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Ernesto de Tal/V

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Apenas saiu à rua, embicou Ernesto para a casa em que trabalhava o rapaz de nariz comprido, resolvido a explicar-se de uma vez com ele. Hesitou alguma coisa, é verdade, e esteve a pique de arrepiar carreira; mas a crise era tão violenta que triunfou da frouxidão de ânimo, e vinte minutos depois chegava ele ao seu destino. Não entrou no escritório do rival: pôs-se a passear de um lado para outro, à espera que ele saísse, o que se verificou daí a três quartos de hora, três enfadonhos e mortais quartos de hora.

Ernesto aproximou-se casualmente do rival; cumprimentaram-se com um sorriso acanhado e amarelo, e ficaram alguns segundos a olhar um para o outro. Já o guarda-livros ia tirando o chapéu e despedindo-se, quando Ernesto lhe perguntou:

— Vai hoje à Rua do Conde?

— Talvez.

— A que horas?

— Não sei ainda. Por quê?

— Iríamos juntos. Eu vou às oito.

O rapaz de nariz comprido não respondeu.

— Para que lado vai agora? perguntou Ernesto depois de algum silêncio.

— Vou ao Passeio Público, se o senhor lá não for, respondeu resolutamente o rival.

Ernesto empalideceu.

— Quer assim fugir de mim?

— Sim, senhor.

— Pois eu não; desejo até que haja uma explicação entre nós. Espere... não me volte as costas. Saiba que eu também sou atrevido, menos de língua ainda que de mão. Vamos, dê-me o braço e caminhemos ao Passeio Público.

O rapaz de nariz comprido teve ímpetos de atracar-se com o rival e experimentar-lhe as forças; mas estavam numa rua comercial; todo o seu futuro voaria pelos ares. Preferiu dar-lhe as costas e seguir caminho. Executava já este plano, quando Ernesto lhe gritou:

— Venha cá, namorado sem-ventura!

O pobre rapaz voltou-se rapidamente.

— Que diz o senhor? perguntou ele.

— Namorado sem ventura, repetiu Ernesto cravando os olhos no rosto do rival a ver se lhe descobria uma confissão qualquer.

— É singular, replicou o rapaz de nariz comprido, é singular que o senhor me chame namorado sem-ventura, quando ninguém ignora a triste figura que tem feito para obter as boas graças de uma moça que é minha...

— Sua!

— Minha!

— Nossa, direi eu...

— Senhor!

O rapaz de nariz comprido engatilhou um soco; a segurança e tranqüilidade com que Ernesto olhava para ele mudaram-lhe o curso das idéias. Falaria ele verdade? Essa moça, que tanto amor lhe jurava, com quem meditava casar dentro de pouco tempo, mas de quem alguma vez desconfiara, teria dado efetivamente àquele homem o direito de a chamar sua? Esta simples interrogação perturbou o espírito do rapaz, que esteve cerca de dois minutos a olhar mudamente para Ernesto, e este a olhar mudamente para ele.

— O que o senhor disse agora é muito grave; preciso de uma explicação.

— Peço-lhe explicação igual, respondeu Ernesto.

— Vamos ao Passeio Público.

Seguiram caminho, a princípio silenciosos, não só porque a situação os acanhava naturalmente, mas também porque cada um deles receava ouvir uma cruel revelação. A conversa começou por monossílabos e frases truncadas, mas foi a pouco e pouco fazendo-se natural e correta. Tudo quanto os leitores sabem de um e outro foi ali exposto por ambos, e por ambos ouvido entre abatimento e cólera.

— Se tudo quanto o senhor diz é a expressão da verdade, observou o rapaz de nariz comprido descendo a Rua das Marrecas, a conclusão é que fomos enganados...

— Vilmente enganados, emendou Ernesto.

— Pela minha parte, tornou o primeiro, recebo com isto um grande golpe porque eu amava-a muito, e pretendia fazê-la minha esposa, o que sucederia breve. A minha boa fortuna fez com que o senhor me avisasse a tempo...

— Talvez me censurem o passo que dei; mas o resultado que vamos colher justifica tudo. Nem por isso creio que padeço menos... eu amava loucamente aquela moça!

Ernesto proferiu estas palavras tão de dentro, que elas repercutiram na coração do rival, e ambos ficaram algum tempo calados, a devorar consigo a dor e a humilhação. Ernesto rompeu o silêncio soltando um magoadíssimo suspiro, na ocasião em que entravam no Passeio. Só o guarda pôde ouvi-lo; o rapaz de nariz comprido ia revolvendo no espírito uma dúvida.

“Devo eu condenar tão ligeiramente aquela moça? perguntou ele a si mesmo; e não será este sujeito um pretendente vencido que, por semelhante meio quer obter a minha neutralidade?”

O rosto de Ernesto não parecia dar razão à conjetura do rival; todavia, como o lance era grave e cumpria não ir por aparências, o rapaz de nariz comprido abriu de novo o capítulo das revelações, no que foi acompanhado pelo rival. Todas elas iam concordando entre si; os incidentes e os gestos que um relembrava, tinham eco na memória do outro. O que porém decidiu tudo foi a apresentação de uma carta que cada um deles tinha casualmente no bolso. O texto de ambas mostrava que eram recentes; a expressão de ternura não era a mesma nas duas epístolas, porque Rosina, como sabemos, ia afrouxando o tom em relação a Ernesto; mas era quanto bastava para dar ao rapaz de nariz comprido o golpe de misericórdia.

— Desprezemo-la, disse este, quando acabou de ler a carta do rival.

— Só isso? perguntou Ernesto; o simples desprezo será bastante?

— Que vingança tiraríamos dela? objetou o rapaz de nariz comprido. Ainda que alguma fosse possível, não seria digna de nós...

Calou-se; mas tocado de uma súbita idéia exclamou:

— Ah! lembra-me um meio.

— Qual?

— Mandemos-lhe uma carta de rompimento, mas uma carta de igual teor.

A idéia sorriu logo ao espírito de Ernesto, que parecia ainda mais humilhado que o outro, e ambos foram dali redigir a carta fatal.

No dia seguinte, logo depois do almoço, estava Rosina em casa muito sossegada, longe de esperar o golpe, e até forjando planos de futuro, que assentavam todos no rapaz de nariz comprido, quando o moleque lhe apareceu com duas cartas.

— Nhanhã Rosina, disse ele, esta carta é de sinhô Ernesto, e esta...

— Que é isso? disse a moça; os dois...

— Não, explicou o moleque; um estava na esquina de cima, outro na esquina de baixo.

E fazendo tinir no bolso alguns cobres que os dois rivais lhe haviam dado, o moleque deixou a senhora moça ler à vontade as duas missivas. A primeira que abriu foi a de Ernesto. Dizia assim:

Senhora! Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode arrancar do espírito, tomo a liberdade de lhe dizer que está livre e eu reabilitado. Basta de humilhações! Pude dar-lhe crédito enquanto lhe era possível enganar-me. Agora... Adeus para sempre!

Rosina levantou os ombros ao ler esta carta. Abriu rapidamente a do rapaz de nariz comprido, e leu:

Senhora! Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode...

Daqui para diante foi crescendo a surpresa. Ambos se despediam; ambos por igual teor. Logo, tinham descoberto tudo um ao outro. Não havia meio de reparar nada; tudo estava perdido!

Rosina não costumava chorar. Esfregava às vezes os olhos, para os fazer vermelhos, quando havia necessidade de mostrar a um namorado que se ressentia de alguma coisa. Desta vez porém chorou deveras; não de mágoa, mas de raiva. Triunfavam ambos os rivais; ambos lhe fugiam, e lhe davam de comum acordo o último golpe. Não havia resistir; entrou-lhe na alma o desespero. Por desgraça não havia no horizonte a mais ligeira vela. O primo a quem aludimos num dos capítulos anteriores andava com idéias a respeito de outra moça, e idéias já conjugais. Ela mesma descuidara o seu sistema durante os últimos trinta dias deixando sem resposta alguns olhares interrogadores. Estava pois abandonada de Deus e dos homens.

Não; ainda lhe restava um recurso.