Ernesto de Tal/VI

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Um mês depois daquele fatal desastre, estando Ernesto em casa a conversar com o companheiro e mais dois amigos, um dos quais era o rapaz de nariz comprido, ouviu bater palmas. Foi à escada; era o moleque da Rua Nova do Conde.

— Que me queres? disse ele com ar severo, suspeitando que o moleque viesse pedir-lhe dinheiro.

— Venho trazer isto, disse o moleque baixinho.

E tirou do bolso uma carta que entregou a Ernesto.

A primeira idéia de Ernesto foi recusar a carta e pôr o moleque a pontapés pela escada abaixo; mas o coração disse-lhe uma coisa, como ele mesmo confessou. Estendeu a mão, recebeu a carta, abriu-a e leu.

Dizia assim:

Ainda uma vez curvo-me às tuas injustiças. Estou cansada de chorar. Não posso mais viver debaixo da ação de uma calúnia. Vem ou eu morro!

Ernesto esfregou os olhos; não podia crer no que acabava de ler. Seria um novo ardil, ou a expressão da verdade? Ardil podia ser; mas Ernesto atentou bem e pareceu-lhe ver o sinal de uma lágrima. Evidentemente a moça chorara. Mas se chorara é porque padecia; e nesse caso...

Nestas e noutras reflexões gastou Ernesto cerca de oito a dez minutos. Não sabia que resolvesse. Acudir ao chamado de Rosina era esquecer a perfídia com que ela se houve amando a outro em cujas mãos vira até uma carta sua. Mas, não ir podia ser contribuir para a morte de uma criatura que, ainda quando não tivesse sido amada por ele, merecia os seus sentimentos de humanidade.

— Diga que irei logo, respondeu enfim Ernesto.

Quando voltou para a sala trazia o rosto mudado. Os amigos repararam na mudança e procuraram descobrir-lhe a causa.

— Algum credor, dizia um.

— Não lhe trouxeram dinheiro, acrescentava outro.

— Namoro novo, opinava o companheiro de casa.

— É tudo isso talvez, respondeu Ernesto com um modo que queria ser alegre.

De tarde preparou-se Ernesto e dirigiu-se para a Rua Nova do Conde. Dez ou doze vezes parou resolvido a voltar; mas um minuto de reflexão tirava-lhe os escrúpulos e o rapaz prosseguia em seu caminho.

“Há mistério nisto tudo, dizia ele consigo e relendo a carta de Rosina. É certo que ele me revelou tudo, e até me leu cartas; nisto não há que duvidar. Rosina é culpada; enganou-me; namorava a outro, dizendo-me que só me amava a mim. Mas por que esta carta? Se ela amava ao outro por que lhe não escreve? Investiguemos tudo isto.”

A última hesitação do digno rapaz foi ao entrar na Rua Nova do Conde; seu espírito vacilou dessa vez mais que nunca. Dez minutos gastou em passinhos, ora para trás, ora para diante, sem assentar numa coisa definitiva. Afinal deitou o coração à larga e seguiu afoitamente a senda que o destino parecia indicar-lhe.

Quando chegou à casa de Vieira, estava Rosina na sala com a tia. A moça teve um movimento de alegria; mas, tanto quanto Ernesto pôde examinar-lhe as feições, a alegria não foi tal que pudesse disfarçar-lhe os sulcos das lágrimas. O que é certo é que um véu de melancolia parecia envolver os olhos travessos da bela Rosina. Nem já eram travessos; estavam desmaiados ou mortos.

“Oh! ali está a inocência!” disse Ernesto consigo.

Ao mesmo tempo, envergonhado por esta opinião tão benevolente, e lembrando-se das revelações do rapaz de nariz comprido, Ernesto assumiu um ar severo e grave, menos de namorado do que de juiz, menos de juiz que de algoz.

Rosina cravou os olhos no chão.

A tia da moça perguntou a Ernesto as causas da sua ausência tão prolongada. Ernesto alegou muito trabalho e alguma doença, as primeiras desculpas que ocorrem a todo o homem que não tem desculpa. Trocadas mais algumas palavras, saiu a tia da sala para ir dar umas ordens, tendo já ordenado disfarçadamente ao Juquinha que ficasse na sala. Juquinha porém trepou a uma cadeira e pôs-se à janela; os dois tiveram tempo para explicações.

A situação era esquerda; mas não se podia perder tempo. Bem o compreendeu Rosina, que rompeu logo estas palavras:

— Não tem remorsos?

— De quê? perguntou Ernesto espantado.

— Do que me fez?

— Eu?

— Sim, abandonando-me sem uma explicação. A causa adivinho eu qual é, alguma nova suspeita, ou antes alguma calúnia...

— Nem calúnia, nem suspeita, disse Ernesto depois de um momento de silêncio; mas só verdade.

Rosina sufocou um grito; seus lábios pálidos e trêmulos quiseram murmurar alguma coisa, mas não puderam; dos olhos arrebentaram-lhe duas grossas lágrimas. Ernesto não podia vê-la chorar; por mais cheio de razões que estivesse, em vendo lágrimas, curvava-se logo e pedia-lhe perdão. Desta vez porém era impossível que tão depressa voltasse ao antigo estado. As revelações do rival estavam ainda frescas na memória.

Curvou-se, entretanto, para a moça e pediu-lhe que não chorasse.

— Que não chore! disse ela com voz lacrimosa. Pede-me que não chore quando eu vejo fugir-me a felicidade das mãos, sem ao menos merecer a sua estima, porque o senhor despreza-me; sem ao menos saber o que é essa calúnia para desmenti-la ou desmascará-la...

— É capaz disso? perguntou Ernesto com fogo. É capaz de confundir a calúnia?

— Sou, disse ela com um magnífico gesto de dignidade.

Ernesto expôs em resumo a conversa que tivera com o rapaz de nariz comprido, e concluiu dizendo que vira uma carta dela. Rosina ouviu calada a narração: tinha o peito ofegante; sentia-se a comoção que a dominava. Quando ele acabou, soltou uma torrente de lágrimas.

— Meu Deus! disse baixinho Ernesto, podem ouvi-la.

— Não importa, exclamou a moça; estou disposta a tudo...

— Diga-me, pode negar o que lhe acabo de contar?

— Tudo, não; alguma coisa é verdade, respondeu ela com voz triste.

— Ah!

— A promessa de casamento é mentira; não houve mais que duas cartas, duas apenas, e isto... por sua culpa...

— Por minha culpa! exclamou Ernesto tão assombrado como se acabasse de ver um dos castiçais a dançar.

— Sim, repetiu ela, por sua culpa. Não se lembra? Tinha-se arrufado uma vez comigo, e eu... foi uma loucura... para metê-lo em brios, para vingar-me... que loucura!... correspondi ao namoro daquele indivíduo sem educação... foi demência minha, bem vejo... Mas que quer? eu estava despeitada...

A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a moça lhe fazia dos acontecimentos. Era claro para ele que Rosina negaria tudo, se o seu procedimento tivesse alguma intenção má; a carta, diria que era imitação da sua letra. Mas não; ela confessava tudo com a mais nobre e rude singeleza deste mundo; somente — e nisto estava a chave da situação, — a moça explicava a que impulsos de despeito cedera, mostrando assim, se podemos comparar o coração a um pastel, debaixo do invólucro da leviandade a nata do amor.

Decorreram alguns segundos de silêncio, em que a moça tinha os olhos pregados no chão, na mais triste e melancólica atitude que jamais teve uma donzela arrependida.

— Mas não viu que esse ato de loucura podia causar a minha morte? disse Ernesto.

Rosina estremeceu ouvindo estas palavras que Ernesto lhe disse com a voz mais doce dos seus antigos dias; levantou os olhos para ele e tornou a pousá-los no chão.

— Se eu tivesse refletido nisso, observou ela, não faria nada do que fiz.

— Tem razão, ia dizendo Ernesto, mas levado de um mau espírito de vingança entendeu que a leviandade da moça devia ser punida com alguns minutos mais de dúvida e recriminação.

A moça ouviu ainda muitas coisas que lhe disse Ernesto, e a todas respondeu com um ar tão contrito e palavras tão repassadas de amargura, que o nosso namorado sentia quase rebentarem-lhe as lágrimas dos olhos. Os de Rosina estavam já mais tranqüilos, e a limpidez começava a tomar o lugar da sombra melancólica. A situação era quase a mesma de algumas semanas antes; faltava só consolidá-la com o tempo. Entretanto, disse Rosina:

— Não pense que lhe peço mais do que me cumpre. Meu procedimento alguma punição há de ter, e eu estou perfeitamente resignada. Pedi-lhe que viesse aqui a fim de me explicar o seu silêncio; pela minha parte expliquei-lhe o meu desvario. Não posso ambicionar mais...

— Não pode?...

— Não. Meu fim era não desmerecer a sua estima.

— E por que não o meu amor? perguntou Ernesto. Parece-lhe que o coração possa apagar de repente, e por simples esforço de vontade, a chama de que viveu longos dias?

— Oh! isso é impossível! respondeu a moça; e pela minha parte sei o que vou padecer...

— Demais, disse Ernesto, o culpado de tudo fui eu, francamente o confesso. Ambos nós temos que perdoar um a outro; perdôo-lhe a leviandade; perdoa-me o fatal arrufo?

Rosina, a menos de ter um coração de bronze, não podia deixar de conceder o perdão que o namorado lhe pedia. Foi recíproca a generosidade. Como na volta do filho pródigo, as duas almas festejaram aquela renascença de felicidade, e amaram-se com mais força que nunca.

Três meses depois, dia por dia, foi celebrado na igreja de S. Ana, que era então no Campo d’Aclamação, o consórcio dos dois namorados. A noiva estava radiante de ventura; o noivo parecia respirar os ares do paraíso celeste. O tio de Rosina deu um sarau a que compareceram os amigos de Ernesto, exceto o rapaz de nariz comprido.

Não quer isto dizer que a amizade dos dois viesse a esfriar. Pelo contrário, o rival de Ernesto revelou certa magnanimidade, apertando ainda mais os laços que o prendiam desde a singular circunstância que os aproximou. Houve mais: dois anos depois do casamento de Ernesto, vemos os dois associados num armarinho, reinando entre ambos a mais serena intimidade. O rapaz de nariz comprido é padrinho de um filho de Ernesto.

— Por que não te casas? pergunta Ernesto às vezes ao seu sócio, amigo e compadre.

— Nada, meu amigo, responde o outro, eu já agora morro solteiro.