Exaltação (1916)/3

Wikisource, a biblioteca livre

III CAPITULO

Durante seis mezes, a vida de Ladice não soffreu alteração. Com a entrada do inverno, a season surgira festiva, cheia de ancias e palpitações novas, robustecida pela calma das villegiaturas: os nervos, o cerebro, as sensações, após repousos prolongados, pausas estereis, após haverem haurido frescores de montanhas, perfumes agrestes, beatitudes de vida campestre, purezas rusticas, impacientavam-se por expandir, derramar, vazar, esgotar, essa agitação, essas energias e curiosidades renascidas, eumuladas, famintas. Os theatros, as diversões succediam-se; esperanças fugidias tornavam a despertar em corações descrentes; pupillas incendiavam-se sob pensamentos secretos; labios mudos offereciam-se a outros labios; virgens estremeciam ante a duvida de uma certeza desejada; destinos moviam-se, baixavam ás volições humanas, aos criterios individuaes. E' nessa occasião que a vida toma fórma, deixa o chaos, a indecisão, trabalha, dilata-se, reveste-se de embuste, mascara-se, para vencer, chegar ao seu fim, desdobrar-se.

Essa febre fecunda nos passa pelo sêr como o vendaval do bem e do mal: é um toxico, um encantamento, um turbilhão, a enrodilhar, a desnortear, a unir conscieneias, animos, corações.

E' uma labareda ignota, não presentida, cauta, mas infallivel, certa, fatal, na sua urdidura constante, que vai de um senso a qutro senso, numa concatenação infernal.

Todos se rendem a essa fascinação ardente, a essa inconsciencia organica...

As senhoras, de espaduas núas, querem fremitos mais profundos, mais espertos, mais mortaes.

As virgens saboream, sem se poderem explicar, a ebriez, o languor, que, por vezes, lhes roça a bôca, as narinas, a garganta, como pontas de charpa frouxa, tassa, pesada, de caricias e beijos...

Os homens carregam em as velas, em as retinas, em as cellulas, todas as orgias da novidade, todo o vampirismo do desejo e da emoção não libados...

O artista leva a sua perfeição, a sua volúpia dionysiaca em busca de arte, de sonho, de inspiração.

A Vida desata, liberta, desprende, a licenciosidade, a luxuria, a incontinencia, escondidas, suffocadas, disfarçadas pela castidade, pela pudicicia, pelas attitudes gregas e virtuosas...

E' a vertigem da mocidade, é o pœan estridente, ingenito do sangue á eternidade. E' o grito da especie pela florescencia, o fruto, por outro ser... E' a laboração da natureza, que firma a sua soberania, pedindo multiplicações, sequencias... E' a vozeria dos instinctos para outras fixações, para a hereditariedade...

Sómente as fibras relaxadas, as arterias desangradas, as sensações gastas, extinctas, queimadas por febres idas, sómente as imaginações paralysadas pelo silencio da finalidade, permanecem surdas, insensiveis, indemnes, a esses appellos, a esses ruidos de plenitudes, de extremos...

Os bailes, as reuniões mundanas, a dansa, as festas, em que o homem e a mulher se encontram, são, apenas, o artefacto, o pretexto, o motivo, enganoso, falso, dissimulado da Vida a si mentindo e ao proprio homem...

E' a semente incorporea, articulada, inorganica, a ordem verbal, precisa, grave, sentenciosa, saida dos labios divinos — Multiplicai-vos, — que se objectiva, que triumpha em cada plasma, em cada tecido, com fidelidade e exactidão inexoraveis, proliferando, executando-se cabal e sobeja...

E' a cabeça anguifera de Medusa temulenta, calida, sequiosa, apaixonada, violenta, passando-nos, tenaz, pelas visceras, e pelos tendões...

Os barões de Santo Hilario se conservavam fechados em sua grandeza e seu orgulho: o écho d'essas festas, d'essas explosões de musculos avidos de prazer lhes chegava tardo, longinquo, amortecido.

A mudança de governo os afastára totalmente da sociedade; visitavam, apenas, alguns amigos do antigo regimen. Mas um facto inopinado veio retiral-os, por momentos, d'esse isolamento, veio atiral-os na onda vertiginosa, onde todos se esforçam por gosar: em casa de um titular, ex-conselheiro de Estado, realizar-se-ia um baile em honra á formatura do ultimo filho; os srs. de Santo Hilario não podiam escusar-se, laços de intima amizade os ligavam, havia muitos annos.

Em annuindo, a sra. de Santo Hilario obedecia a uma vontade unica, a um egoismo, a um mal estar constante em a consciencia: casar Ladice já, antes dos vinte annos, proporcionar-lhe ensejo para arranjar um noivo. Ella se affligia por consumar esse acto, por seguir a maxima da época, do habito, dos seus avós, a sua propria; o que se havia dado comsigo, emfim.

“Oh! mães pueris, de entendimento fragil, passais sobre o problema mais serio, mais decisivo da vida da mulher com a leviandade, com a cegueira, a indifferença da ignorancia. Detende-vos, por instantes, em 2 sua importancia, em a sua razão, em o seu fundamento; sondai-lhe o conceito, estroncai-o com energia viril, rasgai-o audaciosas, completamente, pesai-o com o raciocinio, o acumen, a inteligencia, o coração; só assim, então, conseguireis impedir, arredar, destruir, a intolerancia, as desgraças vindouras o nascentes, que pouco a pouco, se ajuntam, crescem, se agigantam, se approximam, para, mais tarde, arrebentar sobre a eabega de vossas filhas, terriveis, furiosas, eversivas, bramantes...”

Passados alguns dias, Ladice annotava no seu “Diario” os incidentes, as impressões, que trouxera de seu primeiro baile, de sua communhão com pessoas estranhas:

“11 de maio:

Dansei: tive a cintura enlaçada por braços, que não eram os de Theophilo... Mostrei o meu lindo pescoço nú a olhares profanos, a orbitas torturadas...

Meu Deus, por que nas pupilas paradas dos homens baila, fuzila, uma ironia, uma aneia, uma interrogação, uma pausa diabolica?

Como eu senti o limite, a justa medida, a balisa das condições humanas, da bôa educação, do que é permittido pela sociedade... Dir-se-ia que uma linha tangivel, palpavel, de licença, atravessava, separara, indicava o bem do mal, o moral da immoralidade...

Meus olhos vagavam de homem para homem: a mór parte aparentava o mesmo geito, a mesma postura, o mesmo aspecto: ar de quem se sente contrafeito, de quem se reveste de maneiras alheias, de quem tem o que não é seu...

Percebi como a fragilidade de nosso sexo é uma dominação; a homenagem do homem nos augmenta o orgulho e amplia-nos a vaidade.

De repente, sem saber por que, emquanto o meu companheiro, estreitado em uma casaca severa, me dissertava sobre a arte da “toilette” feminina, fui ferida por um pensamento terrivel: “Que seria de nós, mulheres, si todos elles endoidecessem, rasgassem os freios protocollares, perdessem os ademanes de prineipe... Fremi de horror. Naturalmente, o primeiro gesto havia de ser selvatico: com os dedos enenrvados, como garras, so atirariam á brancura de nossas carnes vivas e palpitantes.

— Senhorinha de Santo Hilario, a minha valsa?

Era o dr. Francisco Everardo de Ássis, que me quebrava o ouvido, reclamando-me; afugentava, inconsciente, tragedias sinistras, que não mais voltaram. Dansava commigo pela segunda vez; em um dado momento, senti-lhe a ponta do bigode tocar-me a face esquerda. Enrubeci, totalmente confusa; tive, apesar de mim, a sensação de ideias roscas, de arco-iris festivos... Sentei-me. Tornou-se a minha sombra, o meu Pagem. Quando me via valsando, quedava-se, de pé, contra uma columna, taciturno, a olhar-me; as moças o trataram com carinho. Levou-me so “buffet” um moço magro, pallido, estravagante. Adivinhei que era um poeta... — Symbolista — accrescentou-me elle. A nossa conversa corria ligeira, cheirava a jasmim.

Fatigada, estonteada, louca pelo silencio, entrei em uma saleta toda branca, estylo Roccoco, guarnecida de palmeirinhas verdes. Cheguei-me á janella, Ah! como as noites de maio são luzidias e limpidas! Inclinei-me para a frente, debrucei-me sobre o para-peito, abri a meio a bôca e inundei-me de aragens, de perfumes, de noite mysteriosa... As estrellas, ardendo balbuciavam-me — “minha irmã”... Um torpor lento, inexplicavel, se apoderou de mim, os meus olhos encheram-se de lagrimas, eu inteira estirava-me em mente, para Theophilo... Ouço o meu nome, volto-me. Deparou-se-me o dr. Ássis á minha procura:

— Senhorinha de Santo Hilario, com certeza é poetisa; creio que me não engano...

— Mas, por que?

— Abandonou o salão, esqueceu-se da dansa, de todos (não ousou dizer de mim), e veio refugiar-se no silencio e no luar, como a fada do crepuseulo...

Na verdade, a lua me batia em cheio.

Elle continuou:

— Quando a vi entrar, tive logo a impressão de que ia haver-me com uma moça original, talvez devido no seu typo, e pensei:—ha de gostar das flôres, sobretudo das angelicas e das violetas... Deverá saborear o mel, os frutos acres e os bombons, crystalizados... Adorará de preferencia Beethoven, Sehumanon, e a sua alma ha de ter mais fremitos do que o arvoredo dos cimos, embora, á noite, reze, pledosa, o “Pater”, de joelhos, não é mesmo?

Ri-me, e disse-lhe:

— Talvez... eu mesma não sei o que seja. Vario muito, sou como o ar das montanhas: hoje, glacial; amanhã, cheio de luz, de sol...

— São as incertezas da juventnde, apenas em eclosão — proseguiu elle, sorrindo. — Lê muito. Quaes os poetas favoritos?

— Byron e Heine.

— São dois contrastes, dois temperamentos differentes — accrescentou elle. — Um é explosivo; tem sempre em o coração o raio de Jove; o outro é um torturado...

— Sim, mas ambos sentiram o amor profundamente, ambos levaram em a alma os seus gilvazes sangrentos...— respondi-lhe com vehemencia.

— Paz a vós, é immortaes felizes, que mereceis tal culto... — exelamou, erguendo os olhos ao céo, e ajuntou:—não gosto dos allemães, são mui nebulosos e horrivelmente romanticos...

— Sim, doutor, mas é uma nebulosidade que traz em seu bojo sóes esplendidos... elles têm, como o Mar Baltico e o Mar do Norte, brumas virgens, sobre o azul e as suas revóltas...

Depois de certo silencio, disse-me:

— Senhorinha de Santo Hilario, vive dentro de uma lenda, não é mesmo?

— Tem razão, doutor; ás vezes, afigura-se-me trazer em o senso, passados longinguos, estravagancias de tempos primitivos: bordas de lago, meia noite, cabellos soltos, pallidez ardente, vestes fluctuantes, tumulos de lírios...

Emquanto falava, os seus olhos se fixavam em os meus.

— E' deveras estranha — murmurou elle, sério: — Já não é mais a fada do erepusculo, agora é a Senhora do Lago da Ballada de Walter Scott... Mas que poder de transformação!

E os seus olhares me vinham ternos, dolorosos... Em a sua cabeça, meio inclinada, havia muita languidez, os seus movimentos se tornaram lentos. Tirando um cigarro, disse:

— Não a incommoda o fumo?... Sou um vicioso. Com permissão — depois acerescentou, de vagar, rindo-se — é tão fragil, tão branca, tão etherea; temo que tudo lhe faça mal; e, fumando, continuou: — E' singularmente distincta e de um imprevisto estonteante...

As suas palpebras quasi faziam uma só. Summamente embaraçada, puz-me a brincar com as rosas que me guarneciam o decote: uma a uma, as suas petalas -se desprenderam, rolaram; elle abaixou-se, apanhou a mais denegrida pela violencia de meus dedos, collocou-a dentro do tampo do relogio, dizendo:

— E' o “memento” do dia mais feliz de minha vida...

Oh! alma bemarenturada, tens a tua satisfacção — pensei eu, calando em a solemnidade desse momento. Senti-me, então, força, poder, invasão, dictame valioso, predominio: a minha vaidade lhe pedia reverencia, genuflexão, canticos, beijos de vassallo, embora o meu espirito clamasse, insoffrido, pela felicidade, pela hora ardente, pelo perfil de meu Poeta amado e não meu... Lembrei-me dos romances que havia lido, e experimentei uma vontade enorme de ter aos pés, sob mim, uma humilhação, uma alma, de arrancar-lhe uma confissão, e disse-lhe, com laivos de sarcasmo:

— Ah! doutor, quantas petalas já não jazeram onde está esta...

— Oh! d. Ladice, não tenho por profissão adorar a mulher — retorquiu elle, vivamente: — Creia-me, é um acto virgem... — e cntrámos no salão.

De passagem, ouvi de um cavalheiro á sua dama a seguinte phrase, que me parece haver o sabor de fruto acre.

— A valsa é uma vertigem serpentina; é o desdobramento infinito e lucido de desejos secretos, não revelados...

Já no vestibulo, prestes a sair, a capa se me escorregou pelos hombros, o dr. Ássis, em a retendo, roçou-me, involuntariamente, os dedos pclo pescoço; em um movimento reflexo, fremi. Os seus olhos me fixaram tão rijamente que lhe virei o rosto, de manso, sem lhe dar a perceber. Quasi ao chegar em casa, papai me perguntou:

— Tu te divertiste muito? Não dansaste em demasia?

— Diverti-me, mas de um modo puramente cerebral...

“Sensações que tive hontem em o baile onde vos amontoais? Mortas, mortas, totalmente mortas...

Thêo, Thêo, quero-te o beijo, os braços ao redor de minha cintura... tenho uma alegria infernal, satanica. Rio-me, rio-me, exulto porque sei que não amas a tua mulher...

Oh! perversão da consciencia, oh ! monstro de verdade, oh! abominação horrivel! entretanto, eu vos sinto.

Meu Deus, perdoai-me! Misericordia para essa impotencia de minha razão e virtude, para esse mal, que sóbe, sóbe...

LADICE.

Nessa tarde, á hora do jantar, a sra. de Santo Hilario, contente, interrogou a filha, a respeito do dr. Assis:

— Então, Ladice, que impressão te deixou esse rapaz tão distincto?

— A de uma bolha de sabão, atravessada por um raio de sol...

— Principias com as tuas hilaridades. E' tempo de tomares as coisas a sério, de perderes esse máo habito — atalhou sua mãe.

— Deixa a menina rir, Maria — respondeu o barão: — O proposito, a seriedade virão com os annos. Toi justamente esse humor alacre que virou a cabeça do advogado e de muitos outros que sei...

— Ah! papai! — e Ladico enrubeseu.

— Não fales assim, André; tu a perderás: letrada e com fama de belleza, ficará impossivel...

— Que maldade, mamãe, a dizer essas coisas da filhinha, que é tão boazinha... Conta papai.

— O advogado está positivamente enamorado de ti. Todo o tempo que esteve commigo, só me falou de teus predicados... Ah! se os homens soubessem como ficam ridiculos, quando amam! Offereci-lhe a casa; prometteu-me apparecer muito breve.— Dirigindo-se á Ladice, continuou: — E' um rapaz de bastante intelligencia. Produziu defesas brilhantes no jury, pertence á familia de consideração e rica...

Ao ouvir essa phrase, Ladice sentiu um calafrio, lembrando-se do vaticinio de João, e disse, empallidecendo :

— Que mais?

—... Um poeta, cujo nome me não recordo, felicitou-me pela tua intelligencia e formosura... Um engenheiro, que te não conhecia, me indagou: — “Barão, quem é aquella figurinha de Greuze?” E outros... Agora a casa se vai encher... Esses senhores pretendentes são de um zelo enternecedor... Que prazer ser-se tyranno! — exclamou elle.

— Só assim, como o meu paizinho, adorado por todos — ajuntou Ladice, abraçando-o.

— No mundo, filha, não existe adoração; tudo é interesse, é egoismo — retorquiu elle, beijando-a, a ella, a sua maxima adorada, e saiu.

— Dize-me, Ladice, que mais te impressionou no baile? — interrogou-lhe Dinah.

— Um perfil frio vestido de silencios e sombras, com uma bôca que não ria. Os olhos eram castanhos, porém vidrados. A's vezes, enfiava-lhe o rosto a pallidez dos agonizantes, e as suas mãos então se abriam e se fechavam, como si estivessem ebrias de raiva...

— Que horror! — exclamou Dinah,

— Algum louco, fugido do hospício? — inquíriu-lhe a mãe, irônica.

—... De espaço a espaço — proseguiu Ladice, indifferente ás perguntas — sacava do bolso uma tira de papel e escrevia algumas linhas, talvez rimas, quem sabe? E, ah! se vissem — exclamou ella — em seus olhos, em suas mãos, em seus labios, em os cabellos negros annexaram-se a luz, a chamma do Universo!... Elle se multiplicava!...

Lalice fantasiava. Ella se referia, em pensamento a Theophilo, triste, contrariado; tinha prazer em mistural-o á sua conversa, á sua vida, em trazel-o á discussão.

— Mas, quem é? Algum noticiarista? — indagou Dinah.

— Ignoro-o. — E Ladice sacudiu os hombros.

— Em toda a festa, ha sempre uns typos exquisitos, valdevinos, presumpçosos, que gostam de chamar a attenção—sentenciou a sra. de Santo Hilario.

— Absolutamente, não me parecem um valdevinos, mamãe. Os seus gestos eram nobres e a sua cabeça magnifica. Creio ser um brasileiro, residente em Paris — accrescentou ella, victoriosa, pela sua ousadia.

— Com certeza, algum estroina. Esses rapazes que moram em Paris são, de ordinario, maridos pessimos — verberou, amarga, a baroneza.

— Mas, terrivelmente distinctos e interessantes — murmurou Ladice, quasi imperceptivel.

A sra. de Santo Hilario, porém, ouvinu-a e, com a sensibilidade e o tradicionalismo atrozmente feridos, exclamou:

— Custa-me a crer que gostes de tudo o que é fóra do commum, estravagante, viciado... do mal mesmo. É'-me summamente desolante essa verdade. Eduquei-te com severidade, e o que percebo, meu Deus?...

— Apenas tenho a coragem precisa para dizer a verdade. Mamãe exaggera. Afinal, que impropriedade disse? De resto, é a minha natureza, talvez algum atavismo...— E as suas palpebras baixaram, escondendo irritações.

— Mas, onde buscaste essas theorias? Falas-me em atavismo,.. Que póde elle com os exemplos, a bôa educação, os principios religiosos? Provens de uma familia de moral muito sã...

— Tanto melhor, nada terá que temer então; fallecem-me sómente forças sufficientes para torcer a minha verdade...

— As tuas frivolidades são bem assustadoras; a minha energia, porém, saberá dar-te juizo. E' por essa razão que anceio por te casar... Quando fôres dona de casa, mãe de familia, mulher modesta...

Ladice não se conteve; empuxada por uma desolação terrivel, horrorizada ante o destino opaco, fosco, burguez, que lhe preparavam, exclamou:

— Ah! mamãe acabarei detestando o casamento... Vejo que lhe sou a negação total... — E os seus olhos lacrimejavam...

Assustada, a baroneza interpellou-a:

— Mas, que revolta é essa? Então, suppunhas ser o casamento uma folia? Sou muito feliz, e o que tem sido a minha vida sinão isso? Choras porque te enumero as excellencias de um estado tão santo.

Como poderia Ladice passar á sua mãe as necessidades, as fendas luminosas, os vãos azues, os instinctos, a indisciplina poderosa de sua natureza para os esplendores, a morbidez lyrica, os venenos, a flexa rubra, candente, que atravessa os corações, o senso, as pulsações, onde moram a imaginação, o ardor, a ambição do além?

Ella não queria a calma, a monotonia, a passividade, as mesmas sequencias, a fome saciada de todos os casamentos...

Ella se queria surprehender deante do marido, a dizer-lhe de continuo:

— Tu me deslumbras.

Ella queria saudal-o, ao amanhecer, com as mesmas palavras da aurora á terra:

— “Vês, renasci...”

Ella queria, em os momentos de exaltação, clamar-lhe “faze de meu corpo a tua immortalidade; de meus cabellos o teu rythmo; de minha bôca o teu beijo”...

Ela queria dizer-lhe, á maneira de oração: “és a minha fixidez, o meu infinito, o meu ether... Para ti, é meu amor, tenho a fidelidade, a grande verdade da intuição”...

Profundamente dolorosa, Ladica respondeu-lhe:

— Infelizmente. somos dois contrastes: mamãe representa o typo idéal da mulher, que faz a felicidade do homem. Quanto a mim, só tenho defeitos...

— Ainda os confessas... Como, pois, te não corriges? E' incrivel essa resistencia ao erro...

Ladice dissera defeitos em attenção á sua mãe. Em seu intimo, considerava-os perfeições, extremos de excepção, os estigmas das paixões, das superioridades, as fontes de seu goso.

— Fraqueza de vontade... inercia... — explicou ella, evasiva,

— Emquanto estiveres sob meu dominio, farei todo o possivel para te endireitar, para te tornar uma mulker digna — proferiu, contrariada, a baroneza.

Ladice estremeceu, a essas palavras; ella percebia discussões sem termo, vigilancia dupla, coacção perenne.

— Lamento a sorte de teu futuro marido — concluiu, mordaz, a sra. de Santo Hilario, levantando-se.

— Se me casar por amor, serei rosa estonteante...

A sra, de Santo Hilario, irritada, voltou-se e disse, não a deixando terminar a phrase:

— Como são tolas as mulheres de hoje, só falam em amor. No meu tempo, uma moça não se atrevia a pronunciar essa palavra ao lado de sua mãe... E' bem uma éra de perdição... — E a porta fechou-se.

Ladice não podia pôr estorvo á tristeza minaz que se lhe agarrava ao senso; o sonho magnifico de sua juventude se desfazia... A atença radiosa, flammante, que se lhe librava sobre os atomos, qual prophecia divina, qual cubiça immensuravel e dourada, afastava-se, desapparecia. Os vampiros da decepção, do desalento, da ruina voejavram, sinistros, ao redor della, para lhe sugar a seiva dos instinctos, da vida physica, dos transbordos... “Meu Deus, antes a morte, antes a morte” — pensava ella,

— Mas, por que essas lagrimas? Não sabes, pois, que a dôr precede sempre o bem? Soffres agora para alcançares, mais tarde, a gloria, minha irmãzinha... — segredou-lhe Dinah, envolvendo-a em seus braços.

— Eu quero a gloria da terra...

— Que blasphemia Ladice — e Dinah tapou-lhe a bôca com a mão.

— Se fosse como tu, que tens tudo o que desejas... Por que não terei a tua fé? — E com vehemencia — Daria minha vida para crer e rezar como tu...

— Espera... Deus ainda te concederá essa bençam...

— Mas, Dinah, meu desejo é um peccado, um vituperio, uma coisa feita, um acto consummado, um gesto sem recúo... entendes? Ah! não me comprehendes... Sou uma impia, uma irresoluta; ha pouco, quiz a tua fé, e, quando me affirmas, solemne, que a conseguirei, tremo, preferindo meu mal...

As duas dirigiram-se para o salão que, a essas horas, estava solitario; Ladice, exhausta, atirou-se em o sofá; Dinah ajoelhou-se a seu lado.

— Mas, dize-me que mal é esse? — inquiria-lhe sua prima, receiosa, pensando que se tratava ainda de Theophilo.

— E´ elle, Dinah; as palavras de mamãe agiram em mim; a sua colera augmentou a saudade de meu amor... Ah! que solidão d'alma...— e Ladice soluçava...

—— Mas é preciso arrancares esse nome de teu sêr; é um crime, uma villania, que a Igreja não perdôa... Por piedade, esquece-o —implorava-lhe Dinah, ignorando totalmente a força dos sentimentos humanos, a sua vezania, o seu determinismo.

Depois de algum silencio, em attenção á sua innocencia, á sua candidez, á sua religião extrema, Ladice respondeu-lhe:

— Prometto nunca mais pensar nelle; tens razão, eile me não pertence. — Em falando de Theophilo para Dinah, ella nunca o chamava pelo nome.

Semanas, mezes se passavam, succediam-se...

Os pais da senhorinha de Santo Hilario continuavam no firme proposito de casarem-n´a com o dr. Assis.

Cada vez que o advogado os visitava, a sra. de Santo Hilario, mansa, agradavel, risonha, se dirigia á filha com phrases, que eram ordens veladas:

— Teu casamento agora depende de uma simples formalidade. Já o estimo como a um filho. Não poderias recusal-o... De resto, é a desejo de teu pai, e meu...

Ladice, pois, laborava em a sua propria infelicidade, qual cumplice consciente; fria, impassivel, calcava as consequencias terriveis que surgiriam desse acto, para sua sensibilidade extraordinaria. Todas as suas volições, revoltas, forças, se encontravam, bridadas, amarradas, vencidas pelo respeito, generosidado, temor, obediencia... Ella se resignava, entregava-se, dava-se, inteira, ás vontades de seus progenitores; ella caminhava para essa união tão contraria 208 seus sentimentos, fixa, suggestionada, morta, indifferente, apathica; ella se atirava para esse enlace com o dr. Francisco Everardo de Assis, angustiada, dolorosa, contorcionada, mas decidida, fatal, heroica, magnifica de abnegação e resoluções.

Ladice emmudecia seus tormentos: trazia-os fechados dentro das paredes do sêr, nos nervos, no cerebro.,.

A´ Dinah ella não ousava dizer, rasgar o espirito, o coração, o esboço ridente de suas fantasias; sua instrucção meramente religiosa, os horrores do Calvario, os martyrios des Santos, as perseguições brutaes aos christãos lhe haviam estancado, exhaurido, vazado a misericordia, a compaixão, a caridade para com as fraquezas humanas; ella se achava empedernida; ella se guiava pelo dever, pelos mandamentos, pelos dictames da Igreja; governava os sentidos, as sensações, como objectos concretos, fórmas vivas, corpos... comprehendia mal os ensinamentos divinos, deturpava-lhes a tenção, desfigurando-lhes o fundamento; não sentia esto aroma oleoso, este balsamo, esta flôr sempre viçosa, sempre nova, sempre dadivosa — piedade para o peccador.

Eram em as paginas de: seu “Diario” intimo que, ás vezes, Ladice, em traços largos, vincava a sua dôr:

“Junho:

Uma bôca fria, que deverei beijar!! Pertencer a um homem que, quando me diz sim, todo o meu sêr grita não, não, não... que horror!....

Parece-me que, quando perder o amore alojar a amizade, elle, o dr, Assis, só terá a quietude vazia de lampada apagada...

Seu olhar hoje, para mim, dizia-me: “adoro-te”, devolvi-o intacto; soffreu o movimento de ricochete...

Emquanto o olhava hoje, pensei: “que triste fado o meu... olhar para um homem como se olha para um muro, um movel, uma porta... a nuvem que passa, o horizonte, o arvoreda me interessam mais: teem um além, que minha curiosidade deseja...”

Tolo, entre mim e ti ha uma radiosidade e uma possibilidade: Theophilo ou um outro amor...”

Em sua alma principiavam: de vicejar ascabiesas, nostalgias estereis, cinzentas...

Da alegria ruidosa, das tardes escorregadias, das paisagens aprisionadas de sol, dos éstos interdictos e loucos, que moram na propria vida, Ladice extrahia melancolias acerbas, roazes; saudades do que deveria ser...

Certa noite, encarando um céo ardente, onde, já deformado, um crescente se embutia, á feição de legenda meio gasta pela civilização, ella inquiriu sua prima:

— Que sentes em noites assim? Ah! que oppressão...

— Calma, beatitude, mansidão... paz, muita paz...

— Ah! Dinah! — levando a mão ao coração, agitada — é como se me passasse pelos nervos o tropel de todos os infelizes mortos, não consolados... Como sinto a morte, a attracção pelo nada! — E Ladice, fremindo dos pés á cabeça, chegou-se para a companheira, que permanecera tesa, tranquilla, normal.

Em outro occasião, na rua, ao ouvir a musica ruidosa, farfalhante, de um batalhão que passava, com os olhos cheios de lagrimas, exclamou:

— Como a musica me faz mal!

O barão de Santo Hilario, que a ouvira, observou, mais tarde, á sua mulher:

— Acho bom que indagues da saude de Ladice; ella anda nervosa, por demais sensivel...

— E´ a approximação do noivado... Toda mulher soffre e se transforma nessa occasião... E´ muito natural...— retorquiu a baroneza, satisfeita.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.