, de outro lado, visou a arregimentar os nobres europeus da Idade Média em torno dos ideais fundamentais da humanidade: patriotismo, honra, amizade, coragem, fé em Deus e defesa da religião cristã. A epopéia francesa exalta este conjunto ideológico, apresentando o protagonista Rolando como o paladino da devoção a seu rei e a seu Deus, como o herói que prefere morrer a cometer um ato de covardia, como o amigo sempre pronto a sacrificar-se e a assumir os riscos maiores. E por isso que Rolando se tornou o símbolo de uma concepção de vida e o culto de sua personalidade mítica atravessou as fronteiras do tempo e do espaço. Especialmente na Itália, o culto de Roland ("Orlando", por eufonia) motivou a criação de vários poemas épicos: Orlando Enamorado, Orlando Furioso, Jerusalém Libertada. Ver também Medievalismo e Épica.