Epistola ao auctor da «pavorosa»

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Sacrilego impostor, que renovando
Os antigos delirios da ignorancia,
Mil vezes felizmente refutados,
Pretende illudir a innocencia,
Fabricando um systema monstruoso,
Incrivel mesmo aos olhos da impiedade:
Quando a mão temeraria assim levantas
Contra o dogma fatal da eternidade,
Aviltando o teu ser, dize, profano,
Não te grita a razão — Suspende o braço?
Esse Deus, que confessas amoroso,
Deus de paz, pae dos homens, não flagello,
Com esses attributos desempenha
Com frouxa indifferença submergindo
No embrião do nada aquelles entes
Em que quiz esculpir a sua imagem"?
Onde estará o amor, onde a ternura
D′esse Ente nosso pae? Em ter creado
De motu proprio uns miseraveis entes,
Que depois de passarem opprimidos
Sobre este globo cheio de trabalhos.
Devem ser outra vez depois da morte
Reduzidos ao nada? Dize, infame,
O que val a virtude, essa virtude
Á custa de mil lagrimas comprada.
Se a alma não passa além da sepultura,

Onde só pode achar a recompensa?
Para que o feio vicio é condemnado,
Que os sentidos encanta e lisongéa?
Se da nossa existencia é o sepulchro
O novissimo termo, é impiedade
Contrastar o appetite, e devem todos
Ás ávidas paixões largar as redeas,
Por mais felicidade não se espera.

Réo de taes sentimentos, e dos crimes
Que são d′elles precisas consequencias,
Atreves-te a chamar sonho, e chimera
Esse logar terrivel, que desejas
Não existisse para teu flagello!
Dogma fatal, mas dogma necessario,
Cuja existência só negar se atreve
Quem pondo-se ao nivel dos mesmos brutos
A razão, como tu, tem degradado!
Dize, infeliz: se o homem virtuoso
Vês sem estimação, sem recompensa,
Luctando com a desgraça, em dura guerra
Com as suas paixões continuamente,
Se o vês dos orgulhosos opprimido,
Da miseria arrastando as vis cadéas,
E os flagellos soffrendo da injustiça,
Dirás que o justo Deus adormecido
Lhe não reserva digna recompensa
De o chamar no seu seio, repartindo
Com elle os dons da doce eternidade?
Se o impio vês, pizando impunemente
As sanctas leis aos pés, e da ventura

Os favores gosar, se o vês honrado,
E talvez recebendo inda favores
Por opprimir a candida virtude
Dos que gemem debaixo do seu throno:
Se leis não pondo ao ávido appetite,
Gosa a satisfação, que tanto prezas,
Dirás que o mesmo Deus deixa impunida
Por frouxidão a sua iniquidade,
E que lhe não destina calabouços
Onde a pena receba de seus crimes?
O estado feliz das almas justas,
Nem de Deus fora digno, nem perfeito,
Se sendo limitado a algum espaço
Não se estendesse a toda a eternidade;
Pois que durando n′ella essa virtude
Porque alcançaram esse dom supremo
É conforme á justiça que em Deus seja
O premio assim tambem continuado:
Pelos mesmos principios são eternos
Os castigos do impio: um juiz justo
Não póde perdoar um crime grave.
Se d′elle o aggressor não se arrepende.
Nos precitos ha sempre pertinacia,
E por isso serão eternamente
Da justiça divina castigados.
Aos sanctos livros... porém não profanes
Co′a impia mão as paginas sagradas.
Que estas tristes verdades nos revelam;
Só chegar deve a este sanctuario
Quem cheio de temor, e de respeito

As palavras adora, que elle encerra.
Para te confundir, a outras fontes
Mais dignas de teus vis impuros labios
Por tua confusão quero guiar-te,
Porque vejas que o cego gentilismo
Falto das luzes sanctas no evangelho,
Por entre as grossas trevas da ignorancia
O dogma conheceu, que tu condemnas:
Ouve Platão, que manda os assassinos
Para o Tartaro negro, e tenebroso,
Onde diz que os tormentos são eternos.
De Sycione ao philosopho pergunta
Quem lhe ensinou que havia dous logares
Para o premio e castigo além da morte?
Ouve Plutarco, que esta mesma crença
Com a maior clareza te annuncia:
Lê finalmente gregos e romanos,
Egypcios e chaldeos, verás em todos
Este logar ao vivo retratado:
Verás gemer Sisyphos carregados
Co′o peso rude de infernaes penedos;
Promethêos oppirmidos de cadêas,
Ticios de abutres feros devorados,
Tantalos, e outros mil, que submergidos
No abrazado barathro nos pintam:
São fabulas, eu sei: mas esta idéa!
Posto que com ficções desfigurada,
Só de uma tradicção a mais antiga
Podia deduzir a sua origem.

Escravo das paixões, a que te entregas,

Pretendes temerario collocal-as
Par a par da virtude, blasfemando.
De quem por torpes vicios as condemna?
Aprende a defendel-as, ignorante;
Verás que da razão sendo inimigas
Não se podem livrar de ser culpaveis.
Perdendo a graça, dize, fementido.
Qual é o meio de revindical-a?
Duvidas de que o summo sacerdote
Para estes infelizes naufragantes
Da penitencia não deixou a taboa?
Duvidarás que foi aos sacerdotes
A quem deu o poder illimitado
De atar e desatar os criminosos?
Se não duvidas, deves conferssar-me
Que antes de proferirem a sentença
Devem primeiro conhecer a culpa.
Ajoelha, profano, mentecapto,
Ante este tribunal, de que escarneces,
Fonte de graça, que te fugiu d′alma.
Respeita nos ministros, que a despendem,
Não as suas fraquezas, que são homens.
Mas aquelle de quem são commissarios.
Não é Deus oppressor, não vingativo.
Por vibrar com a dextra o raio ardente
Contra os que seguem, como tu, com furia
Da carne os criminosos movimentos,
Que sua lei, tua razão condemnam.
Dizes que a punição excede o crime;
Blasphemo, que tu és! Piza, se pódes

Da offensa a infinita gravidade,
E verás que o castigo não excede.

Apostata infeliz, como te atreves
A tratar de tyrano o Omnipotente,
O Deus, que no Sinay envolto em gloria
Santas leis d′Israel dictou ao povo?
Achas indigno d′ellas o extermínio
D′esses torpes idolatras, mil vezes
Ingratos de seu Deus aos beneficios?
Arbitro absoluto dos viventes.
Não póde, prescindindo inda da culpa.
As vidas acabar, que lhe pertencem?
E conclues d′aqui, que o seu ministro
Moysés incomparavel, foi um monstro
De furor, impostura, e fanatismo?
Hallucinado monstro, onde bebeste
Para tua desgraça tal doutrina?
Podia um impostor fender as aguas
Com a força enganosa dos prestigios,
Fazendo pelo leito do mar-Roxo
Caminho só aos peixes conhecido?
Poderia de um arido rochedo
Só com o leve toque de uma vara
Fazer sahir uma abundante fonte
Para o povo com sede fatigado?
Seria a sua astucia só bastante
Para outros mil prodigios d′esta ordem,
Em que de Pharaoth os mesmos magos
Confessaram andar de Deus o dedo?
Vai lêr sem prevenção os seus escriptos,

Que são retratos os mais vivos d′alma,
N′elles descobrirás quanto é diverso
Aquelie original da negra cópia
Que desenhou a tua mão indigna
Por fascinar os olhos da innocencia.
Lê nos mesmos pagãos os elogios
Que soube merecer-lhe o seu caracter.
Já que da santa Egreja os testemunhos
Indigno desertor assim desprezas,
Para enganar a crédula innocencia,
Que seduzir pretendes insensato,
Confundes o amor, que Deus ordena,
Com aquella paixão, aquella insania,
Que arrasta os homes ao nivel dos brutos?

Que idéa, dize, tens da Divindade?
Confessas que é delicto aos similhantes
Traçar damnos crueis, injustos males,
E pretendes sem culpa assassinar-lhe
A virtude, roubando-lhe a innocencia?
Indigno, inconsequente, mentecapto,
Das luzes da razão abandonado.
Que dogmatizar queres vãos delirios
Uns a outros oppostos, e que offendem
Natureza, Razão, e Divindade;
Degradas o teu ser, não consentindo
Que haja além do sepulchro Eternidade.
Aviltas a Razão, suppondo-a digna
De approvar teu delirio extravagante;
A Divindade offendes, quando a pintas
Com attributos, que lhe são contrarios.

Esconde a face, e nunca as claras luzes
Vejas do céo, cuja existencia negas;
Sepultado nas trevas da ignorancia,
A que te guiam voluntarios erros,
Costuma-te aos horrores d′esse abysmo,
Em que apezar de o teres por chimera.
Confessarás um dia mas já tarde.
Não ser uma illusão a Eternidade.

Notas[editar]

  1. SILVA, Inocêncio Francisco da (Org.). Poesias eroticas, burlescas e satyricas. Bruxelas: [S. n.], 1900. p. 173-174.