Exaltação (1916)/11

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XI CAPITULO

«Ah dearest, whoso sucks a poisoned wound
«Envenoms his own veins!...»

(Browning.)


Havia alguns dias que Ladice subira para Petropolis.

Ella levára para essa cidade serrana uma alma, um corpo, dilacerados, consumidos de saudades, de impaciencias, de tormentos surdos, contumazes, angustiosos, incoherentes: — a entrada de Dinah para o convento, perturbara-a, impressionara-a, quebrara-lhe a harmonia do espirito, fizera reviver-lhe em o intimo sensações esquecidas, apagadas, scenas da Biblia, temores, duvidas sobre a sua salvação, remorso, impotencia ante a virtude e a fidelidade violadas e perdidas... A sua excitação augmentava... ella cedia á algazarra azoante de seus nervos, á insciencia de sua razão... Rajadas violentas de delirio lhe passavam celcres pelo cerebro, zurzindo-o, fustigando-o, açoitando-o, tresmalhando o raciocinio, a vontade, os esforços suprêmos, os argumentos da convicção, arrastando-a assim, a uma crise fugaz, porém intensa de alucinação; ideias fixas, dementes, cruzavam-se terriveis, dominantes, imperiosas, absolutas, ora repetindo-lhe de continuo: “-não és mais a mulher honesta; a christā que soffre, que é martyr, que é pura, que tem aureola; ora impellindo-a a gritar a sua culpa, a proclamar-se peccaminosa, a prófuga ardente que abandonára o seu Deus pelo seu amante... Era uma luta ingente, titanica, extenuante, que ella travava, com um inimigo feroz, duro, sanguinario, deshumano, peior que a morte a loucura... Mas a certeza de rever Theophilo, a mudança de scenario, o ar oxygenado, o verdor, a diaphaneidade d´essa cidade langorosa, que encima a Serra dos Orgãos como se fôra uma corôa de flamma, e de lyrismo, começavam a revigorar-lhe os nervos abatidos, a dissipar-lhe as trevas inquietantes, a tornal-a a Ladice que exulta, a amorosa triumphante, que ousa tudo por amôr de seu amor...

Esses dias, ella passára-os extendida em um preguiceiro: divinamente branca, de uma immobilidade gracil, Ladice deixava cair sobre si, á guisa de um grande beijo, a fragrancia, o azul, a luminosidade d´este céo eternamente curvado, em adoração mystica...

A sua calma, porém, era puramente externa; era a calma vazia de um corpo isento de movimentos. Raivavam-lhe em o intimo, a ebriez, a impertinencia demente de seu eu para um outro eu; o brado, as supplicas, os arrancos de seu ser por esse poeta maravilhoso, por este analysta suprêmo de suas sensações, de sua morbidez. Em esses instantes, ella sentia a vehemencia de planetas que se libertam, de granitos que caem... Em imaginação ella se lhe entregava com a decisão, o impeto, a resolução, a totalidade das cousas brutas, mortas, insensiveis, quando movidas por forças naturaes.

— “Meu Deus, como eu o amo! como eu o amo! — exclamava ella de vez em quando, e o seu corpo tomava, então, a ondulação rapida nervosa de uma vela que o vento enche e desenche.

Em o dia seguinte de pé, em a varanda entrelaçada de rosas e jasmins de uma “villa” elegante, Ladice dizia a Francisco:

— “Já notaste como esta cidade parece um bouquet de flôres ardentes. E a gente até tem vontade de tomal-a em as mãos e acaricial-a e apertal-a contra o seio. Dir-se-ia que o rio aqui desce e entra em o nosso coração, qual flexa de alegria, a chamar-nos á vida, ao amôr... Repara como este rio eterniza as contorsões de um ser humano...

Ladice calou-se. Inconscientemente suas mãos se uniram, seus olhos se fixaram em as rosas que se agitavam e em seu amago, surgiu esta oração: “Cidade de amôr e de doce volupia, violencia de tuberosa virgem, encanto, refugio, embevecimento da sombra e da humidade, terra enamorada da agua e do sol, earboniza a sensibilidade de uma mulher que deseja fugir da vida por amôr de seu amôr... Côa-lhe em as veias a lethalidade de teu prazer agudo, incisivo... Faze com que ella pereça em os teus sopros de veneno e de paixão. — E os seus olhos se embruscaram melancolicos.

— E´ uma cidade poetica, bonita, mas horrivelmente triste. E´ uma belleza inutil — atalhou Francisco, folheando uma revista de Direito.

— E´ untes um ninho para o amôr — quasi murmurou Lalice. Fechando a meio os olhos, ella pensava em Theophilo.

— Creio que é essa a razão, porque a nossa alta sociedade aqui passa a sua lua de mel... — accrescentou Francisco ironico.

— E todos os suspiros, e todos os ais d´esses corações que se dão, é que formam esta ternura subtil, dolorosa que modela o arvoredo e a flor, a casaria e as sinuosidades d´estas ruas...

— Dizes uma verdade: — a ternura d´esta localidade é atordoante — retorquiu Francisco, maliciosamente, beijando-a muito.

Ladice não respondeu aos seus affagos; permaneceu, rigida, fria, silenciosa; em aquelle momento ella pertencia inteira a Theophilo.

— Então não me beijas? Estás em contradicção... Meu Deus, que indifferença! exclamou elle, sentando-se.

Queres que te beije adeante de todo o mundo? Não vês as pessoas que passam? São só os amantes que se beijam assim em a presença de estranhos... — E, ao redor de seus labios, se accentuava o rictus da grande tristeza.

— A tua ardencia é uma ardencia esteril, anormal; só explode para a natureza.

— Serei uma doente, uma sensibilidade estravagante, talvez; já sabes que não sou como as outras...

Ladice mediu-o de alto a baixo admirada de ainda não haver sido comprehendida por um homem que a via todos os dias e que era assaz intelligente... Ella, a grande amorosa, que trazia em a pallidez de seu corpo, a tragedia dos sentimentos; ella, que dizia sim ao seu amante; ella que sentia desentranhar-se-lhe em os nervos o espasmo de todos os amôres destruidos. E Ladice sorriu.

— Tens razão, és sublime, não te igualas a ninguem; perdão... — E Francisco beijava-lhe as mãos, os pulsos, arrependido d´aquella censura, cheio de amor e de veneração para com essa mulher fragil e superior — “E´s o meu thesouro...”

Ladice estremeceu involuntariamente ao ouvir essa amabilidade tão vulgar e lembrou-se das palavras que Theophilo lhe repetia de continuo: “E´s o meu orgulho.” Depois de um pequeno silencio:

— Tu te enganas, não sou o teu thesouro; sou apenas um fragmento da natureza, uma vontade que dentro em pouco deixará de ser — disse ella, sorrindo.

— Estás metaphysica hoje... Mas a vontade quando é forte não morre, permanece...

— Mas eu sou a vontade que quer morrer, comprehendes?

Francisco fingiu não a ter ouvido. Elle não quiz entrar em o detalhe d´essa phrase, temendo augmentar a languidez de sua mulher. Inquietava-o o seu pallôr, o seu alheamento a tudo. Elle passou o resto do dia preoccupado. A´ tarde, ao chegar da rua, encontrou-a em a varanda, lendo um romance inglez. Brincando com as flores que ella trazia em a cintura, disse-lhe:

— As flôres medram n´este solo com a excessividade de herva damninha... Quem sabe, Ladice, si preferias residir aqui. Adoras a natureza...

— Absolutamente, não; gosto do fragor das grandes capitres, do movimento, das divergencias, das discussões que se debatem em os centros intellectuaes...

—Já percebi:—O que tu gostas é da variedade... Ao cabo de certo tempo, as cousas te fatigam, tornam-se monotonas, não é mesmo?

— Excepto o meu amor, excepto Theophilo — ia ella dizer, mas conteve-se.— Tens razão; ha pessoas que nunca sabem o que desejam, ou, por outra, procuram sempre o desconhecido, e quando o encontram, saboream-n´o, e depois abandonam-n´o.

— Isso é poesia, é romantismo. — E elle deu uma gargalhada. — Que analogia o teu modo de ser com o do poeta.

— A que poeta te referes?

— A Theophilo de Almeida, por certo. Hoje conversamos longamente, e elle é como tu, estravagante, original, um sonhador... Encontrei-o em a Praça D. Affonso, lendo a um amigo, um poema admiravel, mas por demais exaltado. O amôr, afinal, não tem aquellas explosões...

Ladice ao ouvir o nome de seu amante empallideceu. Curvou-se sobre o balaustre e poz-se a arranjar os galhos da roseira, que pendiam. Ella o sabia; aquelle poema descrevia-lhe as linhas formosas e esbeltas do corpo.

— E´... Os poetas deliram — respondeu ella abstracta.

— E´ uma bella maneira de se mentir... Elles são de ordinario os exornadores das vulgaridades, do vicio, da fealdade, das baixezas humanas...

— Elles têm uma missão heroica, sublime, quasi divina; transformar pantanos, charcos eu terra firme, e frutos de oiro... Mas esqueces-te de que elles tambem são os eternizadores, os estimulos efficazes da virtude, da gloria, dos fastos eminentes, da graça, da belleza. Oh! os poetas! — accrescentou ella andando de um lado para o outro — São o verbo, a palpitação, os nervos, o coração physico da Perfeição, do Encantamento, da Magnificencia do Universo...

— O mais das vezes, são almas corruptas, com expressões brilhantes — atalhou elle em um tom levemente amargo.

— O verdadeiro poeta sempre tem a alma grande e nobre... Immensa como o ether — retorquiu Ladice vivamente.

— Ah, sim; ha excepções... Theophilo, por exemplo, é uma alma de elite, é um artista, um estheta finissimo, é um homem de caracter. Sómente um pouco singular no modo de ser; mas a sua estravagancia é requintada, não é um bohemio... Detesto a bohemia — accrescentou elle, accendendo um cigarro.

— Porque esse rigor, Francisco? Ella representa a parte candente, alacre, despreoccupada, cheia de sol, da vida... Ella se precipita em a morte, acurvada sobre o riso... Escarnece, mas não maldiz.

— Puro engano; ella é eivada de vicios tremendos...

— Tambem a sociedade o é, sob a capa da hypocrisia, e dos gestos graves — replicou Ladice.

— Mas a sociedade respeita as apparencias...

— Então, praticar-se o mal, ás escondidas, sem testemunhas, é ser-se bom, virtuoso? Ah que sacrilegio! — exclamou ella.

— Exaggeras... mas que fazer se a sociedade e a vida reclamam isso?

— A sociedade sim; mas a vida, não... A vida Francisco, surge espontaneamente da verdade. E´ o homem; devido ao seu egoismo que a deturpa, que a desvia, que a pisa constantemente. Os preconceitos são odiosos; hão de forçosamente cair... Sinto já em mim o grito de revolta. Os que virão amanhã triumpharão...— As narinas de Ladice fremiam emocionadas.

— Que salto gigantesco deste: do monarchismo ao nihilismo... Tremo até — retorquiu elle, achando muita graça nas suas theorias e no rigor com que ella as defendia.

Francisco se rejubilava e percebia n´essas phrases, sinceridade, nobreza, elevação. Avclumava-se-lhe a certeza de que Ladice seria incapaz de uma acção menos digna. A confiança em sua mulher se dilatava. se estratificava.

— Não quero destruir crenças — disse ella — apenas abolir costumes arraigados na ignorancia e acobertados pela moral. Oh! se todos descessem até a luz suprêma até a essencia das cousas... Como o mundo seria outro!— E os seus olhares se perdiam nos tons fuscos da tarde que desapparecia.

— A moral em boca feminina deve merecer acatamento, respeito; é sagrada como a religião.

— A moral — Ladice sorriu, é a veste fornecida por cada seculo para cobrir as convenções humanas então em moda... Ella varia como o tempo, como qualquer mulher hysterica.

— Mas, Ladice, de onde tiraste estes conceitos? Falas como uma revolucionaria.

E as suas sobrancelhas se contrahiram.

— Fui buscal-os em a minha intelligencia, em a observação, em o soffrimento, em os actos dos proprios homens...

— São os effeitos da educação viril que recebeste... E´ um mal terrivel, este modernismo, esta mania tola, de instruir-se a mulher, como se fora um rapaz...

— Desejavas então que eu fosse ignorante, e que apenas soubesse lêr e escrever?

— Garanto-te que serias muito mais feliz... Perderias esse romantismo que te enferma — replicou elle, sem segunda tenção.

Ladice saiu da varanda sem responderUma tristeza profunda, um raneor surdo contra o destino lhe contrahiam o coração, a alma. Ella sentia instirar-lhe o senso até ao desespero, essa grande humilhação destruidora para uma mulher superior, a convicção decisiva da inferioridade de seu marido. As muralhas, os fossos, as distancias espirituaes que os separavam, pareciam ampliar-se, multiplicar-se, alargar-se mais e mais... Irritava-lhe esse seu juizo lento, pesado de priscas eras que não admitte evolução, essa sua calma que pede á vida tranquillidade, planicie, uniformidade, declive, igualdade... Oh! ella e Theophilo eram comio asas que se agitam, como raios que descem, eram o sopro quente de Pan abrasando o silencio; eram vagas soltas, nuvens erradias; velocidade de pensamento, surpresa, riso, lagrima, pó dourado que o vento leva; impeto, estertor do ultimo beijo que o sol tombante dá em uma fronde alta...

* * *

— "Toma a tua Ladice, a tua virgem que fugiu do Erectheion, e que traz em o seu diploïs, a vontade destructiva da flamma grega, a perseverança, a fidelidade, a adoração retida, abrasamento, a reverencia estavel do occidente que me olhava sempre, a caricia rapida, abrupta, selvagem, aguda do vento norte, quando me atravessava os cabellos e morria-me em as mãos; os gestos de admiração de louvor, a genuflexão, o desejo immortal dos artistas que vinham a mim... E Ladice não poude acabar: — A boca do Thcophilo sellou-lhe os labios.

A sua charpa se desprendendo, caiu-lhe em o chão ao redor dos pés, com o movimento de cão amoroso.

— Minha Medeiazinha de amphora apuliana — dizia-lhe Theophilo, retendo-a pela cintura, a sua cabeça acompanhando a cabeça de Ladice que lhe escorregara do hombro, e agora repousava-lhe em o angulo do cotovello — Deixa-me sorver, consumir todo o deleite de teu ser; deixa-me beber a exaltação que guardas em as sensações para a divina Aphrodite. — E Theophilo dava-lhe em a boca, beijos descompassados, profundos, ligeiros, curtos, longos, silenciosos, parados, lethaes. Eram os beijos da fome, da sêde, da paixão intolerante, do automatismo consciente.

Elles entraram em uma sala toda azul.

Ladice não distinguia as formas, os contornos, os limites dos objectos; ella apenas via azul, azul, visões azues, claros azues, pontos azucs, veias azues. Em o seu desvario as hortensias que se lhe inclinavam afiguravam-se-lhe ser pupillas em pausas, olhos em extase de espectros enamorados, seio de Nereida sob a onda azul, rosaceas crystallizadas do ether, efflorescencias da phantasia... assim enrolados, abafados, suffocados, modelados por essa ebriez azul, elles se amaram como só as imaginações férvidas sabem amar.

Mas apesar de toda essa raiva amorosa havia em o senso de ambos qualquer cousa de não morto, de insatisfeito: era um vacuo que pedia a sua destruição com a obstinação latente de um tumulo que pede um corpo; era o impulso transcendente de um ser por outro ser; era a vontade ruidosa, demente, implacavel, embora fallaz, impotente de uma alma que quer ser na realidade, de facto, amalgamada, perdida, extincta, desfeita, cravada em a outra; era o delirio incomprehensivel, mas atrozmente sentido, do espirito, da imaginação, do pensamento que anceam embrenhar-se, identificar-se, calar-se um em e outro; era a vezania feroz que empresta as visceras aos musculos, aos tecidos, o desejo fatidico de se descoserem, de se romperem, de deixarem a nú, um coração a palpitar sobre outro coração, o sangue a gotejar sobre outro sangue... Era a loucura rubra do amor de almas doentias, que os agitava.

Elles estavam um ao lado do outro, olhos nos olhos, mãos nas mãos:

— Ha em mim uma sombra, que nunca poderás illuminar e que só clama a luz que provém de ti... Ah! Ladice, como eu soffro! Como eu soffro!... — exclamou Theophilo.

— Talvez seja tambem esse o meu mal... Eu te comprehendo... Chegamos á balisa da natureza humana, mas as nossas faculdades, as nossas percepções teem a sensação do além... Somos transidos pela necessidade de transfusão completa... — E´ a avidez de todas ás volições; é o embate eterno do vento e do mar que entraram em nós... — E Ladice apertava entre as mãos o rosto de Theophilo. — Vês, olho-te e amo-te como uma inconsequente... Quizera diluir teus olhos em meus olhos, a tua boca em o meu labio sequioso de ti... Oh! esta tua cabeça, linda, classica, quizera trazel-a constantemente sob a minha retina, presa em mcus dentes, porque ella eria a minha radiosidade.

Theophilo recebia sobre o rosto a sombra ardente do perfil apaixonado de Ladice.

— “Ha dias, que eu quizera quebrar-te, machucar-te, torcer-te os membros, ver-te morta... — disse elle, á meia voz, pausadamente. — A tua belleza, o teu beijo, o teu espirito me envenenam. Incitam-me, ao envés de saciarem-me... Tu és a exaltação, a essencia vibratil das cousas creadas...

— Eu sou os cinco sentidos do meu amôr; a nuvem branca sacudida pelo trovão e pelo raio; eu sou... — E Ladice parou — a sêde que te tragou... Theophilo tomou-lhe a cabeça, e beijando-a, dizia a esmo:

— Ideia humanada! Fulgor invisivel de minha consciencia; consciencia de minha loucura; ordem de todas as desordens do universo; mulher torturante, mysteriosa, onde o antigo e o presente se emmaranham; oh! minha gregazinha, conta-me os amores de tua vida anterior. Que fazias tu em Athenas, esplendida?

Ladice, erecta, libertando-se d´elle, com os gestos sóbrios, un pouco rigidos, de estatua, respondeu-lhe:

— Pela manhã, eu bordava peplos de pregas innumeraveis e de palmas de oiro para Athenas do Parthenon. A´ tarde tomava parte em festins onde amôres alados, empunhando guirlandas, vendazinhas, fachos, toltejavam ao redor de dansarinas semi núas... Eu comia queijos de Achaia, figos de Rhodes, e doces polvilhados de sal em forma de pyramide... A´ noite meus olhos erravam pelo mar immenso en busca de um Ephebo que eu não conhecia...

— E´ por isso que teus beijos são salgados e que teus olhs teem a sombra movediça de onda nocturna... — E cheirando-lhe os cabellos! Oh! são perfumados como o bosque sagrado de Paphos onde Aphrodte se banhava...

— Cheira-me as mãos, a pelle... Ellas ainda estão impreganadas do incenso, da myrrha do espicanordo que provinham do Oriente. — E Ladice chegou-lhe as mãos ás marinas, o braço roliço, fino, harmonioso de gravura bizantina.

— Vou ler-te um poema onde canto a tua belleza, o teu espirito, o meu amôr: ha fremitos de flamma, convulsões terriveis, angustias lascinantes. Rolas n´aquellas paginas como o genio do bem e do mal...

Theophilo levantou-se, abriu um armario envidraçado, e tirou de sobre uns livros, algumas folhas dobradas de papel.

— Estas rimas te pertencem. São a minha imaginação, o meu amôr, as minhas sensações, servos teus, glorificando-te... São a homenagem de um poeta á sacerdotisa suprêma da Graça e da Intelligencia.

Ladice recebeu-as como se ella recebesse o seu coração, a sua fluidez ou um presente esplendido da natureza, e levando-as aos labios, disse ao entregar-lh´as.

— Lê, quero ouvir pela tua propria voz essas estrophes onde a minha vida vive e as minhas linhas se gravam; serão a agua forte, physica e moral do meu ser... Ella ficou de pé ao seu lado, os braços para atrás, o perfil voltado para Theophilo, o pescoço nú, a golla abaixada.

A voz de seu amante tinha sonoridades, melodias, rythmos suaves, brandos, fortes, cheios, quentes, profundos; as suas palavras invadiam-lhe o intimo de eclosões maravilhosas, de efflorescencias raras, cresciam-lhe o orgulho, a dominação; granizavam-lhe soffrimentos, cuidados, venenos subtis, indefinidos, agudos, cortantes, desconhecidos... Ao findar a leitura Ladice obedecendo antes a um impulso do que a um desejo, se lhe atirou em os braços e com o rosto contra o seu rosto, rente a elle, arrebentou em pranto; as suas lagrimas levavam-lhe atomos do corpo e da alma... Pela primeira vez, ella sentin essa necessidade implacavel, feroz de posse completa... Dir-se-ia que a sua consciencia despertára inopinada, bramante, tempestuosa, rabida; ella o queria d´ella, só d´ella, o dia e a noite; ser-lhe dona das horas e do pensamento.

Theophilo a principio, attribuiu essa explosão á excessividade de seus nervos; com um carinho e uma ternura indiziveis a sua mão subia e descia-lhe pelos cabellos em desalinho... Sentou-se, e pol-a sobre os joelhos.

— Eu ainda não disse tudo: Ha cousas em ti fugidias, que não posso fixar... A tua dôr, por exemplo, quem a define? Em a tua sensibilidade reverberam todos os trabalhos da humanidade e da natureza. Registras, em as sensações, mutações invisivois, intangiveis... Perdoa-me querida, essas lacunas involuntarias.

Ladice um pouco mais serena, apesar das lagrimas que lhe turbavam os olhos, respondeu-lhe:

— Fizeste de mim, um ser extraordinario, exquisito, soberbo. Disseste o que sinto e o que te não sei explicar, mas que percebes pelas minhas manifestações externas. E o teu amor Theophilo, tu o descreves de uma tal forma, que o adivinho immenso, novo, sadio, forte, terrivel, irreverente, eterno, como as naizes da esperança em o universo... Ah! meu Poeta, quanta magnificencia tens... Como eu te amo! Como eu te amo... E repetindo essas palavras, ella o estreitava como uma alucinada, chorando mais, ainda mais. Elles permaneceram assim alguns instantes na meia-luz e no silencio, entrelaçados. Ladice a soluçar, Theophilo calado a acaricial-a, a miral-a; a violencia, porém, de sua amante, o seu pranto obstinado, o fizeram suspeitar, que além de emoções artisticas, havia outros sentimentos que surdiam: nunca elle a vira assim entregue a angustia tamanha, nunca o seu corpo se dobrara. Em o senso de Theophilo se levantou uma alegria infrene.

— Mas Ladice, por que estas lagrimas abundantes? Tens o meu amor, a minha intelligencia, o meu poder, a minha estravagancia, o meu desejo em as tuas mãos, em o teu dominio ao teu commando como cousas mortas, cegas, sem volição... Será possivel que não sintas em minhas palavras vibrações, desesperos, estridencias, revoltas de paixão? Tu me possues completamente... Agiste em mim, como a vida age em a semente: rompe-lhe o casulo, sacode-a. transforma-a...

— Ah! meu amigo, porque choro não sei. Amo-te, olho-te, sinto-te, admiro-te e percebo que não sou immortal, que não poderei gosar através de ti, todos os prazeres da existencia, o seu vicio e a sua virtude... — depois de uma pausa. Eu quizera ser qualquer cousa tua que te não deixa um instante siquer. — E seus olhos retinham os olhos de seu amante. — A tua nostalgia, por exemplo... Como adoro e me enebria esse negror que é o fundamento de tuas claridades, que é o teu mysterio insondavel... — E a sua cabeça pesada de tristeza caia sobre o peito de Theophilo.

—Mas fruirás de mim eternamente... somos um do outro, livres; o casamento sem amôr é um contracto que se desfaz, é a victoria da hypocrisia, é o successo da mentira... Sê minha para sempre, hoje, amanhã, agora... Iremos para longe, conhecerás a poesia morbida, a vassallagem perfumada, divina que enlouquece as sensibilidades nervosamente selvagens como a tua... Serás o meu idolo hindú... Este teu pézinho curto e fino receberá todas as manhãs o beijo da minha exaltação e do meu amôr, a rosa da minha adoração e do meu culto... Rezarei deante de ti, a fronte no chão sob o angulo de minhas mãos atiradas para a frente, juntas, reunidas.

Ladice o interrompeu: A sua voz tinha a lentidão das petalas quando tombam...— Durante o dia, serei, porém, o teu enigma cruel, a tua perplexidade, a mulher que ama e que se não dá... a ideia que se adora, que atormenta, mas que se não toca...

Estas phrases bateram em o ouvido de Theophilo como sendo a energia suprêma da seducção e elle replicou...

— Mas á noite ver-te-ei ao meu lado estreita, branca, luminosa, flexivel, avida como flexas que se despedem... Serás a hora fecunda, dominadora, senhoril do meio-dia, a se immobilizar com toda a sua espiritualidade rubente, o seu alarido de fulgores, o seu abrasamento universal...

Ladice o interrompeu.

— Conhecerás o livôr, a demencia de minha sensação que desconhece a solução... Sentirás em mim a pausa dos sentimentos e das imaginações multiformes e immensuraveis... porque tenho o gesto immortal do amor e da Intelligencia que não morrem... Segurando-lhe os pulsos fortemente, machucando-os mesmo, Theophilo fremindo:

— Arrancarei de ti, o teu senso, o teu orgulho, a tua ambição e todas as desordens que engendram os teus espasmos... terei tudo de ti, comprehendes? Eu te deixarei como a nuvem desprovida de tormenta... — E seus olhos se fixaram em Ladice como se ella fôra o principio e o fim das cousas vivas e ignotas...

A Senhora de Assis não respondeu. A audacia amorosa de Theophilo lhe emprestava um sabor violento, toxico: ser e não ser, e depois tornar a ser, era para a sua sensibilidade estranha, original, uma volupia extrema, deliciosa... Ella brincava descuidada com a corrente do relogio de seu amante: passava-a pelos dedos finos, torcia-a, destorcia-a, distendia-a, toda entregue ás suas emoções, aos seus estuosos alvorotos... mas, de repente, com um movimento consciente, sorrindo, estirou-a sobre a palma rosca da mão e disse fechando a meio os olhos:

— Vês, Thêo é a serpente de oiro de meu desejo; — e fez menção de levantar-se.

Theophilo a reteve.

— Espera... Dize-me quando serás minha totalmente... Quero-te toda como a terra tem o sol...— Elle inteiro, o seu motivo, a sua condição se agarravam alucinados a esta pergunta. As veias de sua fronte se mostravam em relevo.

— Mais tarde; ainda não... espera um pouco... — E seus braços se pousaram ao redor do pescoço de seu amigo.

— O meu espirito te deseja, a minha alma de artista, os meus olhos, as minhas mãos. — E os traços de Theophilo se aguçavam de paixão.

— Tu me terás como o sol tem a terra— disse ella repetindo a sua propria phrase, accentuando, porém, cada palavra como quem enuncia uma resolução repentina. Emquanto Ladice arranjava o chapéo, Theophilo espalhava pelo chão, desfolhando, as flores que lhe ornavam a sala.

— Oh, a sensação estranha que experimentarás em pisando cousas onde a vida palpita por instantes escassos. Cada vez que teu pézinho se levantar, uma deixará de ser: é como um beijo dado, um olhar que se perde, um fremito que se finda, um traço de belleza, que se esvae, uma sublimez que foge, um raio de juventude que passa, é uma etapa de menos para a destruição... E´, afinal, a paz, a grande paz, a alegria dos corações sem fome...

— Eu não gosto da paz nos sentimentos, retorquiu Ladice, approximando-se: E´ uma especie de insensibilidade, é o fim da sensação... dá ideia de esterilidade.

— Nunca a poderias gosar; não é a tua feição... E´s rapida, febril; e ella é monotona; lembra a vida de instincto, a vida funcção; é um machinismo desarranjado — accrescentou elle, abraçando-a.

— Então, não te verei hoje, á noite ? — inquiriu-lhe Ladice.

— Não, tu me não verás em tua casa...

— Tens razão. Não deves vir — ajuntou ella fracamente.

Theophilo levantou-lhe o véo e beijou-lhe a boca, os olhos, detidamente. Ladice, a cabeça meio pendida para atrás, conservava-se triste, triste, contra elle, como se fôra uma das sete dôres...

— Tu não vens, não é mesmo? Insistiu ella novamente, anciada para que elle fosse mais ousado, para que elle mudasse de resolução e exclamasse: "— Irei á tua casa, apesar de ti e de meu caracter!" mas, Theophilo disse-lhe:

— Não; ficarei com a tua lembrança e o teu soffrimento. — E a sua voz era uma caricia. — Esperarei a tua vinda amanhã com a fidelidade, a impaciencia bravia, e desespero, a afoiteza pruriente da Terra para com as sombras de todas as formas que se lhe amontoam em os flancos... Entendes?

— Até amanhã — suspirou ella, e ambos apertaram-se, rijamente.

Theophilo ficou largo tempo de pé na poita paralysado, atordoado. Toda a sua attenção, as suas faculdades, os seus pensamentos, se fixavam n´aquella silhueta esguia, de andar apressado, vestida do panno madeira. Dir-se-iam as tranças castanhas, doiradas do outomno a emmoldurar-lhe os membros formosos, a servir-lhe de caule, a cabeça magnifica, a essa flôr radiosa de Primavera, a essa rememoração fiel, exacta, soberba da belleza grega... E Theophilo inteiro se prendia n´aquella figurinha que já desapparecia na curva distante. As pessôas que passavam volviam cheias de curiosidade, o rosto para esse homem de pé que parecia carregar na fronte maravilhosa a tristeza unebre das lagôas irremeaveis, das cousas que se vão e não voltam mais...

Theophilo entrou, e sentou-se. A sua cabeça lassa, fatigada, encostou-se em o espaldar de uma cadeira. Agora que se achava só, abandonado, no ermo, o seu senso envenenado pelo senso de sua amante, as suas mãos ainda divinizadas pelos traços ardentes de Ladice, sentia estrugirem-lhe, até a florescencia, os sentimentos fortes, rudes; as paixões estridentes, féras; o instincto de propriedade exclusiva de Ladice; a decisão definitiva de tel-a e logral-a eternamente, que por momentos a sua ebriez, a sua felicidade haviam apparentemente amainado, affrouxado, serenado... Elle se revoltava contra a sua propria fraqueza, contra esse rasgo de moralidade inherente a todo o homem de principio, contra a sua covardia espiritual, a sua impotencia ante outra vontade, contra o fado, as leis sociaes, a humanidade, a injustiça natural...

A tarde morria. O tropel dos carros que voltavam da Estação já havia muito que se aquietara, a noite chegava de manso, subtil, qual nympha que se esgueira pela encosta, fugindo ao Fauno temulento. Os globos das lampadas electricas se abriam avidas de luz como olhos tardos de noctivagos impenitentes... a folhagem parecia encolher-se á guisa de asas fatigadas, de mantos que mãos frientas aconchegam...

Theophilo continuava na mesma posição, preso dos mesmos tumultos que iam e vinham, ora emmaranhados, confusos, encorpados, ora desunidos, desgarrados, a predominar um só, isolado, incommunicavel, mas terrivel como um látego de fogo... Dir-se-ia que um espirito infernal, dammado, os atiçava, os fustigava, os agulava.

— O jantar está servido — annunciou-lhe o creado inglez.

Theophilo, sem mesmo o olhar, disse-lhe:

— Não janto hoje, Parker; não me sinto bem... Traze-ne uma taça de champanha, o meu chapéo e a minha bengala. Tambem, accrescentou elle vivamente, com um raio de alegria ferindo-lhe as pupillas: —”Irei vel-a, far-lhe-ei uma surpresa, balbuciou elle, erguendo-se, sacudindo o casaco, alisando as calças, compondo os cabellos. Quando Parker entrou, Theophilo esvaziou de uma só vez a taça, e saiu apressado, com a determinação fixa de um demente. Era tanto o seu alvorogo, que por vezes parava e levava as mãos ao coração como que tentando retel-o... Vel-a-ei ainda, — repetia elle, baixinho, totalmente indifferente ás caricias nostalgicas das sombras nocturnas. Em atravessando a Praça de D. Affonso um psiu forte saido justamente de um banco que ficava do outro lado, o fez voltar bruscamente. Era o seu amigo Dr. Xavier, o elegante secretario de Legação, que o chamava. Aquelle “psiu” agudo agiu em Theophilo como se fora a ponta de um estylete magico; houve uma detença subita, uma especie de gesto de recuo identico áquelle que separou as aguas do Mar Morto ao signal divino, e elle parou á espera do amigo que se approximava.

— Mestre, queira desculpar, o Snr. soffre? observo-o de longe, que tem? os seus movimentos são desordenados...

— Ah! Xavier, é um soffrimento atroz que quiz ser festivo por instantes... Mas, soffro, soffro como um desgraçado. — E ambos continuaram a andar, um ao lado do outro.

— O Dr. Xavier tinha para com Theophilo uma admiração extraordinaria, a par de grande amizade: tratava-o de Mestre, homenagem ao seu talento, á sua erudição. Elle não ousava, entretanto, interrogal-o, apesar de suppôr, adivinhar a causa; havia certo respeito de sua parte. Elle bem se recordava do passeio, a enseada de Botafogo e da silhueta esbelta de Ladice. O seu coração se confrangia penalizado, ante a dôr do Poeta celebrado, do homem que tinha a sua veneração e a do paiz.

— Será possivel que um homem que empunha a gloria, um favorito das Musas, soffra como um simples mortal?

— A gloria deve ter a sua parallela — o amôr, para que satisfaça plenamente... A gloria sózinha é a descida fugaz de una espadana divina em nós; é o movimento infecundo de asas colossaes a nos agitar; é o som seco, arido, estridente de metal, a tilintar em nós; é, afinal, um mergulho rapido, intenso, na vertigem...

Elle ficou algum tempo pensativo. Depois, com calor — Emquanto o amôr, rapaz, é a pausa, a estadia em toda a sublimez da vida! Com certeza ainda desconheces esse sentimento... Amar Xavier, é vivermos encerrades dentro de lirios... E´ sentir-mos successivamente a morte de todas as volições, pensamentos e sentidos para a geração, a forttficação, o engrandecimento, a exaltação, a dominação absorvente de uma outra idéia, de uma outra vida que se enxerta em a nossa... E’ o triumphar de uma possibilidade exotica, a invasão de um ser estranho a se apoderar de uma consciencia que logo deixa de ser... Amar é trazermos preso as sensações, á guisa de soalhos, o furor, a violencia, o alarido de raios enfurecidos e o silencio illuminado, beatifico, febril, da immortalidade... Amar, Xavier, é assittirmos por toda a parte, onde quer que os nossos olhos batam ao renascimento de magnificencias multiplas, de plenitudes de riso, de alegria, de folias juvenis; é trazermos ao redor do corpo, o espasmo, a contracção eterna da immensidade que circumda affoita o universo como um nimbo glorificador; é sermos encadeados, acorrentados, completamente cobertos por uma vegetação densa, uberrima, tenaz, brutal, estonteante, rubra...

Theophilo parou um instante, a sua vehemencia o fatigava. Atravessavam agora a ponte mais formosa da cidade. O rio se extendia ao longo da rua, preguiçosamente, negligentemente como cabellos que se desenrolam, que se desfazem e param... Quasi se não percebia o movimento lento de suas aguas.

— Vés, Xavier? Tenho aqui o mais suggestivo dos symbolos. Este rio se entrega á terra inteiro, confiante, voluptuoso, qual amante ao seu amante, e d´esse abraco apaixonade, d’esse beijo amplo, immobil, fecundo, d’esse amôr fertil, obstinado, fatal, surge a vida de todos os seres sengiveis e brutes. — Extendendo as mãos sobre o rio:—Eu te bemdigo união inseparavel, ligacio immanente!.. Ensinamento prodigioso á humanidade varia, tens a fidelidade unica, soberba da morte, e como ella uma só sêde, uma só fome!... Torre de marfim immaculada, purificais os máos desejos... Encantamento mudo do ardor perenne, rio maravilhoso que guardais em as tuas curvas o mais lunatico dos amôres, eu te bemdigo e saudo!...”

Theophilo quedou-se a mirar as orbitas em fogo dos reverberos e a flexa sombria das magnolias que voavam á flôr da agua que descia mansa, vagarosa...— Olha, Xavier, nada a detem em a sua ancia desabrida. Que Ihe importam o olhar acceso das bobinas electricas e a ousadia do arvoredo... Ell-a que corre, que passa e desapparece, livre, sempre aferrada á terra... Oh! se as mulheres fossem assim!... Si em amando ellas desprezassem a caricia mesmo longinqua de algum galanteador...— Apenas Theophilo pronuciou essas palavras o remorso o picou: O amôr, a fidellidade, a insania de Ladice para com elle, não eram, pois, assim, totaes, terriveis, atroantes...— Todavia, nfo escarmentemos todo o sexo... Ha excepções brilhantes... Ha verdadeiras martyres de amor...

— O Snr. não pode ser amargo para com ellas... Com certeza tem encontrado em cada coração um voto perpetuo...

— Nao te sei responder ao certo; nunca cuidei de pesquisar o que havia no coração das mulheres que me passavam pelas mãos... E isso porque não as amava... A mulher que nos interessa e nos acorda a curiosidade é sómente aquella que amamos.

— Devo comprehender então que ama pela primeira vez? Mas, mestre, as mulheres não são, pois, todas iguaes ?

— Para quem sae da adolescencia e para quem deixou de ha muito a juventude, ellas todas teem a mesma linha morbida do sexo... Ficamos offuscados; mas, quando attingimos a virilidade, ha sabores, requintes, exclusivismos, nuanças, que nos surgem em a natureza; é por assim dizer o esboço do nosso Ideal que se inicia; começamos então a olhal-as de um outro modo, comparamol-as e divisamos-lhes as differenças; tornamos-nos exigentes, queremos que a belleza esthetica de suas formas se rasgue e nos traga, a lume, a belleza de seu espirito: perfil grego, imaginação grega é de tontear, é de enlouquecer — accrescentou elle, com os pensamentos a se refugiarem em Ladice.

Isaac Xavier sentiu a verdade d´essas palavras elucidar-se e explicar-lhe o tedio que por vezes experimentava ultimamente quando ouvia em a sociedade, as mesmas phrases, os mesmos commentarios, repetidos por bocas diversas... Elle tambem já fizera vinte oito annos. Chegava-lhe a vez.

Ambos continuavam a caminhar, silenciosos, immersos em suas reflexões; de repente Theophilo disse:

— Olha, Xavier vou dar-te um conselho: (Era um subterfugio a que elle recorria para se acalmar)— Quando amares, mesmo que seja uma mulher casada, qu´importa de resto, e fores amado, galga todos os empecilhos, empenha todos os teus afans poderosos contra os obstaculos que topares; afasta de ti os escolhos, quebra os laços, os entraves, as correntes que se te apresentarem; sê forte, ousado, faze com que a tua vontade triumphe, seja victoriosa; desafia a humanidade, subjuga o inimigo, foge com a tua presa e depois ri, Xavier, ri, gargalha do damno que fizeste. Qu´importa que o trilho seja de fogo, se o cimo é azul e ouro, se rosas florescem, se ha sol e rubores?...— Theophilo sentia acudir-lhe pelas cellulas a força, o trabalho, a vontade, a propulsão de vidas que se querem engendrar. — Ah! Xavier, surprehender-se o destino, provocal-o, vencel-o, tel-o sob si, como despojo opimo da existencia... é gosar-se a mais épica, a mais tragica das sensações... é como se torcessemos raios e os atira semos aos pés...

— Mas, Mestre, são só os poetas que amam assim, com essa vehemencia dominadora. E´ uma morbidez inherente unicamente aos senhores, nós outros, os vulgares, somos mais timidos.

E o Dr. Xavier sentia-se mesquinho, limitado, compassado, fraco, ante essas potencias que agitavam a alma do outro.

— Na tua idade, Xavier, ha vigores, robustez para arrasarem-se mundos, se desmoronarem citadellas, se rasgarem symbolos, se morder o coração das cousas mortas e vivas... ha no homem o calor, a fermentação, a effervescencia, a expansão de terra rica em germens, em sementes, em principios activos... Sê um audacioso — accrescentou Theophilo notando que já se achava mui proximo da casa de Ladice.

—Adeus, rapaz; deixo-te aqui, attende as palavras quem conhece a humanidade e o seu soffrer.

— Sinto que energias novas se me despertam... O Snr. é um privilegiado... Que banho de luz, que claridade é essa que entra em mim! Mestre, peço permisão para vel-o sempre...

— Todas as manhãs e todas as noites estou ás tuas ordens. Os dias passo-os trabalhando. Adeus, Xavier.

Os dous amigos se separaram.

O Dr. Isaac Xavier em caminho para uma elegante Pensão onde se jogava o pocker todas as noites, perdia-se em conjecturas inexplicaveis sobre esse homem que apesar de theorias e forças atrevidas e poderosas, parecendo mesmo commandar aos proprios planetas, encontrava-se dolorosamente manietado pela magoa. Por que soffria elle? Que mulher se negaria ao seu desejo? Para um ser superior como elle todas as difficuldades se alhanam, todos os caminhos se abrem floridos, todos os successos teem talares...

Theophilo muito emocionado parou hesitante junto ao gradil de ferro da casa de Ladice. A porta da sala estava meio aberta; havia muita luz; através da trepadeira elle conseguiu distinguir uma ponta de sofá e um pézinho lindo enfiado em sandalia rosea; pareceu-lhe ouvir a voz de alguem que lia alto; Theophilo, porém, não despegava os olhos d´aquelle pézinho que tinha a languidez de flôr que pende. Oh! como elle adorava esse pézinho unico, ardente, que se contrahia e se estirava, livido de paixão, esse pézinho que tinha o signal de seus dentes, as marcas de seus beijos, as eclosões de sua raiva amorosa... Quanta vez elle não reteve em as mãos, esse pézinho delicado, macio, fragil, como nuvem de aurora, esse pézinho que trazia esculpido de um lado um crescente doirado de sol, um balanço subtil onde Amores se baloiçam... Curva mnaravilhosa de golpho, onde o seu esto, a sua vezania, a sua inconsequencia se abrigavam...

E elle vestia em imaginação, esse pézinho, não de pelle de viboras como os da rainha Mestris, mas da agonia violeta de sua volupia e do abrasamento magnifico de seu silencio...

Theophilo não ousou entrar. A vista d´aquelle pézinho, lhe atravessava o coração, os tecidos, as visceras, como punhaes frios envenenados.

Essa noite, elle a passou compondo rimas loucas,

O grande soffrimento de Ladice lhe abalava a saude.

Ella se não conformava com essa separação quotidiana de Theophilo; cada vez que o deixava, a sua tortura crescia, multiplicava-se immonsuravelmente. A´ noite em companhia de seu marido mal dissimulava o tedio, a impaciencia esperta que lhe lavravam em o intimo. Havia instantes. em que ella desejava empurrar os minutos para que elles se fossem de roldão morrer em a eternidade. A sua conversa com Francisco era vazia de enthusiasmo, de calor, de brilho; não lhe levava fremito algum; não havia, por assim dizer, ligação entre o seu espirito e a sua phrase era a conversação morta, automata, incolor, de desilludido ou de coração beatissimo, constantemente engolphado em contemplações divinas. Mas os seus gestos, a sua cabelleira irrequieta e viva, os seus olhos por vezes meio fechados, a sua boca, os seus contornos trahiam a morbidez, o fulgor, que Eros empresta nos amôres renitentes e immortaes.

O seu sangue se alimentava com todos os venenos do bem e do mal.

Ladice sentia sobre si a excessividade do Universo.

Ella não era mais ella; era a paciente de uma força estranha, absoluta, terrivel, immensa; era a veiga tranquilla, o desfiladeiro estreito onde todas as tormentas entraram bramantes...

A seguinte definição descoberta em um livro de Nietzsche calou-lhe até aos penetraes do senso como um obuz, em flammas: “a verdadeira moral é a certeza instinctiva na acção”. D´ahi Ladice deprehendeu com tristeza e alegria que a sua vida passada que considerava um sacrificio, um acto superior de abnegação christã, era simplesmente a concatenação de mentiras e hypocrisias, a apparencia falsa de uma virtude que não existia. Fora vivida contra a sua vontade, as suas tendencias e inclinações, forçada pelas circumstancias, pela falta da insurreição de um amôr alucinante ao seu alcance, inteiro seu e doidamente correspondido... O seu desvario por Theophilo augmentava...

Ella queria agora mais do que nunca ser a esposa lyrica da Luz...

Ella queria irromper como o Impeto pela casa de Theophilo, e dizer ao Pceta: "Toma-me, tu me pussuirás eternamente, durante a dansa lenta, classica das Horas, e o silencio grave, imperturbavel solemne dos annos que se transmudam... Serei a gaze febril, flexivel, serpentina, gracil, que te envolverá... Acharás em o pallôr de minha pelle a forma de todos os beijos, a se eternizarem..."

Ladice se tornava mais estheta, mais artista. A sua subjectividade se exaggerava, se requintava, exteriorizava-se, misturava-se ao som, á claridade, ao arvoredo, á terra, ao azul, ás montanhas, á florescencia, ao perfume, emprestando-lhes emoções, arrepios, ancias, vibração de consciencia... Essa multiplicação incessante de seu ser, essa exaltação perenne de sentimento e imaginação, essa estadia constante em o suprêmo das cousas existentes, essa vontade selvatica de pertencer exclusivamente a Theophilo, roubavam-lhe vida ao organismo. Parecia-lhe ás vezes que a curythmia de suas pulsações se interrompia.

O seu coração era o orgão que ella mais agudamente sentia; para sua phantasia elle deixava de ser une pompe foulante, segundo Claude Bernard, para tornar-se o desdobramento maravilhoso e fecundo de suas sensações... o sim physico de todas as tempestades de seu eu. Francisco que a sabia dona de um temperamento nervoso, excitavel não se affligia com esses symptomas hystericos. Ladice era tão moça para ter alguma lesão... E nessa noite, quando ella lhe disse comprimindo o seio:

— Ah, Francisco, que sensação singular. E´ como se tivesse pausas subitas no coração.

Elle lhe respondeu, rindo-se.— E´ nervosismo, não te assustes... Precisas de distracção... Vem, vamos á Praça; ha musica, animação... Se fosse doença não terias por certo essa viveza de olhar e de movimentos. Toda pessoa cardiaca é pesada, vagarosa... E além d´isso é molestia da velhice — accrescentou elle convencido, satisfeito de seus conhecimentos medicos.

— Não penses que tenha medo... Ha já alguns mezes que sinto essas anormalidades... mas ellas são tão rapidas e raras que me não incommodam, retorquiu a Senhora de Assis, já sem mais nada, envolvendo a cabeça em uma longa charpa.

Elles chegaram á Praça justamente com a musica. A concurrencia era enorme. Havia vida, agitação, bulicio: silhuetas elegantes, linhas impeccaveis cruzavam-se, enfrentavam-se, admiravam-se.

A noite estava limpida com reflexos de aço. Dir-se-ia que a atmosphera, a natureza se haviam açacalado; o céo apresentava uma opacidade indefinida, dubia; sentia-se ao olhal-o que elle esperava alguma cousa; patenteava n´esse meio tom uma espectativa insoffrida, uma elaboração muda... Do lado do poente um clarão se approximava, subia, era a lua cheia que surgia de entre as frondes, ardega, intensa, rapida... magnifica como Phrynéa emergindo das ondas de Illissa. Resvalava pelo ether furtiva, esguia, concentrada em si, subtil, qual serpente que se esgueira.

Ladice que vinha com uma unica preoccupação, parou justamente em um dos angulos da calçada, passagem forçada para quasi todas as pessoas; seus olhos erravam de homem em homem, em busca de Theophilo; Francisco um pouco atrás, conversava assumptos políticos com um novel deputado.

Meia hora se passára e Ladice já desanimava encontrar seu amante...

— Oh enamorada esteril, fomentadeira de nostalgias delirantes, vestal impura, sonho ardente intangivel, essencia lunatica do ardor, oh! minha Ladice, tu és como aquella lua cheia que está deante de nós... — Era Theophilo que lhe falava assim baixinho e que lhe apparecera sorrateiramente pelas costas.

A vitalidade, a alma maravilhosa de Ladice se agarravam a Theophilo, acurvavam-se sobre o seu perfil, debruado de mysticismo, de paixão, de transcendentalismo.

— Si te não visse, morria — balbuciou ella, o seu olhar a se immobilizar em os olhos de seu amante.

Era Domingo, dia em que elles se não podiam amar.

— Um presentimento forte me trouxe directamente a ti; si te não achasse iria á tua casa. — E essas palavras traziam a energia de sua decisão.

O colloquio era curto, mas incisivo, efficaz, cortante, qual sentença de propheta.

A cada instante seus olhos se volviam um para neutro, loucos, tenazes, como correntes fluvines que se querem desviar e não podem... Eram embates estridentes, impetuosos, acerrimos, vorazes... A musica, a magnificencia da lua, o enfreamento obrigado; a repressão total de seus tumultos, actuava n´elles como corrosivo, filtros maximos de incitação, caricias desordenadas.

— Théo, amo-te, amo-te... — E a voz de Ladice caia na escuridão como o fragmento luminoso de uma estrella.

Theophilo com os olhos fitos no rosto de sua amante pensava:

— Mulher lyrica e selvagem, eu te proclamo Rainha das Sensações; recebe a homenagem da Terra e a minha... Para ti se extendem como supplicas, orações, incenso, fluidos amorosos, o beijo, a avidez, o estertor, o grito sem som, meu e dos estames, das corollas, dos corações separados, do rochedo solitario, da agua esquecida, do pollen abandonado, do verdor, da juventude, dos amôres opprimidos e libertos...—

E as suas mãos se tocaram, ambos empurrados um contra o outro por uma onda mais densa de gente que рassara.

— Ladice: toda uma juventude, toda uma imaginação de Poeta... — segredou-lhe Theophilo ao ouvido. Uma facha solta do cabello de sua amante roçou-lhe pelos labios, celere, nervosa, trepidante, qual lingua de fogo.

— Thêo, legenda estranha e mysteriosa, tens a minha genuflexão — e o corpo de Ladice recuou, gizando no ar uma mesura.

Esses dous amorosos, um ao lado do outro, saboreavam o prazer inedito, seductor, acre, estonteante, de um segredo a dous: laço, liame, correlativo, imponderaveis, mas ferozes, irrevogaveis, concludentes, terminantes como o abraço, o vacuo, o instante immoto que estreita, que une, que funde todas as opposições todos os contrastes, todas as sequencias do Universo.

No meio d´essa multidão indifferente, elegante e frivola, que recebe da vida externa, sómente o que aos orgãos visuaes se lles antolha; que gasta os annos em tomar para si o molde, o habito, a opinião de outrem, tornando-se uniforme, embotada, acanhada de espirito, anemica de iniciativa, esses dous se levantavam como sendo a Verdade, a Asseveração inconcussa do casamento, o Verbo flammante de todas as invisibilidades e inconsciencias terrenas e mortas.

— Saiamos d´aqui, que eu não posso mais Ladice... Quero espaço — supplicou Theophilo, meio vertiginoso.

Elles se approximaram de Francisco, e, de commum accordo, resolveram fazer algumas voltas a pé, antes de irem para casa.

A calçada não era muito larga; Ladice e seu marido ficaram no meio, os dous outros os ladeavam, embora seguissem um pouco mais na frente.

Ladice sentia-se infeliz ; seu perfil, seus olhos se abatiam sobre a cabeça magnifica do Poeta, bulhentos como remigios de asas. Theophilo conservava-se pensativo, embora respondesse ao que se lhe perguntava.

— Dr. Theophilo, com certeza, nunca viu uma flôr tão altiva — exclamou Ladice, parando e mostrando-lh´a dentro de um jardim.

— E se lhe disser que todas as manhãs lhe venho render o meu culto!... Ella lembra-me os ademanes classicos, amplos. Tem rapidez, movimento, dir-se-ia que foi burilada em flagrante.— E baixinho, continuando a andar — E´ a flôr do extase...

— Não, Thêo, é o meu gesto. Repara: — sou eu que arranquei o meu coração e t´o offereço escancarado, rubro, gotejante, a arder em a palma da mão. — Ladice para lhe dizer essas phrases se adeantara um pouco.

Os olhos de Theophilo se fecharam, sorvendo-a de ponta a ponta.

Elles chegaram a uma ponte. Ao atravessal-a Theophilo inclinou-se sobre o balaustre, e disse alto:

— Ah! que a agua me fascina... Quando morrer, quero que me enterrem sob um regato... Como saberei dormir embalado n´esse murmurio eterno: Será a voz da minha amada a segredar-me amôr, surdinas alucinantes, estribilhos languidos... Como me será bemdita, então essa sepultura humida e fria !

Essas palavras invadiram Ladice de sombras mortas.

— Si te não soubesse poeta adivinhal-o-ia por esse dito teu... Vocês são sempre differentes de nós — atalhou Francisco. — Aposto eu, como Ladice tambem tem pretenções extraordinarias. E tu Ladice?

— Peço que me enterrem sob um carvalho, quero que as suas raizes me envolvam o corpo, sejam para mim os braços avidos, da natureza enamorada; que ellas me perfurem o coração, os tendões, á guisa de uma volupia mortal: mesmo morta quero ser trespassada por violencias. — Em enunciando o seu pensamento, Ladice se referia a Theophilo, ao amôr inveterado que os ligava; ella inteira fremia.

Parecia a Theophilo que a figura encantadora de sua amante se recamava de phosphorescencias, de luminosidades, de ardentias: ella era bem a filha do Ardor..

— Já suppunha mais ou menos essa estravagancia — respondeu Francisco; mas com certeza o nosso deputado tem o seu ultimo desejo igual ao men um pedaço qualquer de terra, encimado por uma cruz, não é mesmo?

— Ah, Doutor, sempre é preferivel descançar-se ao lado dos seus em um canto de cemiterio — observou esta, lembrando-se da cidadezinha longinqua onde nascera.

Emquanto os dous dialogavam, Ladice passara ás mãos de Theophilo, escondido, algumas violetas que trazia ao corpete, dizendo-lhe:

— “Recebe a minha radiosidade.”

O Poeta delirava; por um instante elle foi tomado dos máos instinctos, da perversidade, da ignominia, das ferezas de assassino vulgar: eliminar aquelles dous, arremessal-os ao rio, victima e testemunha, roubar Ladice, fugir para o estrangeiro... Afastou-se lasso, frouxo, quebrantado e lentamente ganhou após os outros a calçada fronteira.

Olhando-o, a Senhora de Assis percebeu que o vate era preso de forte emoção.

Elles enfrentavam agora a igreja em ruinas. Theophilo e Ladice pararam ante a virgem de mãos extendidas, a cujos pés uma vela se queimava.

— Mater admirabilis, tende piedade de mim, dai-me ao meu Amôr — suspirou a Senhora de Assis.

— Virgem feliz, dizei-me sim... quedarei sempre deante de vós, qual lampada accesa de fé, de devoção, de santos fervores... Serei a tuba viva a proclamar aos povos a veracidade do milagre — formulou Theophilo em a profundez de seu coração.

— Estas muralhas negras me lembram uma gravura de Jerusalem, — proferiu Ladice, esforçando-se por aclarar o ar sombrio, de seu amante.

— Realmente é um pedaço da Cidade Santa... Até se assemelha á dôr impedrada. — E voltando-se para os outros, continuou: — Vejam a tristeza d´estes fragmentos ennegrecidos, que parecem chorar em seu abandono, a ausencia de uma Figura Imperial... Elles trazem o luto de uma vontade extincta, o abatimento, a compostura da resignação... — Theophilo parou un instante — creio mesmo ouvir-lhes as lamurias, as queixas, as imprecações, o desespero, o pavor, a agonia de se saberem desintegrados, de perderem a todo instante pedaços de si mesmo, de assistirem conscientes a approximação vagarosa, mas fatal do exicio derradeiro... Oh! é o transumpto exacto da vida humana... — concluiu elle, em um tom amargo.

— São reminiscencias de uma fé imperial. Pretendiam construir uma cathedral — explicou Francisco ao companheiro.

— Como são lindas as flôres aqui! —exclamou a Senhora de Assis, detendo-se ante uma fileira de hortensias, embora os seus olhos se fixassem nas angelicas lividas de luar.

Theophilo que se achava á pequena distancia, observava a sua amante de perfil, e pensava: "E´ uma tuberosa palpitante. Traz como a outra na carne, o pallôr dos espasmos mortos e a sua febricidade..."

Approximando-se:

— As angelicas se estiram no ar como desejos que querem florescer. — Dirigindo-se a Ladice:

— Parecem implorar constantemente alguma cousa ao céo. — Baixinho:

— E´ como a tua boca para o meu beijo. — Alto:

— E´ uma flôr insatisfeita.

Em seguida olhando ao redor e vendo que Francisco e o Deputado palestravam animadamente, um pouco além, proseguiu... Que analogia entre ti e essas virgens do jardim. Oh! grito perfumado de minhas noites... Oh! beijo delirante do encantamento no ether, inclina-te para mim...

Em dizendo isso, elle se arredou, levando nos olhos as lagrimas roazes de um desejo esteril.

A Senhora de Assis não poude responder. As palavras de Theophilo, os seus olhares de amôr subiam e desciam-lhe pelo senso. Os mysterios de seu ser se abriam, estuosos; as suas sensações se desatavam, se despenhavam desordenadas, irreverentes; o seu romantismo passava como um sôpro vesáno sobre essas flores que já não eram mais flôres. Em as rosas, ella lobrigava, pés roseos e enxutos de Dryades amorosas. Das vinte corollas violetas de uma digitalis, via desenrolarem-se, n´um rodopio infrene, aros, espiras, fios chrystallinos, argenteos, diaphanos, irisados — era o ardor das abelhas, das moscas doiradas, dos escaravelhos que dormitavam... De repente, porém, essa abundancia de formas e côres, se transmutou... O seu delirio então, divisava: labios exangues abrindo-se, gargantas desfallecidas, caricias mortas, corações sem pulsação, volupia inerte, retinas incandescidas, indolencia sublime, mãos brancas, conceitos rubros... Mas essas visões, tambem já desappareciam; sobre ellas, extendia-se unindo-as, irmanando-as, reduzindo-as a uma só massa, tenue véo transparente tecido de labaredas e flammas: era o desejo de Ladice mais forte que a sua realidade que os estreitava em um abraço exterminador... mas essas imagens já se apagavam... Sobre o cimo escuro das pedras manchadas de luar, dominando o arvoredo, a ramaria, magnifico, como nas éclogas antigas, ella avistava Idas, adolescente, vestido de pelles de cabra, estrangulando um cordeirinho a Pales, para que lhe dásse sem demora, a energia tão cubiçada...

— Mas Ladice, vamos embora, a que fazes tu ahi? — inquiriu-lhe Francisco.

Ella estremeceu. A Senhora de Assis achava-se em completa inconsciencia, toda entregue ás sensações morbidas, que a sua imaginação extraordinaria lhe offerecia. Silenciosa, pausadamente, dirigiu-se para onde os outros permaneciam.

Ladice caminhava sem falar, sem alma, sem coração, sem espirito, distrahida, absorta em seu amante.

Ella se sentia a columna de fogo, o radio vivificante, o atomo espherico, mobil, o elemento puro que vicejava em o amago de Theophilo como a efflorescencia da vida...

Em sua boca, -em seus cabellos, em seus olhos recebia, atirada pela brisa, o ar aspirado pelo seu amante, impregnado d´elle. Seus labios se desccrravam para haver das mãos de Eolo, esse beijo morto, essa particula divina pagã.

Ao defrontar o parque Imperial, Theophilo observou :

— Este palacio devia ser integralmente conservado como uma recordação tangivel do passado.

— E´ pena haverem-n´o retalhado, assim, sem piedade, retorquiu Francisco.

— Sobretudo para nós, povo sem tradições, dono de uma historia escassa em fastos — atalhou o Poeta. — Como venero o que foi... Um monumento antigo me desperta todos os grandes tormentos de sciencia intricada, metaphysica... Elle se me apresenta como sendo uma germinação fecunda de ideias, de supposições, de conjecturas... E´ a grande duvida a flagelar-nos a razão; é o riso da ironia a gelar-nos a audacia...

— Dentro de alguns annos far-se-á justiça cabal, ao reinado de D. Pedro II, como um dos mais fecundos — atalhou o deputado. Lastimo não o haver conhecido pessoalmente, residi sempre fóra...

— Vi-o bastante vezes em festas officiaes — disse Francisco.

— Em pequenina, passeando com a governanta, muitas vezes me acariciou os cabellos — acrescentou Ladice.

— Meus cumprimentos... E´ bem uma cabeça digna de mãos imperiaes. — E Theophilo curvou-se fazendo-lhe uma reverencia.

— Com que orgulho, ella diz isso...— objectou Francisco.

A Senhora de Assis sorriu, e calcando cada palavra, respondeu:

— E´ um dos meus orgulhos, não o meu orgulho...— E seus olhares desappareceram nas pupillas apaixonadas de seu amante.

O seu unico orgulho era o amôr do poeta immortal, do vate glorioso.

— Sempre que passo por aqui, tarde da noite — continuou Theophilo, — afigura-se-me ver, errando por essas palmeiras, o vulto majestoso e branco do velho Imperador.

— Si estivessemos na Allemanha, já haveria, por certo, rumores de lenda, a esse respeito — ajuntou Ladice.

— Si aventares essa ideia, Theophilo, todo Petropolis acreditará, apesar mesmo de seres poeta, observou Francisco. Esse final provocou hilaridade: todos se riram.

Ao entrar na rua 15 de Novembro, Ladice teve a impressão de penetrar em um bazar. Ella provinha de uma rua sombria, mal illuminada, triste, sem movimento. Emquanto esta se mostrava ruidosa, gritante de luz e de variedade de toda a especie nas vitrinas.

— Como esta rua se torna vulgar em a cidade da sombra e da quietude...— exclamou ella.

— A sua alegria é uma profanação para a cidade lacrimosa de um Monarcha — replicou Theophilo.

O resto do caminho foi feito quasi em silencio.

Em chegando em casa, Francisco insistiu para que ambos entrassem. Os olhos de Ladice se encravaram nos de Theophilo, atenazantes, supplices... Arrebatado de si, de sua razão, elle, finalmente acquiesceu...

— A curiosidade do vate se aguçava dolorosa. Uma nova angustia se lhe abria, despertava, cada vez que descobria vestigios de sua amante: sobre o sofá jaziam rosas murchas; na cadeira ao lado, um livro escancarado voltado para baixo, sobre o tapete um grampo de tartaruga... E elle pensava: “oh! a vida, o bulicio que esta mulher tem... Deixa após si traços animados, traidores... — Segurando a almofada por aqui passou a desordem de seus cabellos; a tormenta febril de seus sentidos fanou estas rosas, sugou-lhes a seiva, a virgindade, o summo... Por toda a parte descubro a impaciencia de suas mãos avidas de mim, o dualismo torturante de seus pensamentos, do seu desejo immortal — Ella e eu! Entrelaçados, gravados, o symbolo da união inviolavel a encimar todas as cousas, a pairar no ether qual detença luminosa, ignea...

A Senhora de Assis sentia communicar-se-lhe em as veias, a perturbação do poeta; extendendo-lhe o livro, achegou-se-lhe:

— Passei o dia a lêr os Poetas Menores... Estou encantada com as éclogas de Calpurnius. — Ella falava para dissimular o que lhe ia em o intimo. Parecia-lhe que todo o ser se estirava, se offerecia a Theophilo, qual fruto esplendido que ha condensado em a polpa, as volições da terra, da natureza e que quer ser mordido, maltratado por dentes humanos, ratos de sol, avidez de antenas.

— Teem o frescor das cousas que nascem, de gleba, intacta, de infancias, de elaborações — replicou elle lentamente.

— Deixaram-me a impressão de quem sabe do amôr, das sensações, apenas os grandes contornos, as linhas geraes...— E ella sorriu.

A emoção do vate tirava-lhe o poder da palavra; seus olhos resvalavam, disfarçados pelas paginas do livro.

Ladice invadida de pensamentos loucos, levantou-se, abriu a janella e foi-se para a varanda. Theophilo do sofá via-lhe o perfil estreito e branco, ir e vir; e immobil, lá no céo, a encaral-o, a lua cheia; fixando-a elle recebeu a impressão da nudez e estremeceu.

Dez minutos mais tarde, quando já na calçada, elle se voltou para olhar mais uma vez a amante em pé no alto da escada, Ladice pallida, extendeu-lhe as mãos n´um gesto de quem se dá, dizendo-lhe: “Leva-me comtigo...”

* * *

No dia immediato Theophilo recebia em seu amôr a exaltação da Senhora de Assis: essa violencia espiritual, maravilhôsa, transcendente, extrêma dos sentimentos humanos; essa parte invisivel, vibratil, incorporea, magnifica, profunda de nossa sensibilidade...

— Que os teus esplendores mo fazem mal... Esta fluidez diabolicamente seductora que se te enrosca pelo corpo como um veneno insaciavel é o triumpho de minhas dôres... — Fitando-a muito — Tu te vás; não é mesmo? Deixas-me em o senso, a semelhança de corymbos de fogo, o teu delirio... E entretanto Ladice, ao envez de um festim total, o meu coração se debate na mais atroz das miserias. — E a sua cabeça apertava-se contra o seio de sua Musa.

Ladice sorriu satisfeita.

O soffrer do Poeta aguilhoava-lhe a imaginação; pondo o hombro a nú, mostrando-lhe a curva ligeira e fina:

— Toma-me Thêo, desfolha-me como se fora a tua rosa. — Os labios do Poeta se atardavam sobre esse hombro, com a teimosia, a eternidade das cousas que se não mobilizam.

Sacudindo-lhe os braços continuou:

— Olha, Thêo, trago-te aqui as viboras esguias, rapidas, sinuosas, escorregadias dos desejos gregos, orientaes; acharás o desejo unico de Astarte; o desejo lascivo de Missuf; o desejo classico de Rhodopis; o desejo lyrico de Timandra, e o desejo vehemente de Ladice, sobrinha de Sappho...

— Cala-te, cala-te, por piedade que enlouqueço. — E atirando-se sobre o sofá, o Poeta soluçava, preso do mais terrivel e morbido dos amôres...

Havia ultimamente na Senhora de Assis, desdobramentos surprehendentes, renovações estranhas de um romantismo estravagante, original. Fremia, tilintava de prazer ao enviar a Theophilo phrases soltas que lhe estarreciam o senso como narcoticos destructivos, fortes.

“Thêo.

“A tarde roubou-te o ardimento dos olhos... morro... não posso mais.”

“Thêo.

“Onde estou? Procuro-me por toda a parte... Ah, fiquei-te em as mãos, deitada sobre as tuas veias...”

“Thêo.

“Estou só... mas tenho os teus braços ao redor da cintura: são os teus beijos em massa, estratificados que me cingem vertiginosos...”

“Thêo.

“O meu desejo fugiu, foi-se, está em ti... cubro-te, com a exaltação de meus cabellos que cheiram á madeira verde...”

“Thêo.

“Manda-me a tua cabeça esplendida. As minhas mãos, a minha boca, o meu amor clamam por ella furiosamente...”

Essas palavras unicas, exclusivas da Senhora de Assis, saciavam as fomes e as sedes, as singularidades imaginativas do vate, eram-lhe açoites de luz, vergastadas de esplendores, rajadas, fusis de auroras, de arrebatamentos...

Mas esses clarões, essas fendas de radiosidades, esses risos de natureza fogosa deixavam após si escuridões, pesares, accrescimos exaggerados, densos, lugubres: o desejo de possuil-a, toda sua, tornava-se incisivo, uma obsessão... Sobre a fronte do Poeta, desciam emmaranhando-se, multiplicando-se indefinidamento todas as sombras merencorias...

Essa transição, essa nova nova phase de Theophilo embutia em a fantasia amorosa de Ladice, excessos ineditamente torturantes: dir-se-ia que em suas sensações se rasgavam ascendencias brancas, rubores imprevistos, estridencias insubmissas...

Certo dia surprehendendo seu amante em attitude de profundo abatimento, devido a uma noite de insonias e de elaborações exasperadas, em que pensamentos se creavam e se destruiam celeres, Ladice foi tomada de forte commoção. Subtil, silenciosa, esgueirou-se pela sala e ajoelhou-se aos pés de Theophilo. As suas mãos pallidas e finas se espalmavam sobre o peito do Bem amado, á guisa de corações em extase... O seu perfil se voltava para elle tenso, afiado, agudo, levando-lhe em as bordas, a alma transida... Sentia-lhe o mysterio surgir, vir a ella, roçar-lhe o ser, como a efflorescencia de suas excepções suprêmas, do seu eu metaphysico, secreto: violaceos eram-lhe os gestos, a linda cabeça, os olhos, as caricias de seus labios. Ladice testemunhava em a sua impassibilidade apparente, em o estiramento ligeiro da boca, na sua lividez, na agonia das pupillas, os fragores, os bramidos de um amor implacavel, encarniçado e a mais atroz e louca e vezana das volupias humanas: o espirito que ama e quer haver a sensação physica do ardor...

Theophilo desvairado, tomou-a em os braços, e assim irmanado, fazendo um só, invocava a misericordia de Hera e de Teleia para que lhes dessem o ultimo goso, a ultima volupia: a morte a dous.

— A tua melancolia, Thêo, é o teu traço mais estuante — dizia-lhe mais tarde Ladice trazendo o echo doloroso das grandes violencias.

Outra vez após instantes ruidosos, beijando a fronte do amante, sob a sombra movediça e esguia de seus cabellos febris, Ladice murmurava-lhe baixinho, a voz entre-cortada:

— Ah, Thêo, ri, ri, eu te supplico. A minha alma se détem em as contracções de um louco paroxysmo. — E a sua cabeça rolou-lhe, exangue, ao hombro.

Theophilo sentia em esse corpo que se estirava obliquo, a avidez, o desespero, a alucinação estereis que agitam os homicidas encarcerados, retidos, para o crime, para o exterminio, para as tragedias sangrentas que lhes são vedados.

— “O´ symbolo das cousas inertes: E´s a vontade, o espaço, a immensidade, a voragem a exorar plenitudes, inteirezas, totalidades... O teu espirito se levanta com sedição tacita, immoderação, ancia, brado de vacuo interminavel... Oh! minha anormalidade unica, extraordinaria, precursora, ante a qual o poderio humano, estaca impotente... Oh! delirio infecundo, arido, porque te não hei, assim mesmo cortante e sevo...

A imaginação bizarra de Theophilo pairava sobre ella attenta, perplexa, encandescida. A sua veneração, o seu respeito, o seu orgulho, a sua humildade iam-lhe ao encontro, se azougavam ante essa morbidez nova, virgem, superior de sua amante. Era a primeira vez que elle via uma intelligencia possuida de paixão, em embates para as convulsões da grande sensação...

E elle a fitava compungido, “Oh! ella não poderá viver longo tempo, sob essa tormenta incessante... No seu corpo estreito, e branco se refugia, vibra, canta, a vida juvenil, moça, não gasta, robusta, verde, dos sêres que morreram na idade primaveril... Meu Deus! será possivel que sobre esta amorosa de demasias e mutações exquisitas, cheia de detalhes aureos e rupturas magnificas se approxime a morte, a morte horrivel... — E os olhos do poeta brilharam lacrimosos.

Elle se achava de todo livre d´aquella agonia tenaz, d´aquelle traço selvagem de ciume que o fazia outr´ora, repetir como um demente: “Ah! se ella morresse!” Agora exultava; agora tinha a certeza do amôr de Ladice, do seu eu physico e moral, agora queria rolar pela vida o labio em seu labio, ambos cingidos pelos circulos do deslumbramento. Agarrando-a vivamente, apesar da magoa que lhe confrangia o coração, exclamou, respondendo antes, a sentimentos internos: “Eu te sei eterna, oh! Musa immortal!”

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.