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Dom Pedro e Dom Miguel/Capítulo 7

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CAPITULO VII


A outorga da Carta


A Carta outorgada no Rio de Janeiro a 29 d'Abril de 1826 e que fazia do juramento a condição da abdicação real em favor de Dona Maria, descontentou vivamente os partidarios da antiga ordem de cousas, os quaes em Dom Miguel concentravam suas melhores esperanças. Por isso o enlace projectado parecia-lhes disparatado e a sua ira anti-demagogica não desarmou deante da clausula de previa acceitação da organização constitucional pelos Trez Estados que de ha seculos, desde a fundação do reino, formavam a assembléa consultiva do Rei, a que impetrava e ao mesmo tempo suggeria seus actos. A acceitação fôra feita indispensavel a pedido de Sir Charles Stuart, assessor britannico dos dous lados do oceano[1], a quem Canning votava especial antipathia e a quem formalmente prohibira de agir como commissario do Imperador-Rei e de tomar parte como conselheiro ou consultor na regencia de Lisboa. Segundo o Secretario d'Estado dos negocios estrangeiros da Grã Bretanha, podia isso ser mal interpretado, como uma intervenção ingleza nos assumptos domesticos portuguezes, e provocar represalias. No fundo havia muito de uma questão pessoal, pelo menos tanto ciume quanto previdencia.

Canning, que se jactava de ser liberal quando comparava suas idéas com os preconceitos da Santa Alliança, preferia á primeira vista a uma Carta de procedencia brazileira á convocação dos Trez Estados do reino com o fim de regular o problema organico suscitado em Portugal pelas circumstancias historicas. Seu liberalismo era porem bastante conservador e sobretudo bastante opportunista para que elle seguisse insistindo na participação das velhas Côrtes. Do que com razão duvidava muito era do enthusiasmo nacional por aquelle « invento maçonico » de uma Carta. Porventura lia o fundo do pensamento de Dom Pedro, ao mesmo tempo que previa as difficuldades que ia produzir o conflicto entre o espirito novo e o espirito antigo no seio de uma sociedade collectivamente de todo estranha ao espirito de progresso. O corpo de exercito que pouco depois despachou para Portugal não iria defender a Constituição e sim proteger o paiz contra os designios da Hespanha, onde iam refazer-se ou armar-se as forças absolutistas portuguezas, as quaes não tardariam a insurgir- se na provincia contra o acolhimento dispensado por Lisboa e pelo Porto ao brinde do Imperador do Brazil.

A maioria do conselho de regencia votou contra a publicação immediata do documento trazido do Rio de Janeiro por Sir Charles Stuart. Foi Saldanha quem iniciou a serie dos seus pronunciamentos, ameaçando fazer proclamar a dadiva real pelo exercito se o não fosse pelo governo. A Carta foi assim publicada em Lisboa a 12 de Julho, provocando demonstrações enternecedoras por parte da burguezia abastada e radical que contava graças a ella reconquistar o mando perdido em 1823.

A nova da Constituição exportada do Brazil para a Europa — a Europa de 1815 a 1830 — causou verdadeiro alarme em Pariz no espirito do ministro, barão de Damus, e entre os representantes do que Canning chamava com justeza « a alliança continental ». Canning acreditava que Metternich ia ainda accentuar o alarme e era pelo menos o que de Vienna annunciava o embaixador Wellesley. A Canning parecia singular que, tendo-se demolido os systemas constitucionaes de Napoles e da Hespanha por não emanarem do soberano, se quizesse proceder similarmente com a Carta portugueza outorgada pelo soberano legitimo[2].

A França não esposava comtudo semelhantes designios, abertamente defendidos pelos jornaes affectos á Congregação — La Quotidienne e Le Drapeau Blanc e por pamphletarios como Laurentie, que á matança de S. Bartholomeu chamava um saudavel rigor. O seu governo pronunciou-se antes com muita prudencia e moderação[3]. Quanto a Metternich, que pessoalmente andara envolvido em muitas mudanças politicas e dynasticas e cujo caracter era mais sceptico ainda que o de Canning, o qual não peccava pela credulidade, a Constituição portugueza não possnia a seus olhos grande importancia. Quando muito a acharia thema para um d'esses longos aranzeis sem succo com que elle, no dizer do conde de Sainte-Aulaire, embaixador da França em Vienna, costumava embrulhar os assumptos para esconder o seu pensamento. Que fosse Dom Miguel, que fosse o proprio Dom Pedro que, como regente, a applicasse como o desejava Saldanha pela estranha theoria de que ninguem melhor do que o Imperador para servir de fiscal á operação necessaria para preservar o reino de uma annexação estrangeira, caso portanto de administração temporaria, a Carta parecia destinada a curta vida.

Dom Miguel não mudara certamente de idéas em Vienna, e Dom Pedro já mostrara no Rio de Janeiro como se dissolve as assembléas incommodas pelo seu liberalismo. A ambição de desempenhar um papel conspicuo no Velho Mundo poderia mais tarde tental-o; o desejo de tornar-se um Bolivar peninsular poderia um dia instigal-o: isso não impediria o seu natural de volver á tona e o autocrata por temperamento despir as vestes do amigo dos povos e das liberdades. Dom Pedro estava forçado a outorgar uma carta a Portugal. Se ahi mantivesse um governo absoluto, seus subditos brazileiros não poderiam confiar na sua fidelidade á monarchia limitada, e por seu lado « o povo portuguez não soffreria ser tratado como escravo, quando aquelles a quem elle não estava costumado a olhar como seus superiores eram julgados dignos de uma constituição mais popular »[4].

Dom Miguel estaria mais livre para agir, se bem que Dom João VI houvesse restabelecido em 1824 a antiga Constituição portugueza, a qual nunca fôra aliás abrogada, abolindo virtualmente a monarchia absoluta de Dom João V e substituindo-a por um governo que admittia a antiga tradicional participação da nação[5].

Canning depressa acceitou as considerações de Dom Pedro porque é proprio do politico e mesmo do estadista não se obstinar nas suas vistas pessoaos e não vacillar em modifical-as quando n'isto se lhe depara vantagem publica ou reconhece que outros motivos são mais sabios. As suas razões acham-se perfeitamente deduzidas[6].

«Se as antigas Côrtes de Portugal fossem uma instituição tão notoria e definida que não pudesse surgir divergencia alguma de opiniões sobre a forma da sua reunião, as attribuições que lhes cabem e as limitações que devem necessariamente ser postas aos seus poderes, ou se existisse em Portugal uma auctoridade capaz de prescrever aquella forma no momento da convocação, designar aquellas attribuições e fazer respeitar aquellas limitações, com a certeza para mais de ser obedecida, não se pode negar que haveria consideravel proveito em obter, para a nova Carta elaborada por Dom Pedro, a sancção de semelhantes Côrtes, nome que remonta á installação da realeza portugueza. As Côrtes tendo-se porem sob não importa que aspecto tornado obsoletas durante mais de um seculo, a sua organização primitiva parecendo mais popular que a do Parlamento proposto por Dom Pedro, visto que as Tres Ordens do Estado se reuniam separadamente e que a da nobreza temporal se constituia por eleição e não por nomeação da corôa, deve-se porventura admittir que algum fundamento existe para a apprehensão de Dom Pedro — que a convocação d'aquellas Côrtes mais facilmente levaria á formação de uma Assembléa Constituinte do que a adopção immediata da sua Carta.

Não se pode absolutamente duvidar que, quando Luiz XVI de França foi induzido a convocar os Estados Geraes do reino, seus conselheiros imaginaram que, pelo menos com relação á natureza d'essa assembléa, ao genero das suas attribuições e extensão dos seus poderes, existia, quer um assentimento geral que impediria toda discussão sobre taes topicos, quer auctoridade bastante da parte da corôa para decidil-os a seu feitio. Não é necessario notar quanto semelhantes esperanças foram mallogradas e com que rapidez uma instituição evocada do mais intimo e sacrosanto passado da antiga monarchia assumiu novo aspecto e se tornou fatal á propria monarchia. Este exemplo e seus effeitos são bem dignos de uma seria meditação. E ha ainda outra difficuldade a encarar na convocação das Côrtes se a ellas se fizer appello em vez de adoptar a Carta Constitucional de Dom Pedro. Tal substituição, mesmo na intenção suggerida pela França de sanccionar a adopção da Constituição, seria uma infracção (departure) ás ordens do Imperador e portanto um desafio à sua auctoridade.

Circula entre os portuguezes a opinião, que o marquez de Palmella me disse haver sido n'estes ultimos dias publicada em Londres, que por motivo da separação do Brazil e Portugal Dom Pedro se tornara Principe estrangeiro, como tal incapaz de herdar a corôa portugueza. Semelhante opinião, falsa ou verdadeira em theoria, será praticamente inoffensiva em caso de adopção da Carta Constitucional, porque então a abdicação de Dom Pedro se tornará total e final. Se se interpuzer porem entre os dous actos (a outorga e a adopção) uma reunião das Côrtes, Portugal e seu soberano ficarão logo collocados em opposição um ao outro, e esse acto de desobediencia á sua primeira ordem servirá para legitimar (countenance) a doutrina de uma negação formal do seu direito de successão ao throno. As consequencias de tal disputa são em demasia evidentes: a guerra civil e uma intervenção estrangeira activa são os males que ella inevitavelmente acarretará a Portugal ».

Canning favorecia pois a acceitação da Carta associada á abdicação — outorga e renuncia conjugadas sem participação ou ingerencia das Côrtes. Não tivera elle proprio interferencia na redacção do documento: apenas é licito pensar que este seria talvez differente se outro fosse o espirito do Foreign Office que não o do rompimento com os principios da Santa Alliança. A Carta de Dom Pedro representava uma transacção habil, a um tempo zelando as prerogativas reaes; consagrando a influencia da alta nobreza e do clero n'uma Casa de Pares e a importancia da intellectualidade e da burguezia e tambem da pequena nobreza n'uma Camara de Deputados, com a iniciativa dos impostos assim como a corôa tinha a iniciativa das leis por meio dos seus ministros responsáveis; incluindo as liberdades essenciaes pela abolição da tortura, pela prohibição das prisões arbitrarias, pelo processo por jury, pela segurança de propriedade e de consciencia e de outras franquias.

Canning esquivava-se mesmo a emittir juizo sobre os termos da Constituição, que não podiam deixar de ser-lhe sympathicos. Exceptuava apenas dous artigos que interessavam mui de perto a Grã Bretanha. Um era o que dizia respeito á liberdade dos cultos, o qual, redigido como estava, reduzia as franquias ou antes os privilegios de que em Portugal gosava a Egreja Anglicana, pois vedava ás capellas reformadas terem o aspecto exterior de templos que a capella ingleza protestante de Lisboa possuia em tempo do antigo regimen. O outro tratava da abolição das jurisdicções privativas, que implicaria a suppressão do juiz conservador britannico, considerada indispensavel ao bem estar e á liberdade de acção dos subditos britannicos.

É verdade que no Brazil o tratado assignado por Sir Charles Stuart (não ratificado porque, como lhe era habitual, o negociador excedera as instrucções recebidas e seguira seus proprios raciocinios) fizera desapparecer aquella funcção; mas alem mar ella sómente se justificava pelo tratado de 1810 — o tratado Linhares-Strangford —, a expirar-se. Em Portugal porem o cargo assentava nos velhos tratados perpetuos e, segundo o Foreign Office, uma modificação de regimen domestico não podia determinar a mudança de obrigações internacionaes[7].



Evitava Canning com tanto mais cuidado parecer influir sobre as resoluções do governo portuguez exercido pela regencia em nome de Dom Pedro IV, quanto, ao que dizia[8], só tinha que se louvar da linguagem de Metternich, não sò com relação aos decretos do Imperador do Brazil, como sobre o procedimento britannico — «linguagem no mais alto grau moderada, judiciosa e conciliatoria »[9] D'ahi especialmente a interdicção a Sir Charles Stuart de praticar a sua diplomacia accessoria.

Os interesses aliás da Inglaterra e da Austria eram communs no Oriente e contrarios aos da Russia, a qual queria expulsar da Europa o Turco para tomar o seu lugar. A Austria já procurava ampliar o seu proprio poderio nos Balkans e a Inglaterra reservava-se o dominio exclusivo do Mediterraneo, pois que todos os oceanos devem cahir debaixo da sua jurisdicção.

Houve comtudo, quasi immediatamente depois, uma ameaça de alteração n'essa harmonia de vistas. O despacho de Canning a Sir William A' Court de 27 de Julho[10] communicava que o principe Esterhazy, embaixador d'Austría, o avisara verbalmente que, se a Hespanha representasse contra o effeito que as modificações occorridas em Portugal poderiam exercer contra a sua segurança domestica, a corte de Vienna não poderia deixar de approvar e apoiar essas representações. Canning respondeu incontinenti que os tratados que ligavam Grã Bretanha e Portugal o forçavam a dar á Hespanha um bom conselho, qual o de evitar por sua attitude que fossem postos em execução taes convenios, que para a Inglaterra constituiam uma preciosa achega diplomatica, em vista da situação. Era elle de resto o primeiro a comprehender não ser licito a Metternich, paladino do absolutismo, repudiar a Hespanha, o que significaria sacrificar suas proprias doutrinas politicas em honra dos regimens constitucionaes. A distancia a percorrer da theoria á pratica, a saber, da salvaguarda d'esses. principios á sua defeza pelas armas, era todavia bastante grande.

Declarava-se Canning «mui pouco inclinado a brigar com principios abstractos ou opiniões theoricas differentes d'aquellas pelas quaes se orientava a Inglaterra e apenas vivamente desejoso de afastar quaesquer divergencias e proseguir n'essa intima cooperação com a Austria que já produzira resultados tão satisfactorios ao tempo da difficil e em certo momento quasi insoluvel negociação entre Portugal e Brazil »[11]. Por sua vez a Austria não se queria dar ao luxo de esposar um conflicto por amor da Constituição portugueza e menos ainda em desabono da legitimidade de Dom Pedro, que ella reconhecia. Confiava no futuro, quer dizer em Dom Miguel, e a darmos credito ao historiador Solano Constancio, toda a gente assim pensava, inclusive o Imperador que, só podendo ambicionar a gloria de um legislador liberal, não nutria muitas illusões sobre a duração da sua dadiva real e cessara mesmo de ter-lhe apego desde que verificara não poder ser soberano de toda a monarchia. Quando seu irmão mais tarde restabeleceu o regimen absoluto e elle proprio se via a braços com o sentimento democratico, senão republicano do Brazil, conta-se que Dom Pedro exclamou, ao receber a noticia da abolição da sua Carta tão ponderada — Fez muito bem!

Porventura era Canning o unico a enganar-se e a acreditar na estabilidade do regimen que protegia? Estaria isto em contradicção com sua habitual sagacidade: a verdade porem é que o seu espirito nutria duvidas a respeito. «É impossivel, escrevia elle[12], não descobrir na situação que se vai prolongar até o consorcio da Rainha muita perplexidade e estranheza (awkwardness) e vale a pena reflectir no melhor meio de obviar inconvenientes e ao perigo que d'ahi poderia resultar. O ponto evidentemente mais necessario a fixar é que Dom Miguel não volte para Portugal antes da joven Rainha alli chegar: mas como obtel-o? Não se pode razoavelmente esperar que o infante permaneça indefinidamente em Vienna, nem é talvez muito para desejar-se que assim aconteça. É possivel apressar a vinda de Dona Maria, ou é preferivel recommendar a ida de Dom Miguel para o Brazil? Eis as duas alternativas que se apresentam naturalmente á escolha. O governo francez tende para a segunda... »







Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Oliveira Martins, Portugal Contemporaneo
  2. Despacho de Canning a Sir William A' Court, de 28 de Junho de 1826, B. R. O., F. O.
  3. Despacho de Canning a Sir William A' Court de 17 de Julho de 1826, B. R. O., F. O.
  4. Questão Portugueza, Lisboa, 1827.
  5. Nas Ordenações Philippinas se menciona, no preambulo de cada lei, que para sua auctoridade é necessario o consentimento das Côrtes. O importante poder de conceder subsidios estáva indisputavelmente nas Côrtes desde o mais remoto periodo da historia authentica até a suspensão da Constituição no seculo XVIII. O alvará real não podia revogar a lei feita em Côrtes, e o chanceller tinha o direito de recusar o registo a qualquer acto que devesse valer por mais de um anno. Ora, o registo era necessario para sua validade. As Cortes de 1385 e depois as de 1641 declararara illegaes todos os tributos impostos pelo poder despotico». (Questão Portugneza).
  6. Despacho citado de 17 de Junho de 1826.
  7. Despacho de Canning a Sir William A' Court, de 19 de Julho de 1826, B. R. O., F. O.
  8. Despacho de 22 de Julho de 1826, B. R. O., F. O.
  9. « A prompta e franca confiança com que as cortes da Austria e da França corresponderam ás nossas seguranças, collocam-nos ainda mais na obrigação de vigiar o que se passa em Lisboa para que nada occorra que possa d'algum modo lançar a duvida sobre aquellas seguranças.» (Despacho citado).
  10. B. R. O., F. O.
  11. Despacho citado de 27 de Julho de 1826.
  12. Despacho secreto a A'Court de 27 de Julho de 1826, B. R. O., F, O.