Exaltação (1916)/2

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II CAPITULO

Esse amor, a principio, puro phenomeno cerebral, transformara-se em verdadeira paixão, por causa da natureza romantica, excepcional de Ladice.

Ella saira d'esse baptismo de dôr, d'essa ruptura de suas illusões, d'essa extincção insolita de fulgores, eivada de impaciencias, de exaggeros, de frenesis, de desequilibrios, até então nunca experimentados.

A sua sensibilidade mostrava-se inteiriça, estridente, ductil.

A alma se lhe patenteava aos sentidos como se lhe fôra objecto concreto, tangivel: parecia-lhe, ás vezes, possuil-a em as mãos, qual estria luminosa, a expandir-se, a retrahir-se, trabalhada por desejos multiplos e infinitos, avida de espaço, de extensões, de immensidades, de incidentes gloriosos...

Ladice sentia-se apertada no ambiente onde se movia.

Ella queria esquecer Theophilo, abafar os clamores de seu coração; avivar a generosidade, as excellencias, a nobreza que se lhe estagnavam em o caracter; arrear da consciencia esse sentimento peccaminoso, condemnado pela Igreja.

Para os homens, outras affeições, novos amores, esperanças ridentes, febricidades intensivas, que rasgam as seivas moças, ella tinha indifferença total, desanimo, crenças nullas, energias mortas; o futuro se lhe antolhava um vacuo monotono, uniforme, incolor; isento de interesse, de seducções, de abalos, de anceios continuos. Ella seria o silencio estuante, o impeto açaimado, passivo, acurvando-se.

Todas as suas demasias começavam de volver-se para os livros, para a natureza, o azul, a ramaria, os frutos, o lyrismo das manhãs, os crepuseulos nostalgicos. Ella se comprazia em seguir longamente, com os olhos, as voluias, as espiras que a nervosidade dos insectos gizava em o ar; espreitava, sorrindo, a marcha lenta dos escaravelhos; passando de folha em folha; invejava a liberdade do passaredo que esvoacava pelos cimos; surprehendia os cameleões extacticos, saciando-se de sol, de calor; estremecia de goso e do terror ao ver atravessar alguma touceira de bambú rapida cobra coralina..., á tarde, tinha sobre os hombros e o senso a mesma melancolia, a mesma oppressão que se agarra á terra, às horas.

— Meus Deus! — costumava ella dizer: — Pela manhã, sou uma inconsciente, que ri; ao cair da noite, porém, desço até a origem, o além das causas da vida...

João que se picava de ser fino psychologo feminino, havendo a sua estada no estrangeiro grandemente concorrido para isso, notava as transformações porque ella passava; achava-a mais mulher, com um jogo de claro e escuro, de tons severos e rubidos, cheia de flexibilidades estonteantes...

Certo dia, interrompendo-lhe uma das meditações, abeirou-se della:

— Em que pensas tu, virgem dolorosa?

— Em que deveria ter sido? — respondeu ella, suspirando, continuando a tecer grinaldas com as flôres dos trevos.

— E no que deverá ser? — interrogou-lhe João.

— Quero ignoral-o.

— A moça só pensa no futuro... Ainda não tens passado... — Acrescentou elle.

— Qu'importa, sou do ultimo momento.

— Voltaire era assim, e eu tambem... Mas tu, querida, não pódes; a tua idade não te deixa ter essa calma necessaria.

— À minha calma vem da indifferença...

— Como indifferença? tu que és qual naveta viva, solta no universo. Ah! já sei... Alguem te aborreceu hoje... E' por isso que não és tu mesma, Que ha? Conta-me. Minha tia ainda muito zangada?

— Mamãe sempre terrivelmente severa descobre o mal em tudo o que digo e faço... Acreditas que me prohibe ir á janella, apesar de distar da rua tres metros?

— E' risível... Não estamos mais em os tempos medievaes. Teus pais laboram em um grande erro. Mais tarde, a reacção póde ser violenta — accrescentou elle baixinho, como se falasse comsigo. — O casamento é uma prisão, porém mais branda. Espera, filha, e alcançarás certa liberdade...

— Ah! João, não pretendo casar-me...

— Mas, então, mudaste de opinião?

— E' que — parece-me, nunca hei de gostar de alguem...— Depois de uma pausa, recordando-se das linhas que escrevera em seu “Diario” — affirmo-te que nunca hei de amar...

— Mulher nenhuma veio ao mundo mais prodiga em encantos para a vida conjugal que tu, Ladice... — E João retinha em as mãos, as mãos floridas de sua prima.

— Dedicar-me-ei ás sciencias, estudarei philosophia,

— E teus pais? elles te casarão, apesar de ti. Tenho certeza de que não agirás, desde que mostrem o maximo empenho em te entregar ao primeiro mortal que appareça, cheio de dinheiro e de juizo...

— Talvez. Mas, nessas condições, terei toda a irritação do sacrificio involuntario. Entendes? Se me não separar, — accrescentou ella, esmigalhando as flores — será simplesmente por causa de minha natureza, de meus principios...

— E a sociedade?

— Sou d'ella, apenas um atomo isolado, alheio a tudo; vivo sob o meu sol, o meu unico destino, o meu pedaço de terra...

— Entras na vida com uma indifferença soberba. Entretanto, serias estrella em os salões...

— Não o desejo absolutamente. Seria uma ambicão futil, mesquinha... Quero ser a estrella — ajuntou sorrindo — de um coração, de uma eternidade, de dois olhos castanhos, febris, que se devem fechar assim...— e ella imitou a maneira de olhar de Theophilo.

— E dos meus? elles te não satisfazem?

— Não; percebo-lhes vestigios de mil estrellas que por ahi passaram — respondeu ella com malicia fingindo examinal-os,

— Enganas-te, gosaram; mas não amaram,

— E' difficil de comprehender. Como se póde, pois, gosar sem amar? Não atino...

— Gosaram pela belleza, pelas paisagens, pela arte, que viram... Mas não amaram. Sentes a differença? — proferiu João, retractando-se, recordando-se que conversava com uma virgem, não inteirada em os mysterios da vida.

— Dizem que és tão estravagante...

— Aqui em casa, naturalmente. Que entendes por isso?

— Que todas as noites vais ao theatro; que conversas com as actrizes; que gostas de tomar champanha até tarde em os cafés; que recebes cartas femininas; que envias flôres...

E ella parou, contando nos dedos, á medida que falava, e pontilhando cada phrase com um mover ironico dos labios.

— À quem? acaba.

— Não sei... — E sacudiu os hombros,

— E', de resto, a vida de todo homem solteiro. Que mal ha nisso? Dize...

— Nenhum, deve ser deliciosa... — mudando de tom — Ah! João, se eu fosse artista! E' preciso que me dedique, morra em alguma coisa, completamente...

— Artista, não; seria a tua ruina moral, apesar de um successo enorme. Tens estructura para isso; és felina, amorosa, tragica. — E João sentia em o sangue o valor desse perfil extraordinario.

— Surge-me uma grande necessidade de um interesse vital, que me absorva.

— Sê pintora, por exemplo — acudiu João.

— E' muito lento, muito tranquillo...

— Preferes as mutações violentas, o que te consiga desarranjar os nervos, não é?

— Venero a morte, porque destróe — proferiu ella, de pupillas fixas.

João olhou-a Jongamente. Ella lhe apparecia como sendo um typo perfeito do mulher: exquisito, singular, com scintiliações de imprevisto, de inedito. Lembrava-lhe certas figuras femininas vistas em alguns salões estrangeiros.

— E´s venenosa...— disse, olhando-a obliquamente.

Ladice soltou uma gargalhada...

— Apenas infeliz, e amante da felicidade.

— O teu soffrer agora é mera fantasia; paira-te na palavra e no olhar sómente...

— No meu coração e na minha alma, João.

— Mais tarde, conhecel-os-ás, elle te será, então, real, sentido, descerá aos tens extremos e te será bemdito.

— Ah! que horror!

— Ele te dará perfeições. As tuas morbidezas florirão... Serás, sobretudo, para os artistas, como aquella divindade grega, deante de cuja effige ninguem passava sem fazer um gesto de adoração.

O enthusiasmo de João a subjugava. Ladice, sem penetrar no amago das palavras que ouvia, sentia-se, entretanto, orgulhosa; a sua vaidade palpitava.

— Por emqtanto, não tens sombras, nem échos, nem vestigios de coisas que já foram vivas... E's ainda fruto muito verde... és luz intensa...

Ladice era sensivel á fascimação mysteriosa d'essas phrases, mas em seu intimo repetia: “Eu sou a Doida de meu Poeta” e alto exclamou:

— Sou o beijo de Magdalena, a arder nos pés de Christo...

— Retém, porém, o que elle ha de melhor: fidelidade eterna... — parecia-lhe dizer o que guardava em o pensamento “E's o beijo mystico, és o beijo peccaminoso”.

A subtileza de Ladice o emmaranhava inconscientemente:

— O mundo, com todo o seu mal victorioso e o seu vicio triumphante, as suas injustiças e aberrações, é, em todo caso, preferivel ás doçuras de um convento...

— Imagina tu, Jean, uma freirinha de porcellana, a fazer flôres pela manhã, e, á tardinha, a dobrar-se ante o Crucificado qual flexazinha de onro, a dizer: — “Morri por vós”... Vem cá, Dinah, responde — Dinah chegára é porta — a ver tudo através de olhares de beatitudes seraphicas, como os da São Boaventura. — Ella se recordára de seu confessor.

— Rezar muito, pedir ao Cêo perdão para os peccadores, alliviar os pobres e trazer Deus dentro de si, como uma força de alegria — acerescentou Dinah — é bem uma tarefa divina.

— Esta sim, é visão branca, é toda do Céo — disse João, abraçando-a.

— E' piedosa e pura, será “Soror Angelica” — replicou Ladice.

— Não exaggerem; apenas tenho muito bons desejos — explicou ella.

— Quando tomarás o vêo? — indagou-lhe João.

— Não sei, mais tarde; ainda não tenho licença; é preciso preparar de manso...

— E' uma impiedade calcar com a fé a exuberancia de uma seiva moça. Não te perturba a certeza de que o teu eu, a tua raça, acabará comtigo, que além de ti nada mais haverá de ti? — interrogou seu primo.

— Não cogito dessas questões... não me interessam; obedeço a uma vocação poderosa — retorquiu elia, embaraçada.

— Que coisa esplendida ser a ultima de uma geração, a ultima de si mesmo... Levar para a terra todos os fins...— exclamou Ladice.

— Tu, Ladice, serás mãe — sentenciou-lhe João, abrupto.

— Que tolice; tens cada ideia!—E a virgem enrubescendo, baixou os olhos, envergonhada.

— Por que este gesto? Aos dezoito annos já pódes ouvir essas palavras... — verberou elle, segurando-lhe o pulso.

— Ladice, são horas de vestir para o jantar—proferiu a sra. de Santo Hilario, assomando á porta.

O sr. Dalmada levantou-se, beijou-lhe a mão e acompanhou-a até a janella.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.