Exaltação (1916)/12
XII CAPITULO
«La mort est une perfection tout aussi bien que la vie...»
(Hegel.)
— Olho-a e tenho a impressão de que hei deante de mim, concretizados, todos os sons que se não ouvem... Comprehende? disse Armando, envolvendo Ladice em olhares festivos.
Elle a seguira até a sala de jantar pretextando examinar os varios especimens de cravos que guarneciam a mesa, anciando por ficar a sós por alguns instantes.
Havia bastante tempo que elle não a via; subira hoje do Rio a instancias de Francisco para festejar seu anniversario.
— Será por ventura a minha pallidez que lhe suggere essa ideia? — Emquanto falava, Ladice lhe notava a magreza da face cavada.
— Em seus cabellos, em a flexibilidade de seu corpo, percebo as sombras de todos os movimentos, de todas as tendencias... Traz um som continuo, o rythmo das volições humanas... E´ a grande seducção...
— Para as alturas divinas — atalhou ella vivamente.
— Não, para todas as loucuras humanas — accrescentou Armando com lentidão.
— Por piedade não me diga essas palavras terriveis. Sou a mulher que diz não; ajuntou ella resoluta.
— E eu o homem que a adora e que sente a vida sumir-se... Vê, suffoco em orgias loucas esse meu amor insano. — E elle mostrava em os traços o desvio innegavel da paixão infeliz.
— Mas, meu Deus, por que ama uma mulher que o não o ama ?—Exclamou Ladice a se afastar decidida, para não mais ouvir phrases que lhe batiam em o ouvido como os cravos do martyrio, da traição.
Esse seu gesto enfureceu o elegante chronista ; trouxe á lume todo o fel ironico de sua natureza eivada.
— Tem razão, é a mais tola das necessidades de nossa condição humana... — Vendo João que entrava, abaixou-se, e fingindo observar as flôres — Oh! são bellissimas; algumas até desconhecidas para mim... Ha de todas as nuanças.— Tomando uma — Dalmada, acabo de dizer a D. Ladice que tenho o cravo como enormemente suggestivo... Queira reparar, é o nosso coração com toda a sua multiplicidade e os seus desdobramentos. — E em dizendo, rompeu o envolucro verde e espalhou sobre a mão, as suas petalas innumeraveis,
— Com a differença que os nossos desejos teem a febre da rapidez, — interrompeu João, sorrindo. — Emquanto abysmos os tragam, já novas auroras os engendram...
— Mas os meus teem intensidade permanente. — Olhando para Ladice: — não soffrem influencia externa: eu sou o Desejo, as figuras passam por mim e me não alanham,
— Então, Armando, você é o sensivel insensível, o caixilho perenne para todas as aventuras; immutavel como o tempo e a hora... — accrescentou João, malicioso.
Ladice já com a mão na maçaneta da porta que dava para a sala voltou-se e disse:
— O sceptico chronista “Flavius” não podia deixar de ser assim; observador intangivel, o registro dos factos e nada mais — e desappareceu.
Essa phrase picou-o atrozmente. Tomando João pelo braço, seguiu-lhe o rastro e estacando a curta distancia, continuou:
— Comprehendes Dalmada que me seria impossivel. fixar-me por muito tempo, em qualquer situação; por exemplo, não admitto o amôr eterno, immortal... De resto o amor para mim é simplesmente um “bluff” das sensações — e seus olhos brilharam víctoriosos para Ladice.
A Senhora de Assis n´aquelle momento sentia a vontade, a consciencia, os instinctos, o corpo, dobrarem-se ante a figura sombria de seu amante que entrava; para seus ouvidos amorosos, essas palavras tiveram o ruido sem écho, seco, aspero, de voz sem pensamento.
— Que ouço! Parece até definição elaborada em mesa de café, após um não de sua deidade — exclamou Theophilo, abraçando longamente João.
— E´ apenas uma surpresa, com a duração de uma tormenta — accentuou este, sentindo um prazer agudo em ferir os dous corações amantes.
— Não é absolutamente um bluff, mas a evolução da amizade, do affecto, um fim — atalhou Francisco.
— Amar — disse Ladice descendo a meio as palpebras — é sermos Ione, é sermos Pantheia, é termos cruzadas sobre os olhos asas luminosas, argenteas, embutidas de soes; é experimentarmos em as sensações o abalo, o estridor, o bramido da raiva, sem alimento, das entranhas da Terra.
Por minutos todos ficaram suspensos; a voz de Ladice tinha a serenidade, o encanto de lirios que se abrem, de tardes que se escoam.
— Perdão, D. Ladice, já passamos o romantismo, o sentimentalismo de Rousseau; o amôr hoje é puramente feminino; objectou Armando, sentindo a alma torcer-se como uma sombra nutante; totalmente inconsolavel de não poder possuir essa mulher, capaz dos esplendores que acabava de proferir.
— E´ o objectivismo desesperado, então, retorquiu Theophilo. Saibas tu, Armando, que o amor é violencia exclusiva das naturezas prenhes de potencias, de forças, de energias, de transbordos de si mesmo... E´ o delirio soberbo do grande subjectivista, — rematou elle.
Toda a myrrha, todo o incenso, toda a resina perfumada do amôr de Ladice iam para o vate bem amado.
— Sim, do Poeta, do Imaginativo, mas nunca do analysta, do Pensador, que são obrigados a extirpar do senso, os estimulantes da paixão... — replicou o chronista, sempre aferrado ás theorias contrarias ao seu sentir.
— E´ uma questão de temperamento. Oiçam, interrompeu João — Conheci em Berlim um artista que dizia sempre: “Amo a mulher como amo uma boa cama, um bom tabaco, e me não arrependo...”
— Snr. Armando, ahi tem um precursor de suas theorias, embora menos requintado — ajuntou a Senhora de Assis, rindo muito.
— E´ afinal a verdade sem ambages e tessituras — affirmou elle.
— Hajamos em tudo o meio termo — sentenciou Francisco.
Theophilo passeava de um lado para o outro, absorto, como quem nada ouve; parando de repente, disse:
— Oh! O amor tem surpresas, voltas abruptas împrevistas que embaraçam o mais infatigavel observador. Acabo de ler em um livro inglez um traço finissimo de psychologia feminina. Morava em Fiesola com seu tio, homem rico e sisudo, uma moça, Monna Tina, de rara formosura. Pretendia-lhe a mão Amadeu Oricellaria, senhor de nobre linhagem. Monna o amava com toda a sua ingenuidade de 15 annos; mas o seu confessor, inimigo da familia Oricellaria, prohibiu-lhe formalmente pensar em um homem que havia tempos, cortejara a creada da mãe, affirmava elle, á innocente menina. O Padre de resto a destinava a um seu sobrinho, rapaz pobre. Monna para quem o confessor era infallivel, desistiu, já se vê, resolvida a entrar para um convento.
Amadeu, porém, não se conformou com essa tenção subita, e ardente como era, encaminhou-se para a casa de sua amada, afim de dissuadil-a do intento e de convencel-a de seu affecto immenso. Chegou, porém, tarde da noite: "Qu´importa — dizia elle; falar-lhe-ei a todo o transe." Mas Guiberto, jovem sacerdote e antigo companheiro seu, obstou-lhe o passo reprimendando-lhe a ousadia de fazer uma visita áquella hora. Afinal com promessas de successo e bom vinho conseguiu que o exasperado rapaz se retirasse para um quarto longinquo e ahi pernoitasse. Os aposentos pertenciam á Silvestrina, creada esperta que lhe fez as honras da noite tão bem como qualquer senhora de Florença.
Pela manhã, Guiberto indo ao quarto do amigo encontrou-o ainda dormindo, tendo, porém — tomem nota — accrescentou Theophilo, ao redor do pescoço dous roliços braços femininos. Guiberto não se conteve; soltou uma vigorosa gargalhada. Monna a ouviu e accorreu pressurosa a saber o que era…
Imaginem qual não foi a sua colera ao se lhe deparar esse espectaculo tragi-comico; dir-se-ia Erynnis a arrepalar os cabellos, invocando os santos do céo contra a perfidia dos homens. — Agora meus amigos, dizei-me que aconteceu ?
— Ah! Monna o expulsou como um cão gafento... Por certo elle perdeu uma noiva... — exclamaram os homens.
— Aposto eu como ganhou uma mulher — ajuntou Ladice.
— Impossivel — atalhou Francisco.
— Sim, a Senhora de Assis o disse — respondeu Theophilo.
— Admira-me que sendo uma mulher, Ladice, hajas acceito, acquiescido ao gesto inverosimil de tal irreflectida — disse Francisco levemente impaciente.
— Não ha que admirar: em nós outras do mundo, sem suggestão, agindo livremente, seria uma anomalia, uma aberração; mas n´uma menina de 15 annos, subjugada por un padre, severamente educada, que podia ella saber do amôr? Era preciso que um acto violento a agitasse, a invadisse de ciumes, a contaminasse... Foi o que se deu...
— Perfeitamente, a Senhora de Assis o explicou. Embora não deixe de ser um exemplo soberbo de moral feminina — retorquiu Theophilo.
— Attribuo antes a um capricho momentaneo. Entretanto, ha mulheres que precisam soffrer para ceder... A´s vezes surte effeito — dizia vagarosamente Armando, esfregando as mãos, e olhando para Ladice de um modo significativo.
— Já tive por vizinho — disse João — um sapateiro que batia na mulher de continuo; isso me indignava. Certo dia, perguntando-lhe, si se não envergonhava d´aquelle acto, elle me respondeu muito calmo — “não senhor, porque é justamente quando ella mais me ama.”
— Si não for invenção, é summamente desprezivel. — Ladice estremeceu.
— São mulheres taradas... — exclamou Francisco.
— Enfermiças, anormaes... — concluiu Theophilo, encaminhando-se para o piano e abrindo-o: — Dona Ladice, queira fazer um pouco de musica; alguma cousa de muito romantico...
— De olhos bistrados e attitudes languidas?— inquiriu ella, rindo muito os olhos nos olhos de seu amante.
— Não, de membros elasticos e mysteriosamente romantica — respondeu o Poeta, baixinho, entre dentes, as pupilas em fogo.
— Beethoven? — indagou ella alto.
— Não, a tua alma e a tua dôr — murmurou elle.
Theophilo sentou-se na mesma direcção, porém distante, em uma cadeirinha baixa de longo espaldar, que elle adivinhara ser propriedade exclusiva de Ladice: cobria-a um pedaço de setim azul, atirado negligentemente.
João, apesar de conversar, não deixara de seguir attentamente os minimos movimentos de Ladice e de Theophilo. Aquelle rapido dialogo em o piano lhe deu certo mal estar, embora nada tivesse percebido do colloquio de ambos. Esse leve e involuntario rancor lhe servia de instrumento de combate, em revelar a verdade, em pôr a nú as pequenas perfidias da mulher, em destruir-lhe as grandes apparencias. O despeito de Armando o tornava um sceptico, um corrosivo, um impio aventureiro em pós esgares femininos, façanhas duvidosas, exaggeradas em a sua raiva infructifera. Esses dous negadores assumidos, esses dous nihilistas de ficção se enganavam mutuamente, dilatavam a mentira, escondiam a realidade a si mesmo, cada qual se esforçando por ser mais cruel, mais deshumano, mais atilado na verrina, na exposição do facto extraordinario. Havia instantes tão acalorados que se diria pairar em o semblante de ambos clarões de fanaticos, tal a convicção, o ardor, a fallacia do instincto da verdade que os impellia a essa vontade forte de desvendar uma moral. A conversa se mantinha á surdina; mas, em se dirigindo para Theophilo, devido ao passo vagaroso em que iam, Ladice ouviu claramente, solta como o brilho de um punhal scintillando, a seguinte phrase de Armando embrulhada em sarcasmo: “Devemos tomal-as sempre pela violencia.”
Do pé á cabeça da Senhora de Assis houve um recuo, um rugido de orgulho alvejado. Os dedos lhe tremeram confundindo accórdes...
Theophilo, quasi desapparecia, rodeado pelos dous. Ladice apenas lhe divisava a testa magnifica os cabellos negros, esses cabellos mortos que pareciam haver dormitado sob a terra, desde o seculo dos Ptolomeos. Oh! como ella adorava esses cabellos sem vida, enigmaticos, cheios de poderes evocadores. Quantas vezes os sentindo ella lhe não dizia: “Oh Thêo! elles teem o perfume da Rainha Berenice... Com certeza pertenceram a um principe que morreu noivo e que foi encerrado em um sarcophago, ladeado de lotos; apertavam-n´os um turbante, tendo bordado a oiro luzente esbraseado, igneo como um escarcéo de fogo, o sol esplendido de Alexandria... — E ella fechava os olhos a meio como que procurando lembrar-se — enterraram-n´o em a ala direita da terceira Pyramide, que enfrenta a Esphinge... E´ por isso que elles teem qualquer cousa de mysterioso que não comprehendo... Oh! cabellos adorados, tendes a sombra inquieta do meu amôr e do meu Desejo. E ella então se recordava que esses cabellos de silencios só se agitavam, tinham coleios de alento, de excitação, meneios de vida em o espasmo suprêmo... Oh! como gostava descer sobre elles, os seus cabellos ardentes que pareciam conter o impeto dos deoses, a desordem dos pollens, cravados de anténnas? E seu sangue se accelerava em pensando em a volupia cruciante de Theophilo ao sentir rolar-lhe sobre o corpo esses cabellos ebrios d´elle, lubricos como a boca de Pan... De suas cellulas apaixonadas se erguiam quaes labaredas em desatino essas palavras: “Thêo, Thêo, eu sou o escaravelho de oiro agarrado ao teu coração... O meu corpo se sustém á altura de teus labios como sendo a evaporação transcendente do mais renitente e insoffrido dos amores... Absorve-o, aspira-o, tritura-o... E´s o seu dono e o seu sol...” — As notas se perdiam, se abafavam até a cessação completa...
Vendo-a fechar o piano, Theophilo veio-lhe ao encontro:
— Como, já acabou? Não é possivel...
— Ah, Thêo, não posso... soffro... beijo-te — murmurou ella, a voz entrecortada, o labio meio estirado, totalmente perturbada.
Parecia a Theophilo que a figura convulsiva de sua amante lhe entrava por todas as fisgas do ser qual radio luminoso e fatal; sem pronunciar uma só palavra, voltou-se, sentou-se no mesmo lugar, fóra de si, estonteado.
A transição fora tão abrupta e insolita que elle não pudera dissimular. João apesar de si, sentia o coração premer-se ante a angustia do Poeta glorioso, do amigo de tantos annos. Com um gargalhar sonóro, gestos largos, movimentação bulhenta, falar apressado, conseguiu desviar a attenção de Francisco.
Mas, ao chronista amoroso, intuitivo perspicaz, já com o faro da suspeita, não passaram despercebidas, a solicitude de João e a emoção do vate. Houve dentro do seu senso, um deslocamento brusco, uma oscillação, uma descida abrupta de vida, ao ver o mysterio surgir claro, perfeito, inteiriço: — elles se amavam... E as sensações se lhe fechavam uma após outra, como olhos fatigados, somnolentos... Trouxeram champanha. Ladice approximou-se, pallida, vagarosa, os gestos subtis; ella propria o serviu distribuindo-a aos convivas. “A´ sua saude! á sua saude!” E os homens lhe tocaram na taça, a excepção de Armando que se quedou á distancia, fazendo-lhe apenas uma reverencia profunda...
De pé, esguia, estreitada em uma saia de setim liberty, as linhas morbidamente classicas, a cabeça grega, empunhando a taça, Ladice dirigindo-se a Theophilo:
— Saudo em a sua pessoa a Poesia immortal.
Ao agradecer, o Poeta teve a impressão de ver deante de si uma Menade esculpida em marmore, apanhada em flagrante, ao amanhecer, sem o thyrso, sem a vinha, sem o delirio!
— Theophilo, peço-te desculpas pela hora matutina. Não me podia ir embora sem te dar os parabens, sem te dizer que descobri o teu segredo, a musa de teus versos candentes, a tua nova febre, o teu amôr... — Mudando de tom com as mãos para o alto — Agora comprehendo-lhe a virtude, as reticencias, a ardencia esteril, a recusa do meu amôr, a sua impiedade...
— A recusa do teu amôr? — acudiu attonito Theophilo.
— Sim, pois ignoras que a amo?... Mas que te importa isso, si ella me não ama! Ella é totalmente tua, é a amorosa fixa, a inconsequente individual, a demente de ti... A unica mulher capaz dos surtos de teu estro... Ah, como és feliz! — Abraçando-o — Gosa-a, gosa-a, embora me saibas um desgraçado... — E elle fez menção de sair.
— Mas, que loucura é essa, Armando ? Senta-te espera, acalma-te... Ouve; explica-te...
— Não posso; devo descer já; preciso estar no Rio. — Segurando-lhe no braço —Sabes? Nunca mais a verei.— Com a physionomia transtornada, as pupillas dilatadas, errantes: — Passei a noute acordado, n´um verdadeiro combate... Oh! que horror ver-se um sonho abater-se, ruir, embora sem esperança... — E elle desappareceu.
Em o coração do Poeta se levantou um pœan á Fidelidade e á Belleza de sua amante.
— Armando descobriu a tua paixão por Theophilo; não lhe temes a indiscreção? —perguntou João a Ladice.
Os dous passeavam. Era uma d´essas manhãs brancas que só as serras nos sabem offerecer. O nevoeiro descia das montanhas em arrancos voazes, balroando nuvens, esgarrando-se, descosendo-se, precipitando-se, abalando silencio dos ares com o seu silencio em um tropel furioso, infrene: dir-se-ia a fugida espavorida de Alóides perseguidos... Resvalava pele arvoredo, roçava as frondes, abraçava o casario, estreitava as corollas, beijava o chão, envolvia os passantes, dilatava-se pelos vãos, sempre veloz e voluvel, n´essa furia insana e amorosa. Era a vezania do céo pela terra; era a attracção obstinada das alturas pelas planicies; era o insoffrimento acerbo, a volupia, a effervescencia dos extrêmos a se unificarem; era a grita surda de desejos inorganicos... E as nuvens passavam, lá se iam de roldão, turbulentas, alacres, levando cada uma em seu regaço, em suas dobras, uma reliquia de amôr, uma doce recordação, a paz de uma ancia!... A natureza se estarrecia assombrada; pelas seivas, gelido suor corria, em vendo a terra opprimida, violentada pelo nevoeiro lascivo...
— Não, não temo pessoa alguma...
— Entretanto, ha annos atrás, não eras assim heroica ...
— O meu amor me tornou a mais sublimada das mulheres e me deu poderes extraordinarios, concepções estranhas... Ha instantes que quando digo: "Eu quero!" afigura-se-me ver as montanhas e os abysmos recuarem assustados...
João, olhando-a pensava: "Meu Deus, como essa fragilidade é inquebrantavel e altiva..."
— Oh! mulher romantica, não pensas na tragedia final? Forçosamente ha de ter um epilogo...
— Fecho os olhos, vendo os pensamentos e entrego-me ao Destino bemdito, qual morta-viva...
Elles caminharam, durante algum tempo, calados, taciturnos; Ladice estava contrariada; devido á presença de seu primo, ella hoje não poderia visitar Theophilo.
— Sentemo-nos aqui — disse João, entrando no Jardim da rua 15 de Novembro.— Já reparaste como o verde domina n´esta cidade, até em os lagos...
— E´ signal de juventude; é a côr do arvoredo moço, é a pulsação cheia — dizia Ladice, distrahida.
— Que symbolo descubro — exclamou elle. — Na verdade toda a minha esperança escorreu para o fundo d´esta agua...— João em mente se referia a impossibilidade de prender Ladice.
— Um coração sem esperança, que horror! Só a morte, João...— E ella volveu aos seus pensamentos.
Ladice examinava os contornos do lago ennegrecidos pelo tempo, pela propria humidade, que amparava, que continha em sua fixidez eterna como quem perfaz uma ordem superior, aquella agua pesada, immovel, lodosa, inalteravel. Ladice sentia a pressão, a tristeza, a monotonia, o cansaço que pairava sobre aquelle conjuncto falso, imitação parca, ficção avara do engenho humano, tão differente do lago agreste filho da natureza, concentrado em si, sem devesas, livre, sorridente, havendo pedaços de céo, murmurio de remos, caricias de brisas; os fétos se dobravam sobre as roseiras em desvarios impertinentes; as palmeirinhas escancaradas, achatadas, luzidias, lhe faziam lembrar os leques com que as escravas do rei Pharaó o abanavam, á hora da sésta, segundo uma gravura que vira em pequena. As dahlias se erguiam com a ousadia vulgar de cortesã solicita, arrostavam o azul, tumidas de orvalho, sequiosas de sol, de ether, de rudezas, de passaro febril; a efflorescencia rubra das cannas, surgia coruscante, ameaçadora, amedrontando as vergonteas, os renovos, qual flamma incauta prestes a se propagar...
— Que cara funebre, que tristeza, Jean — exclamou Ladice, fazendo sobre a areia desenhos exquisitos com a ponta do chapéo de sol. — Conta-me, o que ha... Saudades d´alguma franceza que te deixou ou que deixaste? — E ella o mirou com olhares curiosos, cheios de maldade — Ou algum principio de conquista, heim?...
— Nada d´isso; penso no teu caso que se me afigura perigosissimo. — Depois de uma pausa — Sabes que Theophilo é casado e que tem uma filha?
— Sei; que m´importa isso de resto ? — retorquiu ella empallidecendo, meio aggressiva.
— E´ que a desgraça será dupla, seja o fim qual fôr... E´ devéras lamentavel...
— Pelo amôr de Deus me não pregues moralidade... Elle é meu, só meu, entendes? E Ladice se ergueu — Vamos indo que é tarde...
Durante o trajecto, a Senhora de Assis esforçava-se por annullar, dirimir, pisar, extinguir as mil supposições que a phrase de seu primo lhe engendrara no ser. Ella lhe operara no intimo como essas arvores maravilhosas, anomalas, phantasticas que nascem, se expandem, repentinas, sob a suggestão de fakires extacticos, ao viajor pasmo.
Enroscava-lhe a alma, atro sulco torturoso de polvora incendiada, rasto viscoso, peçonhento, de serpe que passou.
Mas ella, afoita, vencia, ria, tornava-se quasi infantil:
— Como as mulheres te olham! Meus parabens, é o melhor elogio que se possa fazer á tua vaidade...
— Acreditas então que ainda seduzo! E João torcia os bigodes mais pretos que brancos.
— Oh! colossalmente!... Essas pregas fundas ao redor da boca, dizem muito segredo teu... E´ signal de amôres cosmopolitas, terríveis...
— Sim; mas nem todas as mulheres sabem d´isso.
— Enganas-te, é intuitivo em nós outros; adivinhamos-lhes os sabores ineditos.
— E´ o mesmo, Ladice, que um fruto morbido por bocas diversas e que lhes guardou o signal, o geito, a irregularidade...
— E´, deve ser unico. — E ella pensou em o seu Poeta glorioso — E os teus amores hindús?
— Oh! são mulheres silenciosas; desordens pautadas á força de turbações violentas; os seus amôres são como seus olhos: fixos, teem em o fundo, formas ignotas, sombras a se mover... São flôres de mystico ardor... São como tu Ladice — concluiu elle sério.
— Devéras, Jean? Tu me crês assim tão deliciosa Oh! que orgulho! — Ella fremia de contente, ufanava-se de sua belleza, de seu espirito, de sua originalidade, simplesmente por amôr de seu amante.
— Que te vale a minha opinião se tens a do Poeta eminente... — E João recuou para deixal-a passar.
Chegavam á casa.
Após o almoço, ambos estirados em confortaveis cadeiras de lona, conversavam. O assumpto corria leve, sem fio, perguntas a esmo, interrupções grandes, pequenas curiosidades satisfeitas, criticas, indagações mutuas.
— Admira-me que tua mãe haja deixado Paris. Ella aprecia tanto as modas...
— Voltarão em breve. Estão actualmente em Nice, por causa do frio... Oh! João que saudades, apesar de ter sempre noticias... Longas pausas se seguiram.
— E Dinah, já a viste depois de noviça?
— Ainda, não. Ha tres mezes que aqui estou sem descer. Ella me escreve; mas as suas cartas muito concisas só me falam do céo, da sua felicidade, da salvação eterna...
— Salvação eterna — repetiu elle — Oh! pesadelo terrivel para quem crê... João se entregou de novo aos seus pensamentos e assim permaneceu algum tempo; de repente voltando-se bruscamente disse:
— Tenho uma grande novidade; Jorge acaba de chegar da commissão de que foi encarregado, porém casado...
— Jorge casou-se ?
— Sim; e com filha de fazendeiro...
— Que me dizes, bonita moça?
— Bonita, mas sem geito... E´ de pasmar, elle rapaz elegante, leitor assiduo da ultima revista, que se veste á ingleza e só amante de francezas... Creio, entretanto, que a mulher é muito rica.
— Com certeza; de resto elle sempre adorou o luxo; agora o seu somno será inalteravel... — accrescentou ella rindo-se.
— E o seu goso immensuravel... — ajuntou João.
— O relogio bateu tres horas.
— Oh, Jean, adeus, vou escrever. —E Ladice levantou-se.
— Ainda é cedo; espera, faze-o amanhã...
— E´ inadiavel.— Parecia a João que de cada mollecula de sua prima, um jasmin despontava. Em seus olhos, em seus labios plenitudes de alma dansavam.
— Para quem essa urgencia?
— Oh! curioso, sabel-o-ás depois. — E Ladice saiu ligeira, gizando, com os seus membros flexiveis, sinuosidades serpentinas.
Era-lhe totalmente impossivel passar um dia sem vêr Theophilo ou sem escrever-lhe; era-lhe necessidade imperiosa, obrigação latente, convergencia suprêma de todas as suas tendencias e impulsos.
Travando da penna, Ladice lhe enviou as seguintes linhas: brado esplendido de convulsão, ruptura deslumbrante de seus mysterios amorosos, livôres lyricos de plasmas estarrecidos.
“Thêo.
“Sou a flamma sagrada que se adora e se não beija... Trago em o senso, em a pelle a crestadura, o retinido, a affirmação maravilhosa, envenenada do amôr de meu amôr...
“Oh! soluço de mortaes de coração arido, oh, mãos em vão supplices, oh! lacerações estridentes de carne infecunda, oh! ardencia de sangue virgem, oh! deleites febris de narinas exangues, oh! violencia que paira immobil em o negror de olhares profundos. Vinde a mim, abrasai-vos em a vertigem acre, bramante de minhas cellulas apaixonadas; recebei o sôpro tormentoso de minha tempestade amorosa d´Elle...
“Vontades poderosas da terra, impaciencias de eclosões adiadas, grito cruciante de penedia em a noite, chimeras, sonhos, braços torcidos, palavra inarticulada, raiva, furor, imprecação damnada — nada sois deante do meu silencio ebrio d´Elle...
“Natureza, sombra, humidade, vacuo, agua que correis, voragens immensas, sol magnifico, estrella, grande fogo exterminador, feras bravias, asas frementes, ideias amadurecidas, cousas que passaes, homens corrosivos — ajoelhai-vos deante da eternidade de meu amôr immortal por Elle...
E ella passou a carta a João que, instantes antes, viera á sua procura:
— Ah! Ladice, que seducção terrivel! Que peccado rubro e flammante, que impeto desassisado... E´ a instancia mais formidavel, mais incisiva de amôr que hei jamais lido... Se eu recebesse uma missiva assim, abandonaria tudo e viria de rojo aos teus pés, reclamar-te... E os olhos se fixaram em sua prima. — Pobre Theophilo, pobre Poeta! é bem capaz de um crime — repetia elle.
Apesar da frivolidade de seus sentimentos, João descia até a sublimez d´esse amor, sentindo-lhe a potencia, a supremacia, a fatalidade.
Ladice se retirou para o quarto. Achava-se fatigada; apesar de seus esforços aquella phrase de João dita em o passeio, laborava em seu intimo, cortava-a, com a fugacidade de relampago.
O resto da tarde, ella o passou a engendrar, a fabricar, a urdir uma surpresa de arte para Theophilo.
Ladice queria vel-o enlaçado de agonias indiziveis; queria despertar-lhe em massa, as sensações, os instinetos, a imaginação, o estranho; queria testemunhar-lhe o assombro, o estupor em trilhando as abas do encantamento; queria assistil-o immovel a debater-se em o chaos multiplo de seus extremos de poeta e de estheta. —E ella se dizia “Elle sentirá o mesmo abalo que sacudiu a terra quando um Deus morreu...”
No dia seguinte depois da partida de João para o Rio, Ladice se atirou nos braços de seu amante, dizendo-lhe:
— A tua Musa traz a fome de todas as eternidades... Deponho em teu coração todas as flores que se formaram em meu corpo — e ella parou deante d´elle, os olhos em seus olhos. — São eclosões de trevas, de luz, de nuvem erradia, de contornos de luar em onda insubmissa, de aridez de rocha maldita.... Ellas são todas, a revelação demente, paralysante, selvatica, de meu Desejo por ti, Thêo, meu adorado... Põe os labios aqui; — e ella lhe extendeu a palma da mão — E´ a rosacea livida de meu estertor. Colla a boca aqui; — e ella lhe mostrava o pescoço — E´ a haste branca do meu suspiro. Beija aqui; e ella lhe apontava a boca — E´ a rosa rosea do seio de Aphrodite. Aqui; ― e ella lhe designava os olhos — São os amores de Pan. "Aqui; e ella lhe indicava os cabellos — A loucura das caricias sem fórma. Aqui; — e ella lhe apresentava o collo — A vertigem em flammas a te dizer sim. Aqui; e ella lhe apontava os pés — As raizes de minha belleza...— Agora ella mudara, transformara-se, tornara-se a Dadivosa, a Prodiga, que beija, que doira, que diviniza o seu amôr: — Eu sou libellula fremente; e os seus braços, se abriam com movimentos de asas, distribuindo, a esmo em Theophilo, beijos sem conta — Tu és a agua, o mel, o pollen, o coração profundo do universo vivo...
E por momentos os seus labios se detiveram em a fronte do poeta — “Ah! Thêo! — E ella deu um gritinho —”Eu sou o aspide sagrado que tem fome, que te pica, que te envenena, que te estrangula, que te domina, que te immortaliza...” — E seus coleios se acceleravam desordenados, sem medida até que exhausta, caiu curvada em fórma de baculo, como essas folhas que surgem para a vida...
O senso de Theophilo se estagnara, entorpecera. Era Ladice quem creava n´elle, quem lhe regia a vontade, quem lhe era o motivo extuante. Amou-a com a excessividade de sua natureza de hysterico e de romantico. Nunca Theophilo a sentiu tão subtil e tão mysteriosamente implacavel. De joelhos alucinado agarrando-a pelo vestido, abraçando-lhe os pés com a ternura voraz, submissa, delirante, dos cabellos de Magdalena, elle lhe implorava: “Fica”, “fica” — “Es pera, ainda não”...—E os olhos de sua amante se volviam para elle pesados, obliquos, com a graça morbida, dos gestos que desapparecem.
— Amanhã, Thêo, quero amar-te, rodeada de rosas rubras, que me lembrem o teu sangue coagulado...
A phantasia de Ladice se açacalava. Ao sair, já no jardim, segurando as mãos do Poeta, disse-lhe dolorosa:
— Ah! Thêo, que tarde lenta... dir-se-ia um lirio enorme, cujas petalas se fecham uma após outra...— com vivacidade — e eu Thêo, sou o seu estylete, o seu estame, a sua anthera vibratil. — E ella parou como se ouvisse em o silencio as vozes multiformes da creação. O crepusculo se abatia sobre a terra, languente, mudo, pallido, amoroso emmaranhando, enredando o arvoredo, os troncos, as montanhas, o rio, o horizonte, em tons incolores, hybridos, gastos, indecisos... O coração de Ladice se contrahia; parecia-lhe haver em as sensações a doçura serena das sombras. As creanças que encontrava pelo caminho rememoravam-lhe a phrase de João, retinham-lhe o pensamento, obrigavam-n´a a esmerilhar, a desfibrar conjecturas; buscar detalhes; forjar, inventar traços, parecenças:—"Deve ter os seus olhos, a sua testa magnifica, — dizia ella gasalhando em o intimo tenacidades, angustias, indomaveis; a rapidez de seus passos, então, augmentava, como se quizesse fugir a si mesmo, á sua agonia, á propria existencia, á nostalgia da tarde que se esvaia...
Essa noite, em conversa com Francisco, á guisa de quem procura consolo, satisfacção, alegria de quem traz uma dôr morta, Ladice lhe expoz o seu caso, envolto em uma mentira:
— Li hoje uma pagina empolgante, um acto heroico perante a sociedade; imagina que um rapaz no desvario da paixão, abandona a mulher, os filhos, por amôr a uma outra mulher, que o acceita sem remorsos.
— Não sei que goso encontras em leituras assim tão brutaes...
— E´ o veneno que meus nervos pedem... Oh! o prazer delicioso em sentir esse arrepio de pavor e de orgulho, ao vermos o Destino e a alma humana em luta feroz... Não os condemnemos; são impulsivos amorosos, inconsequentes passionaes, que agem sob uma preponderancia unica, summa, infernal...
— Ora, são desculpas fôfas, attenuantes para delicto, para o crime que não deixa de ser indignidade...
Ladice calou-se, arrependida de haver tratado de subtilezas, grandes excepções, casos singulares, com quem via nos factos o positivo, as linhas geraes, as concepções antiquadas, as formas ocas. E ella adormeceu sob essas auroras sem crepusculos que começam de irradiar n´este principio de seculo...
— Não, Thĉo, sae, vai para a rua e volta dentro de meia hora. — Tilintando de emoção ajuntou — Terás de mim uma interjeição mortal, o nihilismo da magnificencia...
— Oh! Arachneia da Volupia, que tortura inimaginavel de arte e de sensação me vais dar? — E seus braços cingiam esse corpo dobradiço, delgado onde imperavam vontades immortaes...
— Parrhasio e Eros pernoitaram commigo; vai-te, vai-te. E Ladice o empurrava, de manso, com as mãos.
Emquanto tirava o chapéo, as luvas, seus olhos rodeavam pela sala: as rosas que pedira jaziam em desordem, amontoadas no sofá, lindas, frescas, com elasticidades de corpos juvenis, com indolencias felinas. Sobre a mesa de trabalho, uma horrível confusão trahia a impaciencia, a irritação, o máo humor de Theophilo: livros em todas as posições, papeis rasgados, cartas abertas, outras ainda fechadas, pesos de bronze, canetas, pennas derramadas... E dominando tudo como um sorriso, como o luzir breve, impedrado, de acceso lume, a emergir de gargalos estreitos, as flôres de sua cintura que lhe offertára na vespera... Insensivelmente Ladice se curvou e poz-se a lêr as cartas que alli se achavam: felicitações ao mestre glorioso, pedidos de conselho, agradecimentos de remessa de livros, phrases, saudosas em cartões postaes, de amigos ausentes. E... Ladice recuou pallida, offegante, segurando em as mãos tremulas um papel com os seguintes dizeres em esguia calligraphia feminina.
“Querido Theophilo.
Por que me abandonas? Em vão a nossa filha te chama e os meus parentes indagam de tua ausencia. Alguma “franceza” perversa te roubou a mim? Será possivel que não ouças a voz da mulher que te adora e que se acha doente por causa de ti? Ah, Theophilo, lembra-te de que ha 10 annos, que vivemos juntos, que tenho sido uma companheira fiel e amorosa.
Ha 6 mezes que não te vejo; quasi que não me escreves e quando o fazes não me respondes ás perguntas... Meu Deus, que haverá? Céos, que desgraça me ameaça? Apesar dos carinhos que me prodigalizam só anhelo pelos teus. Em nome de nossa filha, vem. Tem piedade de quem te ama muito, muitissimo.
Um beijo da mulher que te adora
Apesar de lêr duas, tres vezes, Ladice não apprehendia a significação das palavras. Ella tinha a impressão de vacuidade; ella se sentia um cofre vazio, um grande intervalo, um espaço limitado, os contornos organicos de um corpo baldo de ideia, de discernimento, de determinismo. Ella era a palavra solta desprovida de senso; era o horizonte empalidecido sem o rubor, a flamma, o oiro do sol, que lhe foge; era a nuvem radiosa dos cimos, adelgaçada pelo vento ululante...
Mas, de subito a consciencia se lhe despertou, bramante, completa, perfeita, extensa. Em os plasmas, em o sangue, em os nervos serpeavam-lhe o terror demente, o assombro, o pavor tenebroso, horrido da amante que comeu o coração do amante, o desmaio inverosimil, mortal, destructivo, da finalização, da conclusão... Reboavam-lhe agudas, pungentes, em os compartimentos do sêr, esse grito legitimo, esse reclamo amoroso, essa censura meiga, de natureza simples, modesta, sem arroubos e grandeza... “Ella tambem o ama,” repetia Ladice, a voz rouca, não d´ella, recebendo sobre a sua agonia immensuravel dominadora, a tristeza mansa, resignada de Rahel. Com mão febril, principiou a remexer nos papeis a procura de outras cartas. Encontrou-as em profusão, todas cheias de carinhos, de rogos, de humildade apaixonada. Algumas traziam recados em letra de creança, afim de melhor enternecer a sensibilidade do pai transviado. Finalmente sob um livro, Ladice descobriu um telegramma recente, chamado urgente de Rahel que se achava de cama. A´ vista d´este recurso, verdadeiro ou fingido, d´este tentamen de desespero, todas as suas agruras se relaxaram multiplicando-se. Ella vinha de sorver a esponja envinagrada, de sentir em as visceras dilaceradas a setima dôr, a setima lança... Era preciso uma grande resolução. Era-lhe mister aclarar a desordem do cerebro entorpecido, estabelecer a eurythmia perdida... Alguns instantes, e a sua imaginação foi surprehendida, ferida por espadanas luminosas, por um incendio de chammas hystericas... "Morrer!" exclamou ella transfigurada, os labios entreabertos, a cabeça meio inclinada para trás, os olhos no tecto, como se fora tocada pelo elarão que precede as apparições divinas... "Ah! sim, morrerei..." Só pela morte, ella terá a minha renuncia... — Agitada — Oh! deixai-me apenas celebrar os nossos ultimos esponsaes... Hymeneu, Hera, Zeus, divindades gregas accorrei, derramai sobre os nossos membros o myrtho symbolico, o jacintho, a violeta..."
Ladice era movida por tensões de vidas innumeraveis. A sua paixão, a sua morbidez, a sua anormalidade, intempestivas, bravias, ardentes, sequiosas, férvidas, augmentadas, accrescidas, estratificadas, cumuladas, a impelliam para essa negação de todas as eternidades, para essa moradia forrada de dithyrambos, de silencios e pausas infinitas; para essa expansão tragica, sublime, de seu amôr...
Em seus movimentos, em suas acções, ella deixava vinculadas, scentelhas, rapidez, pulsações, vida intensiva.
Ella havia todos os auges do sentimento, do senso, da imaginação, da arte... Sua alma se enfeixava de ether, de vãos azues, de estrias rutilas...
A dôr, o desespero, a tortura de seu intimo se enlaçavam, se devoravam quaes dragões soberbos e apavorantes... Era o ultimo sim de uma consciencia que se affirmava com trovões e subtilezas delirantes.
Era o levantamento absoluto, o epicedio rubente, extraordinario de um corpo e de um espirito...
Theophilo entrou e dirigiu-se para o quarto. A meia luz o obumbrava. Parou deante da cama, curioso, avido qual Lemnyade fugida do mar immenso; sobre uma seda amarella Ladice se estirava, despida, toda envolta em gaze violeta; em o pé direito entre os dedos uma rosa se embutia; os cabellos se lhe extendiam atirados, para trás em caracoes. No chão o tapete era coberto totalmente pelas rosas escuras, desprovidas de folhagem, de lado a lado, em caçoilas improvisadas, ardiam resinas perfumadas, o nardo, o benjoim... A phantasia, o amôr, o senso poetico do Vate iam e vinham sobre Ladice, como a circulação invisivel do Deslumbramento; como a exhalação quente de uma boca febril; como a faisca venenosa, electrica de um olhar que passou...
Theophilo recebia sobre o ardor, a emoção, a belleza liquida, estranha de sua amante. Em seu silencio, fixando-a, elle se dizia, á medida que a inspiração se lhe transmutava.
— “E´s a lampada violeta que preside em abobadas escuras, o bem e o mal; o germen que se agita e a seiva que se estiola da humanidade... lá no fundo, contra a parede, se delineam tres formas sombrias, negras, esqualidas, cujas mãos descarnadas teem sempre o mesmo movimento alterno...
“És Chtonia immolada sobre ara reluzente de soes, em holocausto aos deuses para a salvação da “Cidade Virgem”... Tens em as visceras heroicas o culto, o enthusiasmo, a reverencia bemdita, o adeus terno e lacrimoso de Athenas orgulhosa... De tua garganta golpeada, o sangue escorreu e ajuntou-se em a base marmorea da ara reluzente de soes, denso, compacto, espesso, como se fora o roseiral luxuriante do amôr immortal…
“De cada lado, alçam-se em volutas, em traços de lirios o pranto mudo de Praxithéa, o allivio agradecido de corações innumenaveis...
“Oh! Imagem de Volupia, em o tumulo por um repente, os teus labios, o teu scio, os teus membros, o teu ventre, serão assim violaceos, esverdeados, ficarão dessa côr triturada, machucada, pisada, remanescente, inexcravel, phrenetico, sedento de volupias successivas e violentas... Emquanto elle assim falava afigurava-se-lhe sentir o cheiro de terra abafadiga, de humidade, de bolôr; e em seu delirio, imaginava distinguir milhares de corpusculos a se avolumarem: — Carne morta, não tua, volupia minha e do universo, flamma violeta dos desejos atordoantes e insupportaveis só possucs de vivo, esses teus cabellos eternamente rebeldes que se te esfumeam quaes remoinhos toxicos...”
Cortava o dorso do Poeta, o grande arrepio. Os olhos de Ladice através de violeta lhe patenteavam os olhares de passados remotos; em a sua boca, elle via fanada, murcha, apagada, gélida a ebriez rubente, estridula dos beijos vivos...
Em essa pelle violeta, em essas mucosas azinhavadas, Theophilo revia as nuanças das cousas gastas, servidas, usadas, envelhecidas que já foram, que repoisam em catacumbas, que trazem as sevicias dos annos, do peso dos seculos, das civilizações de antanho; a dôr da dôr, a dôr do prazer acre, o rebôo taciturno, extactico de vertigens banidas e mortas...
E os musculos e as sensações do Vate se torciam pesados, lentos como o ranger de gonzos buidos, como a contorsão das barras de ferro em o desvario devastador do fogo.
A attracção furiosa de todas as impossibilidades de agarrar o que foi, o que passou, o que é ignoto e os instinctos dormentes das gerações extinctas dos factores do seu eu, arremessaram-n´o contra Ladice com a voracidade infrêne, curiosa do Presente; com os dedos arqueados qual garra de animal faminto, elle rasgou os véos que a envolviam exclamando: “Resurreição!” De ponta a ponta o corpo de Ladice surgiu branco, magnifico, formoso, fresco como uma aurora se libertando das entranhas negras da noite.
Theophilo poz-se a beijar-lhe o pé, a rosa, a perna, dizendo, a voz cortada: “Beijo-te o pé, a base, como a adoração, a prece, o incenso, a seiva, que cresce, que sobe, que se diffunde, que te cobre, que te subjuga, que te suffoca.”
A gaze violeta lhe emprestava á imaginação sabores lividos.
Em o amôr de Ladice, Theophilo sentia a vida e a morte se misturarem... Ella lhe dava a impressão de ser um sarcophago vicejante de corymbos, de cachos, de efflorescencias em flôr, a arder de fluidez, de aromas novos, estonteantes... Parecia-lhe amar um corpo que já havia sido, que conhecera a volupia do além, a ascendencia ultima das vibrações humanas; o abandono, a caricia servil, avassallante de vermes que desconhecem o sol; pelo rosto de sua amante, seus dedos passavam irritados em busca de vestigios dirimidos dos espasmos idos de amores mortos em eras mortas... Em resposta aos seus pensamentos, elle disse alto: “Foi o ardor que te conservou inviolada e que te fez volver á vida gloriosa...”
Em Ladice permaneciam a luz e a sombra derradeiras: os seus olhares se despregavam, paravam em Theophilo, seguravam-se-lhe em a pelle como os lichens candentes do ser e da paixão; suas mãos desciam, escorregavam sobre elle dementes, agoniadas, cinzentas, como o que nunca mais será; seu beijo era continuo, voraz; tinha a mesma fome dos craneos vazios; seus cabellos se enlaçavam no pescoço do Vate bem amado, quaes braços amorosos, chamando-o: “Vem! Vem! Sejamos um só na eternidade!” A sua saudade se extendia sobre elle como uma lagrima quente, dorida, saudosa, que corre, corre...
Cedendo á vontade persistente de seus impulsos, ella lhe dizia, entregando-se: “Quebra-me, quebra-me, mata-me eu te supplico, oh! mata-me. — E pela face transida se derramavam prantos interminaveis...
— Não! Ladice, és o triumpho expressivo do lyrismo, e das germinações esplendidas... E´ preciso que vivas, oh! mulher immortal... Em suas mãos crispadas, endurecidas elle sustinha essa amorosa impenitente e exangue.
O corpo, a alma de Ladice fugiam collavam-se n´elle, colmavam-n´o, moravam n´elle. Ella lhe transmittia as pulsações, a melancolia, os suspiros, as incoherencias esplendidas e recebia delle em retorno as instancias dominadoras, a energia victoriosa, as magnificencias.
Unindo a mão á mão de Theophilo, palma a palma, detendo-lhe em os labios a fronte magnifica, dizia-lhe lentamente, á guisa de quem enuncia votos: "Guarda a minha exaltação; aprisiona a minha alma, fulge de eternidades os meus traços, serão os sylphos de tua Fidelidade... Rememora, rememora a minha paixão bravia, unica. — Ella se quedou immovel de olhos fechados, dando e recebendo selvatica, extrema, o seu eu e o de Theophilo.
Theophilo aturdido, vencido pelo romantismo, pela belleza singular, pelo desatino amoroso de sua amante lhe não penetrava em o senso das palavras e dos gestos. Elle as recebia como frutos sangrentos de uma sensibilidade anormal e divina. Exaltava-se em a vida e a morte, em os mysterios virgens, em os mysterios violados, em o que era e o que não era, que brandiam esse ser maravilhoso; segurava, retinha, esculpia em as retinas, em o concavo das mãos, em o cerebro as mutações radiosas, multiplas, que se succediam n´essa essencia immutavel; desatavam-lhe em o ouvido as inflexões varias da voz de sua amante: ora formada de sons longinquos, alheios a ella, discordantes da luz e da vida, elaborados em trevas uniformes, ora um cantico acceso de paixão farfalhante. Parecia-lhe mesmo que o proprio corpo de Ladice emmagrecera; as linhas curvas eram menos curvas e a sua flexuosidade meio rija; em as suas pupillas errantes elle lia a ancia para um repouso, um horizonte, uma permanencia...
Theophilo era mordido, picado, azoinado, por curiosidades, avidezas, torturas, indiziveis, atenazantes, agudas, sevas...
Em a hora da despedida, quando Ladice o premeu contra si coroando-lhe a cabeça magnifica com o seu beijo e a sua intensidade, sem se poder explicar um mal estar terrivel inopinado lhe amiudou os baques do coração: era uma agonia total em todo o ser...— “Meu Deus! como um facto simples, uma nudez moça, envolta em gaze violeta, pode transtornar, evocar soffrimentos sobre-humanos... Ah! mulher unica, quanta palpitação, quanta arte, quantas potencias grandiosas tens n´esse corpo fragil e deslumbrante...” E com o olhar e o espirito abrangeu a figura esbelta, adorada de sua amante que ia passo a passo como se já houvesse sobre os hombros a sombra pesada da morte insidiosa...
Ladice era prêsa do encantamento voluptuoso, da magia seductora da morte; pelos seus nervos perpassavam sopros de febricidades, de ardentias lyricas; ella gravava em as cellulas as apparencias, os contornos das cousas sensíveis e brutas: — Ah! não morrerei de todo — pensava ella. — As estrellas, a agua, o sol burilaram em a face, o meu perfil, as minhas mãos... Serei a sua legenda da Terra... Natureza, ether, tendes o azul de minha imaginação e do meu mysticismo em os teus filetes invisiveis... Lua calida, sustedes, em o teu livor, a minha nostalgia lunatica d´elle... Perfume de corollas, hora do meio-dia, guardai a tempestade, o alarido do meu eu, impaciente d´elle... Tarde de hoje, tudo o que me olha e vê, consolai-o, levai-lhe o que roubastes de mim, sella-lhe a boca, as sensações com este beijo que é mesma...— Unindo os labios, ella soltou em o espaço um beijo impregnado d'ella, do seu ardôr.
A desordem intemperada de todas as exaltações, do que vivifica, anima, extasia, diviniza, arrebata, o segredo do goso, o sabbat festivo do triumpho lhe latejavam em as veias, apossavam-se-lhe da vontade ardente para a chegada a essa estancia suprêma, surdidora de origens e porvires grandiosos. As formas, os objectos, se lhe reverberavam em as percepções, mais esclarecidos, mais nitidos, com detalhes e invisibilidades nunca d´antes percebidas, em saliencias evidentes. Parecia-lhe que tudo se achava mais proximo, mais perto, como se houvesse o instincto, o faro da sua destruição immediata.
Ladice lhes notava certa clemencia, certa meiguice, uma quasi ternura humana, á guisa de quem diz: "Oh! minha irmazinha, dentro em breve serás como nós uma arvore, uma flôr, um atomo, um cofrezinho de sandalo, recebe pois a nossa homenagem..." Seus actos, seus pensamentos, suas palavras se orlavam da seguinte phrase: "E´ a ultima vez".
Seus conceitos saltavam do principio ao fim, sem evoluirem, sem conjectura intermediaria, sem meandro de raciocinio; nos rebentos apenas nascidos, no que era ainda tenro, infantil, novo, lindo, reluzente, exuberante, ella ajoujava a ideia de eversão, de desfecho. Laborava-lhe em o espirito, em o corpo qual labareda ductil, nervosa, irrequieta, desvairada a convicção, a certeza de ser a justificação da morte. Os trabalhos de sua imaginação eram a ulha, o combustivel, o viço jovem, precioso, fecundo; o facho ateado, os cocáres accesos que a incitavam, a atiçavam, a faziam doirar, esplender, luzir esse symbolo desnorteante, essa realidade que lhe offerecia o deleite estranho do Desconhecido.
Findo o jantar, Ladice mandou abrir uma garrafa de champanha para festejar a entrada do mez de Maio, "mez do amôr immaculado e do amôr profano" — dizia ella.
Habituado ao genio versatil, nos caprichos romanticos de sua mulher, Francisco se não surprehendeu com esse pedido. Erguendo a taça:
— Que te possa vêr até a velhice, muito branca e muito curvadinha...
— Que Deus t´o não conceda esse desejo proferiu ella assustada. — Bebo á minha morte prematura — murmurou; e olhando a taça que havia ainda em a mão, disse em seu intimo. — Bebo ao adeus á vida gloriosa, ao universo, á minha exaltação. E Ladice hesitou. — Tambem á finalidade do meu Thêo adorado... — Ajunetou, humectando as palmas da mão e os pulsos d´essa bebida alegre e solemne.
Dirigindo-se a Francisco; —Acceita a gratidão de um coraçãozinho infeliz.—E molhou os labios pela terceira vez.
Em olhando o marido, a sua consciencia se conservava branca, luminosa, sem arestas e exprobações. Perante elle, a sociedade, o Dever, ella se julgava resgatada... Dera-lhe a virgindade, a innocencia, motivos de orgulho e satisfacção, fruições de intelligencia e esthetismo... Embora nos arcanos de seu senso, refugasse essas apparencias fallaciosas, nullas; mentiras decisivas, lealdades falsas, hypocrisias com ademanes de virtude... Francisco lhe havia possuido o corpo totalmente vazio d´ella. A sua verdadeira virgindade, as explosões de seus espasmos, o estranho de sua imaginação morbida, os venenos de seu extase, a sua sede total, forte, ella offertara, entregára a Theophilo, como eclosões intangíveis, frutos lidimos da Pureza.
Pela sua mente passava então qual espectro tornado á vida, devolvido do tumulo, do esquecimento, ella mesma branca e fina, envolta em seus longos cabellos irrequietos, de joelhos a pedir a Deus a morte em a vespera de seus enponsaes... Depois, convulsa, em pranto amargo, mulher sem ser mulher... Ah! não; ella apenas tinha piedade, enternecia-se ante o affecto, a bondade, a admiração que Francisco sempre lhe testemunhára. “Elle ainda saberá da felicidade perfeita, — raciocinava Ladice. — A sua natureza placida lhe poupará soffrimentos duradoiros... Casar-se-á com uma mulher da sua feição, igual a elle, — concluiu a Senhora de Assis, resignada.”
O resto da tarde, ella quasi não falou. Passeava de um lado para o outro agitada de heroismos e estridencias de sacrificio. Dir-se-ia que esperava pela espada de um Archanjo que a rasgasse de ponta a ponta para lhe arrancar a substancia una; o verbo, a febre de sua essencia; a mola, o eixo de suas irradiações. Tinha o sabor do sangue, da volupia, da tragedia, a alegria prodigiosa violando em si propria o senso, as volições, as potencias. Sentia a vertigem do milagre que se approximava.
“Qualquer cousa d´elle morrerá commigo — observava ella.”
“Parece-me que todas as estrellas baixam do céo para me pregar ao Poeta bem amado... — Depois de uma pausa. — Ah! meu Deus, tenho o desejo da nuvem! — Que ancia de velocidade, de rapidez, de azul...”
A´s 9 horas Ladice disse a Francisco — Vou escrever para Europa, não me interrompas; assim que acabar irei dormir... — E ella o beijou e abraçou-o. A Senhora de Assis entrou para a sala de estudo, fechando a porta, á chave, e tomando da penna, endereçou a Theophilo a seguinte carta:
“Meu Thêo.
A tua figurinha byzantina se vai immobilizar... Entra para a eternidade envolta em gaze, em setim, em perfumes como a dadiva organica da Vida, da Natureda, á Terra faminta, á Terra escura, fria, gelida...
Uma picada no braço e a tua Ladice já não será mais, ao receberes estas paginas que são ella, as sua boca, os seus cabellos, o seu corpo estreito e pallido, as suas invasões formidaveis, a sua agonia rubente de ti, o seu desejo que tem a profundez, as propulsões, os desdobramentos infinitos das raizes e das frondes... Thêo! o meu amôr me não deixa viver... Eu sou a Avena de Pan a se quebrar em a desordem bulhenta dos rythmos... Eu sou o riso dos horizontes desfeito pelo Aquilão agreste... Levo em as cellulas a resonancia, a altivez, o alarido majestoso, a imprecação ousada, as invenções infernaes, a permanencia fiel, a submissão ebria, selvatica do mais desvairado e ethico dos amores...
Quando granizares sobre o meu corpo tuberosas, lirios e escabiosas, quando a tua mao se extender sobre mim em signal de desespero... lá, no fundo e sob o lagedo, os meus atomos a se torcerem te dirão “Eu te amo...” Nas horas de desespero, em a solidão, quando segurares a fronte demente de mim, da minha ardencia, terás sobre os hombros o desatino de minha cabeça, dos meus cabellos apaixonados de ti... Quando na tua ancia em busca de rimas para a exaltação do meu ser, a sombra livida do meu espasmo baixará sobre o teu perfil como um halo amoroso!... Quando a saudade te fizer soluçar, quando os teus traços se desviarem na convulsão da dôr, serei, Thêo, meu adorado, aos teus pés a viuva da Volupia, que te sagra com a violencia uniforme, inabalavel da Immortalidade... Quando á tarde, procurares o teu estro, os membros escorregadios da tua Musa, ouvirá o tropel sedicioso do meu impeto estagnado em ti... Thêo, quando vires a tormenta fustigar o arvoredo, açoitar o espaço, baralhar a ramaria, dize: é a alma d´Ella que passa, inconsolavel de mim...
Quando o sol arder, quando o aroma dos jardins te estontear, quando o dia fôr como um coração de crystal, dize Thêo meu, é o hymno do meu Amôr ao meu amôr...
Não te esqueças dos nossos gestos, quando a sós, da minha curiosidade em te abrindo a boca na illusão leda de vêr o teu coraçãozinho, esse coração que trago constantemente preso aos dentes como o sim concreto do nosso ardor; lembra-te sempre quando te recusava o beijo, a caricia até a exasperação, para depois irromper sobre ti qual ondazinha desenfreada, solta e turbulenta... Recorda do meu desvario, em parando deante de ti, a dizer: Thêo, eu sou o grito do teu extase, das sinuosidades do meu corpo sob a tua pupilla fixa, das contracções do meu pézinho na tua mão, emocionada... Thêo, não chores, a morte é um nihilismo creador; é a efflorescencia de nossas complexidades a se desagregarem, a se isolarem, a se internarem em outros sêres para fortificar, engrandecer a pulsação universal... Thêo, os meus cabellos, as minhas palpebras, descem, cobrem-te com os véos funereos da viuvez... Thêo, serás de ora em deante, só, sem o teu Lyrismo...
Thêo, excita-me uma volupia terrivel, cruel... A morte é o mais venenoso dos amantes; é serpe, é labio humano, é rendição total de uma delicia estranha, ignota!... Thêo! corro para ella... Vai, adorado meu, para a tua mulher que te chama, para a tua filha que clama por ti.
Thêo, a terra se abre em movimento de ser mortal... Mas os seus braços são gélidos, gélidos como a pelle dos amphibios... A chamma do meu Desejo irá incendiar, atear flammas indomitas, apavorantes, ferrenhas em suas entranhas senis...
Thêo, não deixes que a dôr bravia de Orestes se apodere de ti... Eu serei a Paixão da Sombra, o Deslumbramento da Solidão, a Nevrose intensa do Silencio, a Eternidade das tuas insurreições, da tua sublimez, do teu amôr que tem a raiva e a avidez do Fogo.
Thêo, enrolo-te em os beijos, em a caricia, em a ternura immensuravel de meu corpo, em o apogeo da Exaltação, da Vida, do Amôr.
Visto-te a imaginação, o senso, da minha Belleza, da minha Dominação, do meu mal doirado e incisivo...
Deito-me sobre a tua alma como o triumpho unico de ti mesmo, como uma tuba immortal a glorificar a perpetuidade de um sentimento. Thêo, começam de envolver-me a tua ardencia, os teus membros, os teus cabellos negros, os teus labios... Sinto em a boca a tua cabeça magnifica — E´ o obolo radioso do nosso ardor a Eros... Thêo! morro, morro, tendo-te em mim...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.