Exaltação (1916)/6

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VI CAPITULO

Ha dous annos que Ladice está casada.

A sua juventude desdobrava-se, detinha-se, immobilizava-se para a vida, ávida, soberba, profunda, tensa, impregnada de solidões e vontades superiores, absolutas, classicas, radiosas. Por vezes, cerrando os olhos a meio, premendo as mãos, exclamava: “Meu Deus, é a vida que vem a mim, que depõe em meu senso seus desejos inarticulados... O dia dá-me o som de sou ardor, a força de suas mutações amorosas... O crepusculo mo derrama no coração a nostalgia ardente de instinctos que resistem á morte... A noite me atira as suas trevas sobre o corpo frio, dizendo-me: Ama; ama; mas, porque não amas?... As estrellas em côro me murmuram : Espera, espera. Pan será teu,” Oh! Vida, tu que foste a luxuria artistica de Dionysio, o Pão Lyrico de S. Francisco de Assis, a frivolidade vaidosa de Maria Antonietta, a disciplina aspera e mystica de Sor Felippa do Espirito Santo, a exaltação da perfeição de Nietzsche, afasta-te, desvia-te, esconde de mim o teu encantamento lancinante... Quero a vida da planta, da rocha, do veio d'agua... sem ancia, sem aspirações, sem o tormento incisivo que fura os céos...”

Ela se inclinava para a vida, para o universo, como a gente se inclina para os espelhos, para os lagos: ella discernia, ella propria, o seu riso, o seu segredo, a sombra de seus cabellos apaixonados, alens côr de oiro, vibrações ignotas, impaciencias, cohortes de volupias insanas, a ebriez do bem e do mal...

Parecia-lhe, ás vezes, que suas mãos brancas misturavam as horas, o espaço, o tempo, a marcha dos dias e das noites, a estabilidade do passado, os movimentos do futuro... E ella então pairava, só, isolada, no vacuo esvaziado, como a violencia que não morre, como a seiva ignea de todas as origens, dos principios, das formações; como a voz ingente, poderosa annunciadora de um determinismo que não se deixa estrangular... Por amôr a Theophilo, agia-lhe na alma, a alma multiforme, incomprehensivel, pagã, inextricavel, desconhecida das cousas informes, brutas, insensiveis; a alma da vallada, do silencio, das alturas... Ella tinha nos nervos todas as dôres soberanas. — Seu desejo, sua ardencia, após estiramentos e alaridos infructiferos, vinham-lhe de retorno para as cellulas, submissos, humilhados... Seu romantismo, seus sabores lividos de estheta encolhiam-se amotinados, guardavam-se-lhe em as paredes do cerebro. Sua hysteria para conseguir do Poeta bem amado, a delicia que mata, recuava até aos limites do ser como para bastides de bronze e aço...

Durante esses dous annos, Ladice vivera a phrase de Schiller: — Ousa enganar-te e sonhar.

Ella se entregara inteira, a esses sonhos que eram os contornos, a massa, a essencia das realidades, que lhe deviam vestir o senso, o espirito; que lhe deviam estar sempre ao alcance dos labios, das mãos, dos olhos, do perfil...

Vivera de esperanças saidas de esperanças: todas as noites dizia: “Amanhã, terei uma surpresa...” E essa certeza sem base, frouxa, falha de raciocinio, mas, profundamente inveterada, agia dentro della como excitante, invadia-lhe as pulsações, as energias, enchendo-as de estimulos, de victorias...

Algumas observações de seu “Diario” escriptas n'esse intervallo:

“No casamento sem amôr, nossos actos obe-
"decem a uma disciplina mental: nada é espontaneo,
“nem imprevisto, nem louco: Tudo é calculado; é um
“verdadeiro theorema...”

“Tornei-me impuramente curiosa... Entretanto,
“quantas vezes hei dito: — não!

“Sou a figura de porcellana da casa, o perfil ri-
“sonho e pungente de Francisco, a sua “curiosidade
“dolorosa” como elle me chama; todos me tratam
“com amôr, deferencias, cuidados como se eu fôra
“qualquer cousa de differente, de superior, de admi-
“ravel: Sinto o que os outros não sentem; não sou
“como os outros são... Meu coração é a flor san-
“guinea de um mysterio inexplicavel: abençôo os
“amantes que de cabeças transtornadas juntam as
“bôcas com soffreguidão... Perdôo o abraço rapido,
“apertado, divino, que identifica, que mata... Choro
“a mocidade que passa, e não volta mais... Lastimo
“a seiva enrugada, senil, tropega, que a desillusão
“amorteceu, secou... Adoro Heraclito de Ephoso “porque diz “que a nossa alma é um producto do fogo,
“é um sopro que passa”. —Venero Leucate como sendo
“a reliquia immortal de um astro inflammado...”

“Não tenho amor, não tenho amantes... Sou,
“portanto, virgem ainda...”

“Quando penso em Theophilo, a caricia me vem
“como um perfume, Tontea-me, offusca-me, é por de-
“mais branca e luminosa...”

“Ha dias em que todos os gestos de Francisco me
“irritam, apesar de mim; hoje, por exemplo, falei-
“lhe todo o tempo de cara virada, pretestando arran-
“jar uns livros...”

“Hoje não estás tão fria? — exclamou Fran-
“cisco, recebendo o meu beijo. — E´ que Theophilo
“me relampeou inexperadamente o ser como um de-
“monio...”

“Sexta-feira da Paixão fiz o seguinte voto: devo
“amar meu marido acima de todas as cousas”; re-
“peti essas palavras durante horas afim de graval-as
“em meus sentidos. Fiquei solemne, austera, despro-
“vida de horizontes, de futuros, de infinitos... Pa-
“recia-me carregar o peso do universo, 08 cinco pés
“de uma muasmorra dentro e fóra de mim... Mãe ad-
“miravel, orai por mim!...”

“Oh a grande Vaidade de se ter, nas mãos, um
“destino, uma vida, um amôr total...”

“Francisco no amôr é delicado, sensivel, respei-
“toso... Se eu amasse, haveria de ser com estridor,
“com raiva, com eclosões terríveis o selvagens: —
“Seria o amôr do poeta que traz dentro de si, as con-
“torsões da natureza em trabalho...”

“Oh, o tedio do casamento sem amôr: ser-se bei-
“jada à todo instante...

“Hoje, annos de Francisco; cumulei-o de gentile-
“zas, de carinhos, de deferencias provindas da von-
“tade, da gratidão: faltava-lhe calor, malleabilidado,
“fusão: não levavam fragmentos de mim...”

“Sinto Francisco inteiro em suas carícias: dir-se-
“ia que sua alma liquefeita me cobre, me envolve
“como uma onda...”

“Minha casa é tranquilla, parece ser de crystal,
“porque as suas “sombras têm luz” no dizer de Fran-
“cisco, referindo-se á minha presença, que tudo illu-
“mina”

“Inebrio-me de liberdade e de dominio: — Pas-
“seei, vaguei por onde quiz, demorei-me a borda do
“mar... Vi gaivotas e agua a estreitarem-se lasci-
"vas..."

“A minha paixão pelas flôres, Francisco acha-a
“muito poetica, porém, exaggerada. O dormir com
“rosas ou violetas sobre o travesseiro é uma estrava-
“gancia com a qual ainda não se habituou...”

“Nunca és a mesma... és a mais estranha das
“mulheres... ainda te não comprehendi.:.” — disse-
“me Francisco sério, segurando-me as mãos. Respon-
“di-lhe: — “Nasci á meia-noite; trago a mutação no
“ser, O que foi, o que será, o que morre, o que nasce...
“Em criança á hora do crepuseulo, quando o céo se in-
“flammava repentino, quando a terra exhausta, emmu-
“decia e os sapos, os grillos, as rãs, as corujas em
“epicedios funebres e plangentes lamentavam a perda
“do dia e saudavam o renascimento da noite, eu cho
“rava e fremia sem saber porque...” n´esse momento,
“com reverencia elle abraçou-me longamente...”

“A amizade tão brilhante e considerada em outras
“occasiões, torna-se no casamento, um sentimento bur-
“guez, igual, que não augmenta, nem diminue, inal-
“teravel, qual lago de aguas estagnadas...”

“E´ teu dever, — disse-me Francisco. Não co-
“nheço essa palavra — retorqui-lhe — só obedeço á
“minha vontade...” Elle accendeu o cigarro, e afas-
“tou-se silencioso...”

“Os homens nada respeitam... Jorge, grande
“amigo de Francisco, quiz abraçar-me. A uma mulher
“casada não se abraça, Snr. Jorge — exclamei, fre-
“mindo de dignidade; elle baixou os olhos e balbuciou
“perplexo: “Perdão”.

“Ha tres dias que Jorge não apparece... Elle
“que vinha todas as noites...”

“D. Ladice queira desculpar a minha loucura...
“Sejamos dous irmãos—” e Jorge offereceu-me lin-
“das rosas. “Acceito-as como de um irmão” — disse-
“lhe eu. “Sim, como de um irmão” — repetiu elle
“sorrindo,”

“Sempre trocamos flôres, accrescentando — como
“de um irmão, como de uma irmã; do contrario,
“seria uma traição...”

“Meu Deus, porque nas noites de Septembro,
“quando a harmonia azul da Primavera se arremessa
“festiva sobre a terra, fazeis vós subir, subir ás gar-
“pantas jovens, a delicia mortal? A noite palpitava,
“as estrellas ardiam, as frondes tomavam a forma de
“corações que se dão: o ardor me fixava no sangue, “qual interjeição turbulenta: — A bôca sã, os labios
“rubros de Jorge me perseguiam, me attrahiam...
“Tomei um romance, puz-me a lel-o, longe delle, sem
“ousar olhal-o... Fiona vertiginosa; a vista se me
“escureceu; o livro rolou-me dos joelhos... Francisco
“accorreu... Jorge susteve-me a cabeça, meus ca-
“bellos se desfizeram... Levantei-me, segurei Fran-
“cisco pelo braço, voltei-me severa para Jorge: “Não
me toque.” E em resposta á Francisco assustado:
“Não é nada, é o calor...” Deixei a sala... Não foi
“peccado, não foi deslealdade. Foi o grito impetuoso,
“inconsciente de uma natureza moça encharcada de
“amôr e não amando!... Oh! alma infeliz, a felici-
“dade te é interdicta..,”

“Não quero flôres todos os dias... Os irmãos se
“não presenteam assim, diariamente” — observei eu
“hoje a Jorge. Elle me soltou um olhar profundo e
“ajuntou: “Que a sua vontade se faça...”

“Não sei porque, depois que nos não presenteamos
“mais, temos mais liberdade, mais franqueza no falar.
“Elle me conta todas as suas infelicidades elegantes e
“rimo-nos muito. Francisco diz que somos duas
“creanças...”

“O seu traço dominante é serpentino; os seus bra-
“ços, o seu dorso, a sua silhueta, os seus cabellos teem
“gestos de serpente fugidia — disse-me Jorge, exami-
“nando-me com os olhos: — “Não é absolutamente um
"artista" — repliquei — “Sim, mas um connaisseur — accrescentou elle, rindo-se."

“Nunca vivo só” — respondeu Jorge com um
“olhar de aço, a uma observação minha sobre o ca-
“samento. — “Porque me diz tal cousa? — objectei-
“lhe, empallidecendo, dominando o sangue as palpita-
“ções. — “Que mal ha n´isso, se é minha irmã e ca-
“sada? — retorquiu elle, calmo.”

“Serão todos os irmãos assim amaveis como
“Jorge? Hoje, á tarde, pelo espelho vi-o mergulhar a
“bôca em umas violetas que haviam estado em minha
“cintura: “Snr. Jorge, as minhas flôres? — inquiri-
“lhe assim mesmo de costas viradas. “Como são ado-
“raveis as violetas, que vão morrer no seio de uma
“irmã — exclamou elle, beijando-as.”

“Ha um certo tempo que lhe noto, no olhar, uma
“fome que grita até nas mãos — ajuntou Jorge. —
“Uma fome?” — repeti. — “Sim, uma fome, — disse
“elle emphatico, fixando-me. — “E´ a fome da morte”
“— murmurei—, dando-lhe o perfil, baixando as pal-
“pebras, metalizando-me integral, atravessada de
“sôpros obliquos. — “Sim, da morte simulada,
“d´aquella que é um veneno...— balbuciou elle, entre
“dentes,—comprehendendo perfeitamente esses males
“intimos... O amôr em uma natureza burgueza não
“se renova, não rompe monotonias, não offerece inedi-
“tismos extraordinarios... E seus nervos, Senhora
“Ladice, são como os nervos immateriaes das tormen-
“tas, dos cataclysmos,.. Devia ter sido minha” —
“exclamou elle, depois de uma pausa. — “Sua, ah! que
“horror!” — bradei surprehendida, pensando em
Theophilo. — “Minha, porque não?”—inquiriu elle
“lento, pallido, sem sangue, os bigodes e os
cabellos
“ainda mais negros.— “Porque não o amo” — res-
pondi, sem encaral-o. — “Mas deseja-me”, — ac-
“crescentou elle, pausadamente; as pupilas immoveis.
"—Esquece-se de que é meu irmão... Estimo-o; mas
“não o desejo” — atalhei firme, glacial, sentindo no
“coração os rythmos do meu Poeta adorado e ausente.
— “E´ deveras singular... — disse elle, despedindo-
“se. — Tenha pena de um irmão que sofire...” E
“beijou-me a mão.”

“Ah, como é detestavel o habito! Como, durmo,
“levanto-me... Debalde espero pelos esplendores in-
“terdictos que me surgirão das entranhas dos dias e
“das horas...”

“Amôr, Cupido, Eros, o meu coração nú, fresco,
“faminto, abre-se ás vossas flexas hervadas, á vossa
“raiva florida, ás vossas ciladas efficazes...

“Thêo, Thêo, a vertigem se agarra a mim...
“Minha boca está na tua boca, o vampirismo do
“meu ser pelo teu ser, te suga, te sorve, te destróe...
“Ah! vives em meu senso, como efflorescencias
igneas...”

“Estás pallida... ha traços violetas sob os lindos
“olhos” — observou-me Francisco esta tarde...

“Vivi uma loucura, amei o meu amôr pelas rosas:
“tive d´ellas sobre o corpo branco e fino, seu extase
“divino... No concavo das mãos, ao longo dos bra-
“ços, nos hombros, pelos cabellos debruando-me as
“linhas, separando-me os dedos, no perfil, na boca,
“nos olhos, presas nos dentes, rosas, em abundancia,
“rosas lividas, roseas, escarlates... As rosas da ma-
“nhã a sangrar ardores; as rosas estranhas, violadas
“pela noite; as rosas passivas das sombras; as rosas
“despedaçadas de lascivia; as rosas morbidas, desfei-
“tes; as rosas virgens avidas a dizer:— “Acaricia-
“me.” Eu era a Rosa de todas as rosas, a Rosa de
“Vida, a Rosa de Amôr, a Rosa Immutavel que se
“não desfelha; a Rosa Organica de um desejo selva-
“gem e immensuravel...

“— Li um longo capitulo sobre a Paixão amo-
“rosa, talvez seja por causa d´isso...— respondi-lhe,
“debruçando-me sobre a janella,— “De escriptor
““francez?” — inquiriu-me elle. — “Não sei; é de
“Theophilo... Não me recordo o outro nome” — e
“uma alegria feroz, maligna me dansava nos musculos,
“ao atirar entre mim é elle essa palavra. de sons ter-
“riveis...”

“O marido não amado” é o vigia mais esperto da
“realidade: a mulher desce constantemente do ideal;
“baixa sempre das alturas...”

“A mulher deve amoldar-se ao esposo” — profe-
“riu-me Francisco em conversa— “Eu, por mim. não
“trarei marcas de seres alheios: — Sou passaro de
“passagem. Sou substancia inaccéssa” — sentenciei,
“— E´s uma grega bravia” — replicou elle, com ad-
“miração.”

“Theophilo, és o Atlante que me segura a virtu-
“de: emquanto aprumava umas flôres que tombavam,
“Jorge, de subito passou-me o braço pelo pescoço e
“beijou-me furioso, a boca, essa boca que pertence
“ao meu Amor, — “Impudente, covarde. Um homem
“de caracter não procede assim...” bradei: “Mata-
“me, mas não me insultes” — disse elle, offegante,
“extendendo-me, na palma da mão, um revólver.”

“N´esse momento entrou Francisco. — “Um re-
“volver?” — interrogou elle. — “Sim, é um modelo
“novo” que estou mostrando á Senhora Ladice,” —
“respondeu Jorge, pallido, contrafeito. Tomando-o
“disse: — “E´ lindo, é artistico... Snr. Jorge, vou
“experimental-o, prepare-se...” — E rindo muito
“fiz menção de atiral-o: — “Estás louca, La-
dice” — exclamou Francisco apprehensivo, reparando
“na attitude de seu amigo, grave, os pés unidos, ao
“geito de quem espera. — “Não vês, que é brinque-
“do?...— E virando-me para Jorge, murmurei-lhe,
“baixinho: “uma irmãzinha defende; não mata o ir-
“mão...” — E passei-lhe a arma fatidica. De longe
“ella me articulou um “obrigado”. O resto da noite,
“pastei-o em sileneio...”

“E´ desolante ter-se em o pensamento um pecca-
“do que não se quer... Meu Deus, vós que sois a Po-
“tencia Suprema, soccorrei-me, apagai o meu mal in-
“voluntario; fazei com que, ao em vez delle, me
“desabroche no intimo, a face ardendo de luz de Frei
“Martinho, o Leigo...— O beijo de Jorge permanece
“queimante em meus labios; decompõe-me os senti-
“dos... Vejo-lhe a perfeição, a totalidade, o processo
“admiravel, o rythmo mysterioso... Senhor, tende
“piedade de mim...”

“Apenas respondo ás perguntas de Jorge.”

“Jorge emmagrece.”

“Jorge agora veste-se com grande elegancia.
“Disse-me hoje que
está virtualmente enamorado de
“uma “chanteusé à voix”. Dei-lhe os parabens.

“Não tenho adoração para com o homem” — lan-
“cei eu desdenhasa essa phrase a Jorge. — “E´ uma
“finura, uma brilhante excepção... é por isso mesmo
“que me attrahe, — aecrescentou elle, muito calmo,
“serio, a enrolar um cigarro.”

“Não acredito absolutamente na virtude das mu-
“lheres”, — objectou-me Jorge. — “Entretanto, teve
“provas em contrario” — respondi-lhe, orgulhosa. —
“Ah! sim... Mas, presamo haver algum motivo es-
“condido” — verberou elle ironico, a sorrir.”

“Jorge hoje, quando entrou, estava fluidico, ner-
“voso, agitado, parecia ter um demonio no olhar. Du-
“rante uma hora, conservou-se calado, a fumar. De
“repente levantou-se, veio a mim e disse-me abrupto:
““Não sou mais seu irmão... Quero ser seu amante.”
“Percebendo o terror de mens olhos, o gesto prompto
“de repulsa decisiva, gritou-me: —“ Foge, foge, des-
“apparece...” De um salto alcancei a porta, e não
“mais o vi. Oh a loucura faminta de desejo !...”

“Ha sete dias que Jorge não vem. Francisco está
“com cuidado, attribue á doença.”

“Mamãe, hojo me disse á guisa de conselho: —
“Não sei porque teu marido admitte na intimidade
“um rapaz moço e insinuente como Jorge... E´ um
“perigo... Incommodam-me as suas idas diarias á
“tua casa...” — “Jorge é como irmão de Francisco.”
“— respondi-lhe — e depois não sou nenhuma levia-
“na... Nunca poderia gostar de Jorge... accrescen-
“tei.— “Tens razão, o coração da mulher casada é
“mudo; é todo do marido” — ajuntou Mamãe, satis-
"feita de meu muito juizo.”

“Após dez dias de ausencia, Jorge appareceu.
“Disse a Francisco que estivera doente, de cama, com
“muita febre. Apenas lhe apertei a mão.”

“Quasi não falo a Jorge. Dou-lhe sempre as
“costas.”

“Maltratas a Jorge, não trocas palavras com
“elle; ignoro a razão “— reprimendou-me Francisco,
“— Estou fatigada de sua conversa. Não o acho in-
“telligente” — desculpei-me assim, tomada de impro-
“viso.— “Jorge é muito distincto; fez um curso bri-
“lhante na Escola Polytechnica; e, além d´isso, somos
“amigos desde a infancia; devo-lhe um grande favor;
“foi-me enfermeiro, quando apanhei o typho. Peço-te
“lhe testemunhes maxima estima”, — finalizou elle”

“Minha irmã, perdôa-me, perdôa-me, endoideço
“assim sem ouvir-lhe a voz, sem lhe saber do espirito,
“sem lhe sentir o olhar... O desejo do homem não é
“a vontade mansa, colorida da mulher... Elle é tene-
“broso, impulsivo, colerico como a sofreguidão rapa-
“ciosa dos naufragos... Perdôa-me, oh, perdôa-me...”
“Nos olhos de Jorge surdiam lagrimas. Extendi-lhe
“as mãos e elle curvou-se em reverencia profunda e
“respeitosa.”

“Os dias me fatigam, as horas descem; pousam-
“se sobre mim; quedam-se em mim, como cousas que
“so não querem ir embora...”

“Dous annos de casamento: dous annos de uni-
“formidade, de mutações immutaveis..."

“Oh! Thêo! Oh! minha desordem magnifica,
“então não vens? Toma-me, dou-me à ti...” Meus
“olhos se fecharam, e eu inteira me inclinava para “a frente, o dorso em arco, havendo o mesmo gesto de
“Sappho orando á Aphrodite...”

“Os jornaes acolhem com louvores um novo livro
“de Theophilo. Céos, a exaltação me sobe e desce no
“sangue como a raiva amorosa de uma força crea-
“dora... Hoje o dia inteiro disse sim a todas as per-
“guntas de Francisco, afim de lhe não ouvir mais a
“voz, de lhe não provocar outros assumptos...”

“Principio a entristecer-me, a impacientar-me...”

“Meu Deus, dai-me o meu Amôr, e nada mais
“Vos pedirei... Vós qme tudo podeis, ouvi-me...”

“Jorge parece haver calcado o seu amor; disse-
“me: — “Minha irmã, é preciso tratar-se... Começa
“de emmagrecer... Tem necessidade de diversões...”
"—“A alegria, o ruido da vida me fazem mal”— res-
“pondi-lhe com a voz sonora, quente, contida...
“Olhou-me, mencou a cabeça: “Percebo, teme a vida, “pois, não é?...”

“Para a alma infeliz, a solidão é azul, é coração
“dadivoso e amante, é a sombra da vertigem, da ar-
“dencia, da incitação... Não, não frequentarei a so-
“ciedade... A solidão me é ums volupia...”

“Jorge me trouxe uma revista ingleza, mostran-
“do-me uma gravura, disse-me: — “E´ tão linda como
“essa figura aqui,” porém tem mais que ela — a
“inteligencia... — Depois continuou — E´ uma in-
“telligencia estranha a sua... ás vezes, em casa, tento
“analysal-a, e então desnudo-a totalmente e fico des-
“lumbrado, incapaz de proseguir...” — Oh! phrase
“ambigua, ferina, bi-partida, qual lingua de serpen-
“te... Jorge tem ditos que possuem a rapidez, a acção, “o salto, o immediato, o instantaneo de bote de ani-
mal..."

“Jorge vai em viagem de inspecção para o in-
“terior: a sua ausencia será de quinze dias a um mez.
“Está desolado. Beijou-me as mãos e offereceu-me
“petunias: — “Estará em mim, em tudo”. — Foram
“as suas ultimas palavras.”

“Sem Jorge, sem o imprevisto de suas respostas
“e observações mordazes, a vida torna-se-me insup-
“portavel...”

“Eu e Francisco em “tête-a-tête” constante...
“Por tempos a maldade, a ironia me governam. Af-
“firmo-lhe então o que nego e exalto-lhe o que de-
“testo, e faço-o simplesmente por amôr a não sei que
“máo espirito... E, cousa singular, experimento um
“prazer vivo, feroz...”

“Ah, o tormento de uma vida vazia! Ah, a ago-
“nia de se falsificar eternamente! Oh, a vontade allu-
“cinante de chegar-me a Francisco e dizer-lhe: —
“Não sou tua; não te amo; vou para o meu amôr...
“Os meus carinhos são feitos de caridade; são esmolas
“de uma bondade; são mudos, frios, mortos... Eu te
“não amo...”

“Hoje exultei, Senhor, pensando que a existencia
“me está nas mãos... Sou... emquanto quero...”

“São dez horas da noite: — Encontro-me estira-
“da num sofá, numa varanda aberta, despida... A
“lua cheia me acaricia... Penso que a caricia dos
“mortos deve ser assim, sem culminancias, sem o calor
“da materia, sem as solicitudes da vida...”

“Senhor, será possivel, que meus dias se suc-
“cedam sombrios, planos, sem anarchias, sem bulha
“de nervos, sem a delicia que é o apogêo de nós outras
“mulheres?...”

“Hoje quinze de Agosto, a Gloria. Oh! Maria.
“Mãe da humanidade, desdobro-vos aos pês a minha
"dôr..."

“Sinto-me doente. Francisco insiste para que vá
“ao medico. Que póde a medicina com o meu mal?”

“Prescrevem-me passeios, excursões, ar fresco das
“montanhas... Rio-me. Pobre argucia medica, não
“vaes além da physiologia...”

“Tenho a noite na alma... Não escreverei mais...
“Fecho-te, oh! meu “Diario” atê ao Triumpho...”

“Thêo! Thêo! és o grito vivo, tenaz, persistente,
“troando n´estas paginas em branco, durante o espaço,
“o interregno que me separam de ti...”

A sua atença luminosa por esplendores imaginados, por fastos, e realidades onde ella pudesse estampar as suas volições, as taras de sua sensibilidade, a raiva eversiva de seu amôr, se obumbrava... A vida baixava-se-lhe até aos hombros, até ás mãos, á guisa de um manto escuro e lasso...

As cartas que recebia de João, davam-lhe prazer momentaneo; acceleravam-lhe, rapido, a circulação; eram-lhe grandes motivos... Lendo-as, ella se dizia: “Talvez seus olhos, referindo-se a Theophilo, parassem aqui..." Talvez seus dedos tocassem aqui...”

Pura se distrahir, emprehendia longos passeios em companhia de Dinah.

A´s vezes de volta do Sylvestre, quasi á hora do crepusculo, guando, no horizonte, flammas se baralham, quando as nuvens perdem a fórma, seus olhos agoniados volviam-se, inscios, á procura de outros olhos...

De retorno da Tijuca, após haver tido aos pés, a cidade, o mar, as montanhas, o engenho humano, o bem, o mal de todo um povo, o grito da vida que é, o gemido da vida que se vai em gesto de sujeição, de dependencia, de preito, homenagem silenciosa da terra, da força, dos seus somelhantes, das cousas insensiveis á sua perfeição, á sua intelligencia, aos seus estos magnificos... Ladice chorava...

Ao descobrir em lugares esconsos, pares em idyllio, em doce colloquio, um soluço morria-lhe na garganta, as mãos se lhe gelavam...

A Senhora de Assis passou ainda alguns mezes n´esse estado de inercia, de indolencia, onde um romantismo doentio avultava...

— “Dentro de tres annos, Theophilo deverá regressar — repetia Ladice a si mesmo, rememorando-se da phrase de João, dita ha quatro annos atrás. — “Está na epocha — exclamava experimentando sensações anomalas: dir-se-ia que os sentidos se lhe abriam, volviam á luz: parecia despertar, voltear sobre si, ebria, tonta...

Mais alguns dias e a Senhora de Ássis leu em um jornal a noticia da proxima chegada do Vate bem amado.

A certeza de ver Theophilo em breve, na mesma cidade, fazia-lhe esgotar, de uma só vez, a vida, a saude, a effervescencia, o triumpho, a abundancia, o deslumbramento... Ella não era mais ella mesma; não estancava os assumptos férvidos, que se lhe desencolhiam na imaginação, nem as energias da mocidade que se lhe deslisavum festivas: “Gloria em mim!” dizia resoante, como se em as veias lhe pulsassem corações innumeraveis de crystal...

Era preciso sair, ter sobre a alegria desordenada, sobre o corpo em eclosões de riso, o azul, a radiosidade, a caricia envolvente do espaço; Ladice vestiu-se e dirigiu-se para a casa de sua mãe, em busca de Dinah.

Na rua, com os olhos semi-cerrados, sorria a belleza liquida, estimulante, das montanhas, do arvoredo, das pupiltas curiosas dos homens que passavam...

— Ha muito tempo que te não vejo assim rosada, sã — observou-lhe a Senhora de Sant´Hilario, admirando-lhe o vestido.

— Effeitos de um tratamento bem dirigido, — E a sua boca se abria em um gargalhar largo, sonoroso. — Vim atrás de Dinah... Logo mais jantarei contigo — ajuntou ella levantando-se, encaminhando-se para o quarto de sua prima.

— Ah! que rosas esplendidas! — exclamou, detendo-se. — You tirar algumas — e, pregando-as no corpete — assemelham-se a chagas de bem-aventurados... Naturalmente hão de destillar milagres, consolos, curas extraordinarias...

— Ainda não perdeste essas phantasias...— retorquiu a Baroneza.

— A arte é immortal, é inveterada — sentenciou a Sra. de Assis, séria.

Relanceando os olhos pelas mesas:

— Que bronze perfeito! E´ novo? ainda o não tinha visto — e nas suas mãos rodava lentamente uma estatueta magnifica, 1º premio do “Salon”.

— Tenho-a, já ha algum tempo — respondeu-lhe sua mãe.

Ladice, inteira, muda, sem ouvil-a, reverente, em attitude de adoração, se immobilizava deante d´essa figura incomparavel, que representava a “Convulsão”: Era uma mulher, esguia, estrebuchante, de linhas morbidas e membros escorregadios, deitada obliquamente sobre uma pelle de panthera; os cabellos descidos, emmaranhavam-se-lhe nas curvas finas dos hombros; a cabeça fatigada, caida, servia-lhe assim como os rins, de ponto de apoio; o dorso se erguia em arco, o braço direito teso, estirado, congregava toda a força vital; em seus pulsos delicados, dois sulcos compridos. Os olhos de Ladice pararam longamente n´essas fendas de seducção, indecisos, se realmente eram devidas ás crispações nervosas ou nos beijos innumeraveis de seus amantes que, segundo os beijos dos peregrinos, gastam as pedras santas dos lugares sagrados de Jerusalém... Ladice continuou seu exame detalhado: À mão se fechava em forte contracção, o pé minusculo retrahia-se pela violencia do abalo; as narinas se incendiam; as palpebras baixavam sobre pupillas dilatadas, e os labios abriam-se, mostrando dente contra dente... A Senhora de Ássis não se podia despegar d´essa mulher no paroxismo da convulsão: — Afinada, longa, etastica, adelgagada, endurecida... Ella era o transumpto exacto, fiel, de seu corpo a debater-se na ancia da emoção, a explodir ebrio, a sentir nas paredes limitadas, a revolta do infinito...

— Mamãe, dar-me-ás esse bronze. Amo-o como se fôra um ser vivo...

— Leva-o; saberás aprecial-o mais que eu...

— Agradeço-te muito... Irá ficar ao meu lado, á minha cabeceira — e Ladice beijou a fronte da Senhora de Sant´Hilario.

Dinah appareceu vestida, prompta para a rua. O fundo preto do chapéo confundia-se com a côr de seus cabellos, negros, lisos, abundantes.

— Para onde vocês se dirigem? — inquiriu a Baroneza.

— Para uma praia qualquer... meu desejo hoje é ver o mar, o grande mar, bramindo, sedicioso, féro...— retorquiu Ladice, dando a cada palavra todo o som, toda a profundeza de sua alma multipla.

Após o percurso de meia hora de bonde atravessaram um tubo estreito, escuro, frio, cortado na propria pedra — era o tunnel de Copacabana. — Ao sairem d´essa passagem humida e sombria, entestaram com um outeiro despido, quasi nú, que abrigava, na encosta e nos flancos, tectos humildes de pobres pedreiras. A olhal-a do bonde, Ladice houve a impressão de ter deante de si um simulacro de morro igual áquelles que acompanham os soldadinhos de chumbo de Nuremberg; a vegetação é enfezada, anemica, surrada pelas brisas marinhas impregnadas de sal. As duas saltaram em um atalho, margeado de urzes e torgas; seus tornozelos desappareciam na areia fôfa; Ladice, de vez em quando abaixava-se para apanhar conchinhas, cascalhos, algas resequidas... A luz era intensa, offuscante, bravia, queimava as retinas, descia até ás raizes, á seiva, sugava-lhe, qual vampiro faminto, a viscosidade fecunda.

A Senhora de Assis abeirou-se do mar, queria sentir em a pelle o contacto d´essa agua vira, d´essa amorosa do céo, em cuja alma repentina e effervescente, ladainhas infernaes, trabalham. As ondas passavam-lhe pelos pés, morriam além; iam o vinham, num movimento alterno, humano, hesitante, de quem se arrepende, de quem ama, de quem se não quer separar; fragmentos de madeira, de taboas, boiavam, irmanando-se ao eapricho, á sujeição vária do fluxo e refluxo; gaivotas espalmadas subiam e desciam na ancia inconsciente de unificar, de apagar soluções, de fraternizar o ether, com o elemento salso, com a terra, com as suas vibrações de ave...

Ladice e Dinah se refugiaram sob uma coberta de colmo. A Senhora de Assis não falava; o ambiente agia-lhe em os nervos, acordava-lhe sensações extraordinarias: o ruido monotono das vagas e a ausencia de todo barulho de ser vivo, traziam-lhe ao ouvido, ás percepções, échos de vontades indomaveis e persistentes, musicas de Tritães, algazarra de Delphins enciumados... Talvez mesmo Amphitrite surgisse da agua nutante e glauca...

— Olha, Dinah, aquella gaivota mergulhando na onda emmaranhada de sol... Ella vai beher a luz -e em mente se apoderava d´esse symbolo: Ella deveria beber o seu amôr através do soffrimento, sob a dôr...

Ladice volveu a cabeça: atrás della as montanhas envoltas em sombra contrastavam com o mar fremente, incendiado. Ellas tinham silencio, mutismo, calma, geito de quem reflecte. Talvez a alma sombria, atormentada, laboriosa dos metaphysicos sem gritos e estertores de romantico.

— Ah! Dinah, que ebriez! Eu hoje quizera rolar no azul... — E seus braços se extendian: como se ella se preparasse para o arranco radioso.— Sinto nos nervos a palpitação de tudo o que vejo... — Segurando a areia — “Como é aguda e arida a sua palpitação!” — “Tomando uma concha — “E´ tenra e infantil...” — Olhando uma rocha — “E´ qual a minha, selvagem...” — Fitando o horizonte — “Fugitiva e nostalgica como a da saudade...” — Lembrando-se do Destino — “Descompassada, sem rythmo, diabolica...” — Referindo-se ao sol que tombava — “Abrupta, rapida, como meu sentimento...” — Pensando na nuvem — “Continua, immoderada, igual á minha vontade...” — Alludindo á das estrellas — “Progressiva, lunatica, desabrida, tal qual a do meu amôr...” — Abraçando Dinah, como se lhe quizesse communicar a sua alegria immensa: — E a tua se assemelha ao que? — interrogou-lhe, ella.

— Ao bater das asas dos Archanjos — respondeu sua prima, olhos ao céo...

— E preciso que sigas a tua vocação... Felarei a respeito á mamãe... Incommodam-me essas dilações constantes... — Mudando de tom, segurando-lhe as mãos: — Quando te fores, que saudades terei do meu Lirio Branco...

— Em mente, estarei sempre comtigo. As minhas preces serão para a tua felicidade — replicou Dinah.

— A´s vezes idealizo a tua vida de claustro... imagino-te, então, vestida de azul e branco, a cabeça baixa, os braços cruzados sobre o peito, a caminhar de um lado para o outro, no pateo sombrio...

— Tu me inebrias, continúa...

— ... Tudo ao redor é silencio; apenas ouves o barulho das contas do rosario se embatendo, e a toada monotona das sandalias de uma freira, em atraves sando as lageas carcomidas das arcadas... De repente, estremeces: — E´ o toque do sino, chamando-te á oração, á capella... Alças os olhos ao alto e sorris... Apressas o passo; entras; talvez sejas a primeira a chegar... Ajoelhas-te; cobres o rosto com as mãos pallidas e magras; tua alma em santo alvoroço, entrega-se a Deus, pairas n´Elle... Não vês que pouco a pouco o santuário se enche, que a luz baça da lamparina fraqueia... Não te importas que o cheiro de cêra, de azeite, de chão envernizado, abafe, nauseie... Não ouves o suspiro que se escapa atrás de ti, de um espirito hesitante, febril de duvida, pedindo a Christo, flamma santa, crença... Ha uma hora que rezas sem o saber... As quatro pancadas do relogio te despertam... Mais cinco minutos, e te curvas profundamente... Beijas então o crucifixo de lenho polido que te pende ao lado... Lanças triste um ultimo olhar de saudade e de adeus para o altar... Mais uma reverencia, e saes... Na porta páras, mergulhas as pontas dos dedos na agua benta, e te persignas... Teu andar agora, é mais lento, mais pesado, sentes-te fatigada, acabrunhada, exhausta como se houvesses esquecido a alma, nas prégas brancas da camisola fôfa do Sagrado Coração... “Meu Deus, meu Deus, dizes descendo as escadas, porque me não tiraste a vida, alli, quando Vos fitava, Vos desejava, Vos amava... ?" As freiras que te observam, murmuram baixinho: “A nossa irmã soffre... exaggera...” E, á tarde, na hora do recreio, talvez divises em suas maneiras, compaixão, ironia, inveja; porque és formosa, jovem e exaltada, porque teu coração de virgem se quebra ante os cravos, a corôa de espinhos, a lança, o martyrio de Jesus... e ellas temem o milagre, os estigmas, a beatificação... E, á noite, querida, deitada em a tua cella — Ladice, o mundo, o passado te perturbarão, como um abysmo de oiro, a te chamar: Vem, vem! À principio, cedes, te rendes a essa vertigem que te encobre; mas, logo horrorizada a repelles... Agarras uma medalha e a apertas contra o seio, balbuciando ave-marias interminaveis, com soffreguidão de demente, afim de sanear teu espirito... Na manhã seguinte, so raiar da aurora, prostrada ante a Cruz, repetes o “Miserere Dei” com o desespero, a contricção de peecadora renittente...

Ladice fallava como uma vidente: a aba larga do chapéo sombreava-lhe os olhos impregnados de violencias insondaveis. Os labios rubros, quasi se não mexiam, pareciam immoveis como aquelles estratos lá no cêo quando sustentam o sol que desapparece... Por vezes, sua destra levantava-se impaciente, convulsa...

— Como me impressionas apesar de não ser assim o convivio dos conventos. Dás-me perfeições, que não tenho... — disse-lhe Dinah, humilde emocionada.

— Mesmo sendo religiosa, deves ter elevações; em todos os estados e mistéres, que a excepção sobreleve... — sentenciou a Senhora de Assis...

— Não nos são permittidos orgulho e differenças... — replicou Dinah.

— As excellencias a que me refiro são provindas da fé, da grande fé salvadora: são-lhe os corimbos magnifiços... Oh! a superioridade da fé sobre todas as cousas mundiaes... Fé, Fé. Determinismo sublime, toxico dos predestinados, porque não vieste a mim? — E sobre o rosto, os hombros de Ladice, poisava-se uma sombra indefinida...

— A fé é bem uma graça divina — ajuntou Dinah, em transporte...

— Invejo-te a fé, oh! Virgem de Fidelidade. — E os dedos de Ladice apertavam os pulsos de sua prima. Do pé á cabeça corria-lhe o mesmo desejo das montanhas.

De volta á casa, a Senhora de Ássis, num impulso de caridade e de jubilo despejou na mão pedinte de um mendigo, todas as moedas de prata que lhe enchiam a carteira.

Encontrando-se esta noite com Jorge, este lhe observou, mirando-a de alto a baixo:

— A minha irmã hoje apparenta uma alegria estranha... Dir-se-ia nimbada de fulgores e de horas mortas...

— E´ que roubei a alma pagã do mar immenso e o mysterio da floresta...

E seus olhos riam, illuminavam-se, enquanto sua boca se immobilizava em silencio...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.