Dom Pedro e Dom Miguel/Capítulo 7
A Carta outorgada no Rio de Janeiro a 29 d'Abril de 1826 e que fazia do juramento a condição da abdicação real em favor de Dona Maria, descontentou vivamente os partidarios da antiga ordem de cousas, os quaes em Dom Miguel concentravam suas melhores esperanças. Por isso o enlace projectado parecia-lhes disparatado e a sua ira anti-demagogica não desarmou deante da clausula de previa acceitação da organização constitucional pelos Trez Estados que de ha seculos, desde a fundação do reino, formavam a assembléa consultiva do Rei, a que impetrava e ao mesmo tempo suggeria seus actos. A acceitação fôra feita indispensavel a pedido de Sir Charles Stuart, assessor britannico dos dous lados do oceano[1], a quem Canning votava especial antipathia e a quem formalmente prohibira de agir como commissario do Imperador-Rei e de tomar parte como conselheiro ou consultor na regencia de Lisboa. Segundo o Secretario d'Estado dos negocios estrangeiros da Grã Bretanha, podia isso ser mal interpretado, como uma intervenção ingleza nos assumptos domesticos portuguezes, e provocar represalias. No fundo havia muito de uma questão pessoal, pelo menos tanto ciume quanto previdencia.
A maioria do conselho de regencia votou contra a publicação immediata do documento trazido do Rio de Janeiro por Sir Charles Stuart. Foi Saldanha quem iniciou a serie dos seus pronunciamentos, ameaçando fazer proclamar a dadiva real pelo exercito se o não fosse pelo governo. A Carta foi assim publicada em Lisboa a 12 de Julho, provocando demonstrações enternecedoras por parte da burguezia abastada e radical que contava graças a ella reconquistar o mando perdido em 1823.
A nova da Constituição exportada do Brazil para a Europa — a Europa de 1815 a 1830 — causou verdadeiro alarme em Pariz no espirito do ministro, barão de Damus, e entre os representantes do que Canning chamava com justeza « a alliança continental ». Canning acreditava que Metternich ia ainda accentuar o alarme e era pelo menos o que de Vienna annunciava o embaixador Wellesley. A Canning parecia singular que, tendo-se demolido os systemas constitucionaes de Napoles e da Hespanha por não emanarem do soberano, se quizesse proceder similarmente com a Carta portugueza outorgada pelo soberano legitimo[2].
A França não esposava comtudo semelhantes designios, abertamente defendidos pelos jornaes affectos á Congregação — La Quotidienne e Le Drapeau Blanc e por pamphletarios como Laurentie, que á matança de S. Bartholomeu chamava um saudavel rigor. O seu governo pronunciou-se antes com muita prudencia e moderação[3]. Quanto a Metternich, que pessoalmente andara envolvido em muitas mudanças politicas e dynasticas e cujo caracter era mais sceptico ainda que o de Canning, o qual não peccava pela credulidade, a Constituição portugueza não possnia a seus olhos grande importancia. Quando muito a acharia thema para um d'esses longos aranzeis sem succo com que elle, no dizer do conde de Sainte-Aulaire, embaixador da França em Vienna, costumava embrulhar os assumptos para esconder o seu pensamento. Que fosse Dom Miguel, que fosse o proprio Dom Pedro que, como regente, a applicasse como o desejava Saldanha pela estranha theoria de que ninguem melhor do que o Imperador para servir de fiscal á operação necessaria para preservar o reino de uma annexação estrangeira, caso portanto de administração temporaria, a Carta parecia destinada a curta vida.
Dom Miguel não mudara certamente de idéas em Vienna, e Dom Pedro já mostrara no Rio de Janeiro como se dissolve as assembléas incommodas pelo seu liberalismo. A ambição de desempenhar um papel conspicuo no Velho Mundo poderia mais tarde tental-o; o desejo de tornar-se um Bolivar peninsular poderia um dia instigal-o: isso não impediria o seu natural de volver á tona e o autocrata por temperamento despir as vestes do amigo dos povos e das liberdades. Dom Pedro estava forçado a outorgar uma carta a Portugal. Se ahi mantivesse um governo absoluto, seus subditos brazileiros não poderiam confiar na sua fidelidade á monarchia limitada, e por seu lado « o povo portuguez não soffreria ser tratado como escravo, quando aquelles a quem elle não estava costumado a olhar como seus superiores eram julgados dignos de uma constituição mais popular »[4].
Dom Miguel estaria mais livre para agir, se bem que Dom João VI houvesse restabelecido em 1824 a antiga Constituição portugueza, a qual nunca fôra aliás abrogada, abolindo virtualmente a monarchia absoluta de Dom João V e substituindo-a por um governo que admittia a antiga tradicional participação da nação[5].
Canning depressa acceitou as considerações de Dom Pedro porque é proprio do politico e mesmo do estadista não se obstinar nas suas vistas pessoaos e não vacillar em modifical-as quando n'isto se lhe depara vantagem publica ou reconhece que outros motivos são mais sabios. As suas razões acham-se perfeitamente deduzidas[6].
«Se as antigas Côrtes de Portugal fossem uma instituição tão notoria e definida que não pudesse surgir divergencia alguma de opiniões sobre a forma da sua reunião, as attribuições que lhes cabem e as limitações que devem necessariamente ser postas aos seus poderes, ou se existisse em Portugal uma auctoridade capaz de prescrever aquella forma no momento da convocação, designar aquellas attribuições e fazer respeitar aquellas limitações, com a certeza para mais de ser obedecida, não se pode negar que haveria consideravel proveito em obter, para a nova Carta elaborada por Dom Pedro, a sancção de semelhantes Côrtes, nome que remonta á installação da realeza portugueza. As Côrtes tendo-se porem sob não importa que aspecto tornado obsoletas durante mais de um seculo, a sua organização primitiva parecendo mais popular que a do Parlamento proposto por Dom Pedro, visto que as Tres Ordens do Estado se reuniam separadamente e que a da nobreza temporal se constituia por eleição e não por nomeação da corôa, deve-se porventura admittir que algum fundamento existe para a apprehensão de Dom Pedro — que a convocação d'aquellas Côrtes mais facilmente levaria á formação de uma Assembléa Constituinte do que a adopção immediata da sua Carta.
Não se pode absolutamente duvidar que, quando Luiz XVI de França foi induzido a convocar os Estados Geraes do reino, seus conselheiros imaginaram que, pelo menos com relação á natureza d'essa assembléa, ao genero das suas attribuições e extensão dos seus poderes, existia, quer um assentimento geral que impediria toda discussão sobre taes topicos, quer auctoridade bastante da parte da corôa para decidil-os a seu feitio. Não é necessario notar quanto semelhantes esperanças foram mallogradas e com que rapidez uma instituição evocada do mais intimo e sacrosanto passado da antiga monarchia assumiu novo aspecto e se tornou fatal á propria monarchia. Este exemplo e seus effeitos são bem dignos de uma seria meditação. E ha ainda outra difficuldade a encarar na convocação das Côrtes se a ellas se fizer appello em vez de adoptar a Carta Constitucional de Dom Pedro. Tal substituição, mesmo na intenção suggerida pela França de sanccionar a adopção da Constituição, seria uma infracção (departure) ás ordens do Imperador e portanto um desafio à sua auctoridade.
Circula entre os portuguezes a opinião, que o marquez de Palmella me disse haver sido n'estes ultimos dias publicada em Londres, que por motivo da separação do Brazil e Portugal Dom Pedro se tornara Principe estrangeiro, como tal incapaz de herdar a corôa portugueza. Semelhante opinião, falsa ou verdadeira em theoria, será praticamente inoffensiva em caso de adopção da Carta Constitucional, porque então a abdicação de Dom Pedro se tornará total e final. Se se interpuzer porem entre os dous actos (a outorga e a adopção) uma reunião das Côrtes, Portugal e seu soberano ficarão logo collocados em opposição um ao outro, e esse acto de desobediencia á sua primeira ordem servirá para legitimar (countenance) a doutrina de uma negação formal do seu direito de successão ao throno. As consequencias de tal disputa são em demasia evidentes: a guerra civil e uma intervenção estrangeira activa são os males que ella inevitavelmente acarretará a Portugal ».
Canning favorecia pois a acceitação da Carta associada á abdicação — outorga e renuncia conjugadas sem participação ou ingerencia das Côrtes. Não tivera elle proprio interferencia na redacção do documento: apenas é licito pensar que este seria talvez differente se outro fosse o espirito do Foreign Office que não o do rompimento com os principios da Santa Alliança. A Carta de Dom Pedro representava uma transacção habil, a um tempo zelando as prerogativas reaes; consagrando a influencia da alta nobreza e do clero n'uma Casa de Pares e a importancia da intellectualidade e da burguezia e tambem da pequena nobreza n'uma Camara de Deputados, com a iniciativa dos impostos assim como a corôa tinha a iniciativa das leis por meio dos seus ministros responsáveis; incluindo as liberdades essenciaes pela abolição da tortura, pela prohibição das prisões arbitrarias, pelo processo por jury, pela segurança de propriedade e de consciencia e de outras franquias.
Canning esquivava-se mesmo a emittir juizo sobre os termos da Constituição, que não podiam deixar de ser-lhe sympathicos. Exceptuava apenas dous artigos que interessavam mui de perto a Grã Bretanha. Um era o que dizia respeito á liberdade dos cultos, o qual, redigido como estava, reduzia as franquias ou antes os privilegios de que em Portugal gosava a Egreja Anglicana, pois vedava ás capellas reformadas terem o aspecto exterior de templos que a capella ingleza protestante de Lisboa possuia em tempo do antigo regimen. O outro tratava da abolição das jurisdicções privativas, que implicaria a suppressão do juiz conservador britannico, considerada indispensavel ao bem estar e á liberdade de acção dos subditos britannicos.
É verdade que no Brazil o tratado assignado por Sir Charles Stuart (não ratificado porque, como lhe era habitual, o negociador excedera as instrucções recebidas e seguira seus proprios raciocinios) fizera desapparecer aquella funcção; mas alem mar ella sómente se justificava pelo tratado de 1810 — o tratado Linhares-Strangford —, a expirar-se. Em Portugal porem o cargo assentava nos velhos tratados perpetuos e, segundo o Foreign Office, uma modificação de regimen domestico não podia determinar a mudança de obrigações internacionaes[7].
Evitava Canning com tanto mais cuidado parecer influir sobre as resoluções do governo portuguez exercido pela regencia em nome de Dom Pedro IV, quanto, ao que dizia[8], só tinha que se louvar da linguagem de Metternich, não sò com relação aos decretos do Imperador do Brazil, como sobre o procedimento britannico — «linguagem no mais alto grau moderada, judiciosa e conciliatoria »[9] D'ahi especialmente a interdicção a Sir Charles Stuart de praticar a sua diplomacia accessoria.
Os interesses aliás da Inglaterra e da Austria eram communs no Oriente e contrarios aos da Russia, a qual queria expulsar da Europa o Turco para tomar o seu lugar. A Austria já procurava ampliar o seu proprio poderio nos Balkans e a Inglaterra reservava-se o dominio exclusivo do Mediterraneo, pois que todos os oceanos devem cahir debaixo da sua jurisdicção.
Houve comtudo, quasi immediatamente depois, uma ameaça de alteração n'essa harmonia de vistas. O despacho de Canning a Sir William A' Court de 27 de Julho[10] communicava que o principe Esterhazy, embaixador d'Austría, o avisara verbalmente que, se a Hespanha representasse contra o effeito que as modificações occorridas em Portugal poderiam exercer contra a sua segurança domestica, a corte de Vienna não poderia deixar de approvar e apoiar essas representações. Canning respondeu incontinenti que os tratados que ligavam Grã Bretanha e Portugal o forçavam a dar á Hespanha um bom conselho, qual o de evitar por sua attitude que fossem postos em execução taes convenios, que para a Inglaterra constituiam uma preciosa achega diplomatica, em vista da situação. Era elle de resto o primeiro a comprehender não ser licito a Metternich, paladino do absolutismo, repudiar a Hespanha, o que significaria sacrificar suas proprias doutrinas politicas em honra dos regimens constitucionaes. A distancia a percorrer da theoria á pratica, a saber, da salvaguarda d'esses. principios á sua defeza pelas armas, era todavia bastante grande.
Declarava-se Canning «mui pouco inclinado a brigar com principios abstractos ou opiniões theoricas differentes d'aquellas pelas quaes se orientava a Inglaterra e apenas vivamente desejoso de afastar quaesquer divergencias e proseguir n'essa intima cooperação com a Austria que já produzira resultados tão satisfactorios ao tempo da difficil e em certo momento quasi insoluvel negociação entre Portugal e Brazil »[11]. Por sua vez a Austria não se queria dar ao luxo de esposar um conflicto por amor da Constituição portugueza e menos ainda em desabono da legitimidade de Dom Pedro, que ella reconhecia. Confiava no futuro, quer dizer em Dom Miguel, e a darmos credito ao historiador Solano Constancio, toda a gente assim pensava, inclusive o Imperador que, só podendo ambicionar a gloria de um legislador liberal, não nutria muitas illusões sobre a duração da sua dadiva real e cessara mesmo de ter-lhe apego desde que verificara não poder ser soberano de toda a monarchia. Quando seu irmão mais tarde restabeleceu o regimen absoluto e elle proprio se via a braços com o sentimento democratico, senão republicano do Brazil, conta-se que Dom Pedro exclamou, ao receber a noticia da abolição da sua Carta tão ponderada — Fez muito bem!
Porventura era Canning o unico a enganar-se e a acreditar na estabilidade do regimen que protegia? Estaria isto em contradicção com sua habitual sagacidade: a verdade porem é que o seu espirito nutria duvidas a respeito. «É impossivel, escrevia elle[12], não descobrir na situação que se vai prolongar até o consorcio da Rainha muita perplexidade e estranheza (awkwardness) e vale a pena reflectir no melhor meio de obviar inconvenientes e ao perigo que d'ahi poderia resultar. O ponto evidentemente mais necessario a fixar é que Dom Miguel não volte para Portugal antes da joven Rainha alli chegar: mas como obtel-o? Não se pode razoavelmente esperar que o infante permaneça indefinidamente em Vienna, nem é talvez muito para desejar-se que assim aconteça. É possivel apressar a vinda de Dona Maria, ou é preferivel recommendar a ida de Dom Miguel para o Brazil? Eis as duas alternativas que se apresentam naturalmente á escolha. O governo francez tende para a segunda... »
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
- ↑ Oliveira Martins, Portugal Contemporaneo
- ↑ Despacho de Canning a Sir William A' Court, de 28 de Junho de 1826, B. R. O., F. O.
- ↑ Despacho de Canning a Sir William A' Court de 17 de Julho de 1826, B. R. O., F. O.
- ↑ Questão Portugueza, Lisboa, 1827.
- ↑ Nas Ordenações Philippinas se menciona, no preambulo de cada lei, que para sua auctoridade é necessario o consentimento das Côrtes. O importante poder de conceder subsidios estáva indisputavelmente nas Côrtes desde o mais remoto periodo da historia authentica até a suspensão da Constituição no seculo XVIII. O alvará real não podia revogar a lei feita em Côrtes, e o chanceller tinha o direito de recusar o registo a qualquer acto que devesse valer por mais de um anno. Ora, o registo era necessario para sua validade. As Cortes de 1385 e depois as de 1641 declararara illegaes todos os tributos impostos pelo poder despotico». (Questão Portugneza).
- ↑ Despacho citado de 17 de Junho de 1826.
- ↑ Despacho de Canning a Sir William A' Court, de 19 de Julho de 1826, B. R. O., F. O.
- ↑ Despacho de 22 de Julho de 1826, B. R. O., F. O.
- ↑ « A prompta e franca confiança com que as cortes da Austria e da França corresponderam ás nossas seguranças, collocam-nos ainda mais na obrigação de vigiar o que se passa em Lisboa para que nada occorra que possa d'algum modo lançar a duvida sobre aquellas seguranças.» (Despacho citado).
- ↑ B. R. O., F. O.
- ↑ Despacho citado de 27 de Julho de 1826.
- ↑ Despacho secreto a A'Court de 27 de Julho de 1826, B. R. O., F, O.