Exaltação (1916)/4

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IV CAPITULO


— Mademoiselle, é preciso fazer-se hoje muito bella... Aqui estão estas rosas lindas... — e Jeanne lhe mostrava magnificas “gloire de Dijon”.

— Agradeço-te muito, apesar de não desejar que me achem bonita...

— Madame me recommendon, entretanto, muito cuidado com a sua “toilette”... Escutei a conversa de Mr. e Mme... Querem casar Mile. com este senhor que vem hoje jantar...

— Que tristeza, Jeanne. E que disseram?

— Que é um doutor muito distincto, muito rico, e que ama Mlle. muito...

— Qual, Jeanne; elle hoje não gostará de mim... hei de tratal-o com frieza, com desdém, assim não voltará mais...

— Hum!... Mlle. não sabe o que são os homens, quando estão apaixonados; elles não se importam com incivilidades...

— Então, Jeanne, o amor lhes tira todo o sentimento de honra?

— Creio... E´, ao menos, o que tenho visto...

— Deves falar por experiencia; as francezas são mui argutas. Com certeza, já inspiraste muitas paixões, hein?

— Algumas, Mlle.; todos teem o seu tempo... Soffri pouco, porque nunca dei credito aos homens — accrescentou ella orgulhosa.

— E´ por isso, então, que nunca te casaste?

— Não valia a pena. De mais a mais, quando se é pobre, o casamento é um soffrimento, é a fome, é a propria miseria...

Emquanto conversava, Ladice preparava-se, vestia-se; ia de um lado para outro, em busca de coisas; detinha-se no espelho, abria gavetas, admirava-se, prendia os cabelos...

— Mlle, está córada e com os labios vermelhos. Em Paris, aprecia-se muito uma bôca assim, como a sua — disse Jeanne, contente, respeitosa.

— Com certeza, aqui tambem — ajuntou Ladice, rindo-se.

— A bôca de Mlle. é arqueada como a das santas das Igrejas — continuou ella,

Nesse instante, entrou Dinah, vestida de branco, candida, pura, singela como um cirio de altar, trazendo no pescoço a medalha de Filha de Maria, presa a um cordão de platina.

— Ah! Ladice, estás uma tentação... Sabes? quizera-te menos bonita... O doutor Assis vai perder a compostura...

— Pouco se me dá. Não me enfeitei para elle; afianço-te — respondeu ella, mansa.

— Mlle. nunca poderia ficar feia — atalhou Jeanne, pregando-lhe com alfinetes um pedaço de renda rebelde, que teimava em esconder um signal preto, de azeviche, na sua nuca alva, cheirosa, macia, qual petala de magnolia.

Jeanne era bem entendida nos mysterios da seducção; ella sabia com uma arte singular, pôr em evidencia, salientar as pequenas bellezas que mais pertarbam o homem. É assim, apparentando indifferença e naturalidade, dobrava a renda, como se fôra para dar mais harmonia á “toilette”,

Jeanne entrára para o serviço da casa quando Ladice ainda trazia os vestidos acima dos joelhos, quando ela ainda corria, selvagem, atrás dos vagalumes, sobre o gramado sombrio... Foi Jeanne quem primeiro a iniciou no francez ; quem lhe preparou, por assim dizer, essa graça que se tornára o seu encanto maximo. Ah! os cuidados que tivera com essa criança inquieta, buliçosa! Com que prazer agarrava aquelle corpinho nervoso, a se torcer de riso, depois de lhe haver armado alguma cilada... Quantas vezes não lhe ia ao encontro lá embaixo, na horta, a brincar ao sol, sem chapéo, com a areia, e as flôres de laranjeira! Via-a apanhar flôr por flôr, e encher o aventalzinho e a cabecinha, para depois fechal-as nas mãos, apertal-as, a ver si sentiam, dizendo: — Vês? Jeanne, morreram... E, quando ella rolava na terra, na herva ainda orvalhada, cantarolando, contente, risonha, as faces encarnadas; que enlevo vel-a, de camisa, após o banho, trançar os pézinhos nús para a dansa. Quanto trabalho, quanto engodo. para apanhal-a quando fugia, descalça, para o rio, a saltar de pedra em pedra, atrás. dos peixinhos, ou então, armada de anzol, sentadinha, paciente, á espera que a lagosta engulisse a isca! Depois, os estudos, a disciplina de Fräulein, a severidade de Madame... Com ternura quasi materna, Jeanne saboreava essas recordações, avaramente guardadas no seu coração e no seu espirito.

— Prompto, Mlle. O doutor ha de achal-a a moça mais bonita do Rio — disse ella, rindo-se, admirando-lhe a linha perfeita.

Dinah e Ladice seguiram juntas; ambas altas, esguias, formosas; porém, de um subjectivismo totalmente differente: a senhorinha de Santo Hilario era a natureza, a eclosão do extase, o mal divino, a violencia biologica da paixão; a outra, o mysticismo das capellas invadidas de sombras; a vontade eversiva, aguda, que pede martyrios, mutilações, flagicios; a impaciencia risonha, a fixidez branca, immaculada dos bemarventurados.

Tomada de forte accesso de riso, Ladice dizia á Dinah: Ah! o exame por que vou passar... Como elle me vai olhar... Verás como as suas pupillas me perseguem... E´ a mesma obstinação da noite pelo dia...

Nesse momento, a porta da sala abriu-se; a sra. de Santo Hilario vinha em busca de Ladice, relanceando a vista pela “toilette”:

— Já é tempo de appareceres... Sê cortez e gentil; faze-lhe companhia, emquanto ultimo os preparativos.

Ao ver Ladice, o dr. Assis ergueu-se, e affavel, de mãos extendidas:

— Traz na physionomia as nuanças da Aurora...

— Pois, se diariamente a recebo em mim? — retorquiu ella, ferida pela banalidade da comparação.

— Levanta-se cedo assim ? — inquiriu elle, admirado.

— Quasi sempre. E´ a minha hora mais feliz: pela manhã, vivo simplesmente por amor á vida. Sou vacuidade radiosa... Sou passaro, insecto, corolla, fronde, inconsciencia de azul...

— Na sua idade, senhorinha de Santo Hilario, todas as horas são iguaes — respondeu elle vivamente.

— Não lhe dê attenção, doutor, Ladice gosta de fazer poesia, ella ainda desconhece a dôr — atalhou Dinah.

— O meu coração que o diga — suspirou Ladice. Parecia-lhe que uma nuvem se pousava sobre a alacridade do advogado.

— Senhorinha d´Elvas, é verdade? — E na sua voz havia ligeiro embaraço.

— Não creia, é fantasia.

— Já sei que toda a mulher gosta de ter o seu mysteriozinho, sobretudo quando se acha em companhia de nós outros homens—observou elle, lentamente, aliviado. — Ellas pensam que se tornam mais attrahentes. Não precisa dessa astucia, senhorinha Ladice, é por demais interessante...

— Garanto-lhe que é real o que lhe disse. O meu mysteriozinho é um facto, é o não tragico de destino. — E ella ria-se da crueldade que praticava.

— Impossivel, têm vivido sempre isolada...

— Esquece-se da liberdade ampla do sentimento?

— Repito-lhe, é impossivel. Estou totalmente informado a seu respeito...

— Quasi todas as informações são filhas da generosidade — atalhou Ladice, maliciosa.

— As que tenho suas são da verdade — disse elle, firme, parando os olhos no perfil classico de Ladice, em seus joelhos, ligeiramente pontudos, nas pregas da saia, amontoadas ao lado, revoltas, insubmissas, como sua propria vontade.

— Nunca o julguei tão curioso — proferiu ella, mudando de tom.

— Para a Senhorinha a minha cariosidade é voraz — retorquiu elle, vivamente.

A sra. de Santo Hilario entrou, acompanhada da irmã, da sobrinha, senhora e senhorinha d´Alba,

Annunciaram o jantar.

Ladice sentou-se ao lado do dr. Ássis; a sua conversa, a principio, geral, restringiu-se, pouco a pouco, até se limitar aos dois, emquanto os outros convivas discutiam assumptos varios com interesse e calor.

A´ surdina, o dr. Ássis dizia-lhe:

— Já devia ter penetrado em o seu modo de ser; entretanto, confesso-lhe que ainda não a conheço, embora adivinhe as coisas por onde suas mãos passaram... Estas violetas, assim em desordem, impacientes, trahem a sua presença... Nellas percebo certas analogias...

— E´ devéras perspicaz. É aquellas anemonas?

— Que estão perto da senhorinha d´Elvas? Foram arranjadas por outras mãos; não trazem seu estylo...

— Eu, por mim, não lhes noto differença... Vejo-as todas iguaes, todas languidas — retorquiu ella.

— Senhorinha Ladice, é uma tormenta: — por onde passa, deixa signal, particulas que a trahem... —Sorrindo: — Aquellas corollaz, aquellos estames estão cheios de seus gestos. Têm peccados, que me recordam as suas attitudes serpentinas... —Francisco nunca se acreditou tão subtil, o attribuia isto à suggestão, ao encantamento que vestia as fórmas desse corpo fragil. Em finalizando, suas pupillas procuraram galvanizar-se, rapidas, em as pupillas de Ladice.

Ella cessou de comer, cruzou o talher, e sentiu a mesma sensação rosca que tivera no baile; disfarçando, disse:

— E´ effeito de imaginação, ou talvez de coração cheio de sympathia...

— Sou um homem positivo, mas, ao seu lado, sob a sua dominação, desappareço, para surgir idéalista, romantico, um outro eu, emfim... Reflexo pallido, esvaido, longinquo de sua pessôa. — E, depois de curto silencio, sério, inquiriu-lhe de repente: — Senhorinha, nunca amou?

Tomada de improviso, surprehendida, Ladice, empallidecendo, encarou-o; as suas palpebras se comprimiam, o seu respirar se tornava pesado.

— O amor, em a Senhorinha deve ser immenso — objectou elle, sem se perturbar, e parou, a ver o que ella respondia. Ladice, porém, permanecia calada. — Queira dizer-me, nunca amou?

— Não sei... — E seus olhos baixaram, acompanhando os movimentos inconscientes dos dedos sobre a toalha.

— Seja franca; sim, ou não?

— Meu Deus, que teimosia!

— E´ do maximo interesse para mim. — E os traços se lhe contrahiram, para ter a calma necessaria.

— Devéras? — Ladice saboreava a sua propria soberania. Detinha-se, risonha sobre a ancia, a espectativa avida do advogado.

— Por piedade; sim, ou não! — repetiu elle, baixinho.

— Sim — balbuciou ella, levando aos labios a taça de champanha. Em a retina brilhava-lhe o triumpho da maldade, a alegria da deserção, a palpitação de uma nova surpresa, um outro futuro...

O Dr. Assis, grave, severo, nada lhe respondeu. Bebeu alguns goles d'agua e misturou-se na conversa geral.

Ladice lhe percebia o esforço para vencer-se, subjugar-se, domar-se, absorver-se no assumpto.

Dinah, que, durante o jantar, os espreitava, não deixou de observar a mudança brusca do dr. Assis, e attribuuu-a a algum graçejo de Ladice. De longe formulou-lhe' com os labios um imperceptivel.

Findo o jantar, as senhoras retiraram-se para o salão; os homens conservaram-se ainda á mesa, a fumar.

Dinah, Ladice e Ruth d´Alba sentarem-se na sala do piano. em cadeirinhas de espaldar, semi-circular, imitando os “diphroi” gregos; atrás da senhorinha de “Santo Hilario, uma columna dorica, austera e viril, sustentava um vaso, de onde fuchsias se debruçavam, curvavam-se, despejavam-se, extendiam-se como si estivessem ainda lassas, exangues, atordoadas pela laseivia do vento que passou...

Os cabellos de Ladice ondulavam, fremiam, tinham pulsações de arteria, de narinas, de volupias quasi a florir...

O seu pescoço ora se inclinava á feição de reverencia luminosa, divina, de archanjo; ora teso, firme, impeccavel, lembrava um marco de marfim, a dizer ao viandante, ao tempo, á solidão que o circumda: “ Toma-me, destróe-me, desfaze-me. Sou a tua fome...”

— Acceita meus parabens... Apesar de não ser elle, irresistivel... — disse-lhe Ruth, segnrando-lhe as mãos. — O teu noivo deveria ser apollineo; ou então, ter uma cara castigada por excessos de poesia, minha querida...

— Elle é apenas sympathico, e nada mais — retorquiu, triste, a senhorinha de Santo Hilario.

— E tambem muito bom — accrescentou Dinah.

— Bondade, em nosso tempo, é appendice de pouco valor. À lei nos protege, coage o mal — proferiu Ladice, sacudindo os hombros.

— O que voga é a distincção; sobretudo, a belleza. Vejo um perfil lindo, e não estou mais em mim — exclamou, rindo-se muito, a senhorinha d'Alba,

— Que futilidade, Ruth! Que peso a gente sentir jungida a si, durante annos, uma fórma ôca, cheia de séries monotonas e de sequencias identicas — redarguiu Ladice.

— Que importa! Via-lhe os olhos, e sorria; beijava-lhe a bôca, e perdia-me... Que queria eu mais? — interrogou Ruth, hilariante.

— Como és feliz, vivendo assim, na superficie, nos sentidos...— E os olhos de Ladice se retouçavam, através da janella aberta, em o negror da noite.

— O que garante a superioridade de um homem é o seu caracter, a sua nobreza de sentimentos — sentenciou Dinah.

— Elles são tão dissimulados, que, de ordinario, não sabemos quando dizem sim — explicou Ruth.

— Quando converso com elles, parece-me sempre possuir nas mãos a sua consciencia. Tenho uma percepção mui rapida; sei logo quando mentem... — accrescentou Ladice.

— Mentem de continuo. Nunca se esquecem de mentir... E´-me um “sport” adoravel seguir-lhes, circumspecta, a mesma traça — retorquiu Ruth.

— Quando percebo que a mentira é ascendente, é grande estylo, é uma provocação para o alto, affirmo-a e goso então muito, oh! muito!...

— Vocês são de um mundanismo desolante... Sentir o prazer da mentira!... E´ incrivel, Ladice — verberou Dinah.

— Mentir é fazer-se romance, é criar-se uma atmospherazinha toda sua; é um dualismo que não deixa de ser interessante; é uma manifestação de intelligencia.

As palavras da senhorinha de Santo Hilario eram acompanhadas de riso.

— Não desejarias, entretanto, um marido mentiroso? — inquiriu-lhe vivamente Dinah.

— Ah! não, protesto. Que o meu marido tenha todas as perfeições... E´ simplesmente, como disse Ruth, por “sport” nos salões...

— E a delicia de um “flirt"? De resto, é o que dá sabor ás reuniões — interrompeu-lhe a senhorinha Alba.

— Não lhe temes as consequencias? Por elle vamos ao amor — ajuntou Ladice.

— Qual, hoje quasi ninguem ama... Eu, por nim, temo fixar-me. Não nasci para soffrer...

— E quando te casares?

— A amizade será sufficiente. Comprehendes que, mais tarde, as diversões da sociedade me absorverão—acerescentou Ruth. '

— Como pódes tu passar pela vida sem uma tormenta, sem um abalo, que te dê a morte e a vida? — As phrases lhe saiam através dos dentes cerrados.

— Detesto as emoções fortes. Eu quero o riso, a, espuma, a luz que vejo. Quero divertir-me sem preoccupações. — E Ruth levantou-se.

— Eu quero o riso, a espuma, a luz, que vejo — repetiu Ladice em seu intimo, e continuou a pensar: “impossivel, desço até á convulsão das coisas. Theophilo é o meu veneno”...

— Senhorinha Ladice, como está distrahida. Ha alguns segundos que aqui me encontro... Acabo de pedir á senhorinha Ruth que faça um pouco de musica.— O dr. Assis approximára-se de manso, e, emquanto falava a Ruth no meio da sala, admirava-lhe o corpo esbelto, feito para o beijo e a caricia, a garganta branca, incomparavel e, em mente, dizia: “Quanto Deus foi prodigo para com essa mulher!...”

— E´ á distancia que apreciamos melhor a musica.— E Ladice encaminhou-se para o outro lado da sala.

— Fiquemos aqui perto desta magnifica estatua — replicou Francisco, examinando-a. Era o “Porvir”, representado por um rapaz, de camisa aberta ao peito, fronte inclinada para trás, elegante, robusto, sorridente, cabeça descoberta, á maneira de quem encara o sol e exclama: — “Sou teu rival!”

Ladice curvou-se sobre um feixe de bellissimas avencas, entranhando pela folhagem os dedos.

— Como é delicada e vaporosa...

— E a planta da humidade e da sombra...

— Está viçosa assim, devido aos meus carinhos. Sou d´ellas a mãezinha. E´ verde em todos os tons... E´ terrivelmente feminina... Quem sabe se não são as nossas lagrimas crystalizadas?!— Ao emittir a esmo essas phrases, ella não cessava de acaricial-as.

— E´ pena que seja inodora...

— Não é de todo: cheira á herva guardada em herbario...

— O meu olfacto não é tão subtil...

— E porque ainda não experimentou. E Ladice mergulhou o nariz, a bôca, os olhos na avenca, que parecia recuar ao sentir sobre si esse perfil maravilhoso...

O dr. Assis, recostado no sofá, sorria, ao vel-a infantil, curvada, segurar os ramos, exaltar-lhe a belleza, as ondulações de pluma. E sentia-se feliz, satisfeito em surprehendel-a assim, fragil, meiga, encantadora. Mas, de repente, a mulher extranha revelou-se: por entre a folhagem, elle divisava um rosto, onde o extase inconsciente da vida permanecia: ella vinha de pronunciar sobre as germinações dessa planta, á beira de suas raizes, ondo a seiva se transforma, se desliga do mysterio — o nome de Theophilo... E passando-lhe ás mãos um galhinho:

— Queira sentir...

Levando-o ás narinas:

— Palavra, senhorinha Ladice, não percebo... — Rindo-se de sua seriedade, accrescentou: — Não tenho a sua natureza...

Apezar da ligeireza do espirito, da apparencia despreoccupada, Ladice lhe notava certa inquietação, geito de quem anceia dizer alguma coisa, fazer uma pergunta, de quem espreita occasião propicia. Finalmente, aproveitando uma pausa, approximou-se e segredou-lhe baixinho:

— E´ verdade o que me affirmou ao jantar?

— Póde crêr...

— Será fantasia dos quinze annos, ou amor sincero?

— Não desçamos ás minucias. Não é uma confissão — acudiu Ladice, de subito.

— Perdão; é por consideral-a um typo superior, uma forte cerebração, que lhe ouso pedir esclarecimentos... Faça esse sacrificio por mim... Soffro muito. — E as suas mãos, ligeiramente queimadas, premiam-lhe o coração.

Compungida, a voz meio tremula, o falar apressado, os olhos baixos:

— Não foi esse desejo de amar, fallacioso, que irrompe na adolescencia e que faz com que, a todo o instante, pensemos ter encontrado o ente querido... Não! Foi uma paixão, um amor extremo...

Pareceu a Francisco ver nos olhos de Ladice agglomerarem-se as lagrimas de Nossa Senhora das Dôres.

— Mas, faz muito tempo isso? — E Francisco cravava as suas pupillas brilhantes e aridas no rosto de sua interlocutora.

— Ha um anno e tanto...

— E elle? — Essas palavras levavam atrás de si o cortejo de todos os sons cavos, funcbres, angustiosos, sem esperanças...

Por minutos, Ladice vacillou qual a resposta a dar: dizer-lhe a verdade seria plantar sizanias continuas entre ambos; seria formular uma duvida eterna; seria o renascimento incessante de suspeitas temerosas. O destino, a fatalidade, os seus pais, a sua consciencia vencida, arrastavam-n'a, entregavam-n'a a esse homem...

— Elle?... Morreu... — balbucion ella.

Ladice não mentiu ao enunciar essa affirmação. Theophilo, embora lhe agitasse o espirito, os sonhos, o mal, o egoismo, morrera para o seu corpo, a sua vida, a sua felicidade.

Um suspiro de allivio saiu dos labios do dr. Assis, um suspiro profundo, impregnado de amargores e jubilos, á semelhança de um buicão orlado de lunares. Sorridente, tilintante, generoso, solicito, qual general ardendo em primícias de gloria:

— Coitadinha. Com certeza, já se consolou, pois não é mesmo? Ainda póde muito bem amar... se elle morreu...

— Ah! doutor, um amor igual áquelle nunca mais terei... Elle nos atravessa a existencia uma só vez... E´ a pennugem da papoula que o vento faz esvoaçar, e não volta mais... E´ o verde tenro dos rebentos, que o sol do meio dia cresta, e desbota para sempre... — Ladice sentia nos nervos a nostalgia dos crepusculos, das horas tardas..

— Sim, senhorinha de Santo Hilario, comprehendo... Mas, em se tratando de uma alma ardente e morbida como a sua, o segundo amor será tambem vehemente; sobretudo no seu caso... À senhora se acha deante de um facto consummado, irrevogavel; dir-se-ia um não, pronunciado por Deus...

— E´ um não que me rompeu a esperança, que me abriu em o senso a chaga incuravel dos fanaticos, o mal chronico dos lunaticos. — E, mudando de tom. vivamente — Oh! doutor, pudesse eu exclamar: — "Meu Deus eu sou a areia onde o vosso sangue escorreu...” Como seria feliz!... Que fatalidade radiosa !

Parecia-lhe que Theophilo se lhe enroscava pelas visceras...

Nas suas palavras havia desalento, azedume, abatimento.

Francisco, sempre inclinado, a cara apoiada na mão direita, triste, escutava-a.

Olhando-o, Ladice viu-lhe no canto dos olhos uma lagrima sustida, qual gota de orvalho, pairando em fundo de corolla; squella lagrima assim retida, sem escorrer, era bem a victima do esforço consciente, da vontade sobre o instincto, a natureza. Arrependida, cheia de piedade, enternecida pela grandeza do sentimento que o dr. Assis lhe offerecia e lhe dava, disse, dissimulando alacridade:

— Mas, sou capaz da estima, da amizade sufficiente para a vida a dois...

Essa noite, em se despedindo de Ladice, o dr. Francisco murmurou-lhe, sorridente:

— Atê breve; pense em mim...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.