Exaltação (1916)/7
VII CAPITULO
Theophilo Fernão de Almeida, o poeta festejado, se acha no Rio, ha mais de tres mezes.
A senhora de Assis, apesar de frequentar as reuniões elegantes, os theatros, os restaurantes de fama, ainda o não vira...
Julho chegára; mez do inverno do nosso equador, sem frio, sem neve, sem gelo; mez de dias exuberantes, de manhãs brancas, de tardes fugazes, em que a natureza na prisão de um symbolo se rasga, se abre maravilhosa e pura, em apogêos de lirios, de efflorescencias raras... mez da luz, do verdor da mocidade, da belleza; mez de frenesis, de vertigens, de brisas cantantes; mez em que a terra toda sorri em effusões de alegria, em que as flôres, os arbustos, as trepadeiras se cobrem de symphonias de beijos, de suspiros, de ternuras; em que as phalenas voluveis e loucas esvonaçam, adejam, estonteadas, do asphodelo ao malmequer, do açafrão á giesta espinhosa; mez em que as laranjeiras frondentes se curvam ao peso de frutos côr do sol, em que sazonam os abios redondos, turgidos, mez em que as ervilhas verdes, as favas arquendas, as cenouras fusiformes, os legumes cheirosos nos dão vontade de beber a festividade a alegria das manhãs, em suas folhas nervosas, alongadas, estreitas; mez em que isolada no mato, amarellece a flôr do ipé, como eclosão universal, das frondes ananthas; mez em que os gaturamos, os pintasilgos, os sabiás, gorgeam poemas de amôr em bergos perfumados, em concavos de magnolias; mez em que os olhares das mulheres, são parados, lentos, como se ellas ouvissem palavras meigas, caricias perturbantes, em que as suas gargantas se apertam, se contrahem, em que seus coracões batem com mais força, sem saberem porque... Julho, mez das noites claras, sem murmurios, sem mysterios, dos somnos subtis, leves, deliciosos, que nos não deixam acordar e que nos emprestam a sensação de repousarmos sobre asas de pombas, sobre juncos doirados, em lagos sombrios... mez do ardor, da fecundidade, da reproducção da planta, da herva tenra, dos sêres organicos...
Preparava-se grande festa de Caridade em favor de um Asylo prestes a se fechar, á mingua de recursos. A commissão encarregada de organizal-a envidiava todos os esforços para que seu successo fosse completo, total; uma das principaes condições do triumpho, e do exito, deveria ser a belleza das moças que presidissem as barracas, sobretudo a das flôres que attrahia os cuidados, a attenção dos artistas e dos esthetas... Elles principiavam de encontrar certa dificuldade na escolha; ninguem era assaz formosa ou elegante para dirigil-a; mostravam-se exigentes, obstinados, resolvidos a entregal-a sómente áquella que correspondesse ao ideal que tinham em mente: cada qual lembrava uma moça em voga; mas era logo recusada, porque se tinha um predicado, faltavam-lhe outros. Um chronista de autoridade era o mais aferrado á sua opinião e não cessava de repetir, que ella deveia ter tudo, mesmo os infinitamente pequenos que fazem da alma feminina uma ogiva gothica: “Quero-a com coloridos de primavera e tragedias de verão — dizia elle”. Os companheiros riam-se d´essas singularidades estravagantes, oriundas de uma cerebração nervosa, e acabaram por incumbil-o de procurar essa mulher extraordinaria, que, com certeza, não encontraria.
— Que alegria esfusiante! Contem-me o que ha? — Jorge acabava de entrar.
Armando Sueiro, o distincto chronista, com as mãos nos bolsos das calças, amplo crysanthemo na Iapella do casaco e dous vincos profundos na fronte, virou-se e disse:
— Estamos num embaraço formidavel... Chegas a proposito. Ainda não encontrei a “Blumina” para a secção das flôres... Tu que frequentas tanto, pódes informar-nos de alguma...
— Conheço uma perfeita... Tem tudo... o que vocês aliás ignoram. Não sei se acceitará... é caprichosa, original...
— Deixa de preambulos... Dize logo quem é — atalhou apressadamente Armando.
— A senhora Ladice Everardo de Ássis, nascida de Sant´Hilario. Muito pouco conhecida, porque quasi não vai á sociedade...
— Senhora Ladice de Ássis — repetiu vagarosamente o chronista — creio ter ouvido qualquer cousa a seu respeito acompanhada de grandes adjectivos. Levar-me-ás á sua casa... Quero vela e julgal-a, não tenho confiança no gosto de vocês, leigos na arte — ajuntou elle dirigindo-se aos companheiros.
— Não somos filhos authenticos das Musas, mas sabemos discernir a belleza e render-lhe sempre devido preito, verás que te digo a verdade — replicou Jorge, sentando-se e, encostando a cabeça no espaldar da cadeira, triste, pensativo...
— Precisamos tratar disso já, a festa se realizará dentro de poucos dias. Amanhã me apresentarás á futura Blumina. Se não servir...
— Não tenhas esse susto — interrompeu Jorge vivamente — garanto-te não existir outra igual em todo o orbe...
— Que enthusiasmo!... Hum!... Alguma paixão — interrogou, malicioso, o chronista.
— Não; somos dous irmãos e nada mais...
— Dous irmãos?!... Ah, caro amigo, não sou tão ingenuo... — E Amando ria-se e batia-lhe ao hombro.
— E´ de uma seriedade enervante — acerescentou Jorge — e olha, traz n´um corpo serpentino peccados gloriosos...
— Mas então, é imperdoavel em ti, essa tua permânencia na virtude... Com certeza és um timido...
— Sou um audacioso recusado, entendes?
— Que allivio! estares á margem... Não me seres um rival...
— Se pretendes conquistal-a não te acompanharei... Repito-te; é digna do maximo respeito — disse Jorge formalizado.
— Não te zangues... E´ mera brincadeira. Mudemos de assumpto. Devemos avisal-a com antecedencia... Em dias solemnes, as mulheres gostam de trazer vestidos novos... a vaidade feminina é terrivel, mas necessaria; é, de resto, o complemento de sua graça, de sua belleza...
— A mulher sem vaidades torna-se um ser hybrido... E´ deveras detestavel — exclamou Jorge.
— A vaidade, afinal, é o amôr exaggerado de si mesmo; é o sentimento nebuloso, não revelado, de agradar, de attrahir a attenção alheia, de se associar, de se unir a alguem...
— E´ um instincto...— accentuou Jorge.
— E o atomo de onde se irradia a ideia de sociedade; é o artificio de nossa natureza, levantando-se contra a solidão, o isolamento...
— Tenho-a como uma virtude preciosa e generalizada...
— Ella, o interesso e o egoismo pairam em a essencia de todos nós. São o fundamento de nossos actos, conselhos, acções...
— Por essa razão, nunca acceito os sabios avisos do proximo — disse, ironico, Jorge.
— Nunca te pensei um pessimista...
- Sou temporista... Principio de seculo... — replicou Jorge, sorrindo.
— A tua maxima não é má... Mas, apesar de tudo, creio na bondade...
— Eu, em nada creio. Não faço projectos, nem tenho ambições. Considero-me uma abstracção, particula objectivada de uma vontade poderosa em seu curso ascendente e descendente... Sou a victima do Determinismo universal...
— Tu te consideras, então, o paciente de forças naturaes, um accidente na propria vida?
— O fim de uma evolução... Estou, portanto, sujeito a todas as variações d´essa vontade que é equilibrio, força, lei, harmonia, o que quizeres, emfim...
— Então vens a ser um receptivo de fatalidades; que horror! Eu, por mim, sinto-me uma revelação divina... Sou dono de energias, de conceitos, de fórmas; creio, domino, e até, Jorge, vengo destinos...
— São meras illusões... Os teus esforços serão nullos se ousares torcer o fado que te está prescripto...
— Para a intelectualidade humana, não ha obstaculos... — sentenciou Armando.
— Em theoria... Repara como a maior parte dos homens succumbe pela decepção...
— São os fracos que não reagem... As tuas ideias são cicatrizantes, alienam o progresso, cerceam as fontes de energia, e todas as sequencias do pensamento...
— São a verdade sem ambages... São filhas da experiencia, da observação e de grandes estudos...
— Qual, são ideias de natureza indolente, de mocidade em decadencia...
— Tenho, entretanto, trinta annos, sou forte e vigoroso... — respondeu Jorge, orgulhoso de sua pouca idade.
— Não comprehendo essa anemia subjectiva em plena juventude, em esse instante da vida em que o coração se renova como os jasmineiros; em que a imaginação é febril, azoinada de orgias, assaltada, sacudida, bandeada por vertigens freneticas, precipites, dementes... Oh! instante luminoso! passas sobre nós, violento, rapido, relampeante qual escudo de Walkyria fugitiva... Como pódes tu Jorge, n´essa quadra unica, que de cada folha, dos objectos, dos insectos, se desprendem para a avidez de nossos sentidos, um beijo, um “eu te amo”, um “eu sou tua”... ser assim positivo, crú?
— Ante a minha consciencia, sou um innocente... — retorquiu Jorge.
—Tu te queimastes, talvez, na pyra da desillusão... talvez um amôr romanesco te quebrasse o viço, a seiva pela vida, que corre impetuosa nas velas novas, moças, latejantes... talvez, mas, não é possivel, sejas um asceta por indole que ainda não apalpou com suas mãos insensiveis e grosseiras as linhas roseas, trescalantes, abrasadas do prazer que prende, que segura, que desnorteia, que não deixa sair, é que enrola em seus viscos de mel e oiro a juventude alegre... ou, talvez, seja a tua negação, um cantico ardente, o estupor, o espanto, ante a magoa do alêm incomprehendido, ante a fragilidade, a curteza, o nada da existencia... Tens a revolta da ephemeridade de teu ser — accrescentou Armando Sueiro.
— Não; porque sou o passado e o futuro...
Armando sem penetrar muito em a significação d´essas palavras, exclamou: “E´s um louco...— E ambos se separaram.
No dia seguinte ás oito horas da noite Armando e Jorge foram introduzidos em o salão da Senhora de Assis,
Emquanto Jorge folheava uma revista ingleza, Armando instinctivamente curioso, examinava os moveis, os quadros, a elegancia pittoresca, artistica, requintada, que se evolava d´esse conjunto luxuoso: as nuanças eram pallidas, harmoniosas, calmas, entranhando-se uma nas outras, misturando-se, formando uma só; o ar, as flôres, as pregas das cortinas, o amarrotado das almofadas tinham uma molleza, uma doçura voluptuosa, lenta, de gatinha carinhosa; o que surprehendia, porém, Armando, eram a independencia, a individualidade accentuada que se distinguia no arranjo, na escolha, na disposição, nos detalhes d´este ambiente ainda quente, ainda vibrante da presença de um perfil maravilhoso... Dir-se-ia, que os objectos tomavam relevo, revestiam-se de outra forma, tinham significação, vida, pulsavam... esta atmosphera de goso, estonteante, perfumada, o intoxicava, o invadia de sensações várias, multiplas. De esguio vaso de bronze, apertado por um terrivel dragão de fauces escancaradas, pendiam, desordenadas e em grande quantidade, flores da paixão. Armando não sabia se era devido á sua imaginação por demais fantasiosa, a impressão morbida, de cousa remota, que sentia, todas as vezes que olhava para aquelle lado; parecialhe que a exuberancia do intimo se amortecia, se coagia; certa tristeza, certas recordações vagas de infancia, quando aprendia o catecismo sobre os joelhos de uma mãe pledosa e simples, quando folheava pesado Evangelho de illuminurias surgiam-lhe nitidas, inquietadoras em a mente alvoroçada; ou presumia elle, seria devido á força do amargura, de dôr que se desatava realmente d´essa florescencia da Quaresma, que tambem o fazia perceber no ar que as circumdava, traços de lagrimas, irradiações violaceas, fragmentos de coração despedaçado, manto roxo de N. S. das Dôres. Pouco acima, pendurada, pequena tela sombria se mostrava; Armando levantou-se para observal-a de mais perto e com as mãos sobre os olhos, fixava attentamente essa Madona e o Infante, cópia de Cimabue, pintor florentino do seculo XIII: as linhas eram largas, duras, rijas da eschola byzantina, embora já trahindo a influencia do Renascimento na forma e na expressão. Armando adorava essas imagens antigas e possuia alguns bons specimens na sua sala de trabalho. Fitando-a, elle pensava: "Que differença das Nossas Senhoras modernas! esta aqui sevéra e sobria, interpreta cabalmente a ideia que os nossos antepassados faziam dos deuses, tidos como juizes absolutos. À Immaculada de Murillo do seculo XVI, suave, meiga, terna, traz os caracteristicos da mossa concepção sobre a Mãe de Deus...”
As conjecturas do chronista perdiam-se na aureola de oiro, no olhar obliquo, no nariz fino, recto, que desce da austera Madona, nas sobrepelizes, nos cabellos atados, nos braços cruzados dos Anjos, nos pézinhos roseos do Infante que sorri...
A porta abriu-se silenciosamente. Ladice appateceu formosa, radiante. Emquanto era apresentado, Armando esforçava-se por occultar sua admiração; seus olhos collavam-se n´aquelle corpo que tinha o grande fremito da vida; subiam, desciam, entravam-lhe pela pelle, sem poder sair, sem ainda distinguir traços de outros traços, não vendo senão um rosto feito de lirios ardentes e uns cabellos fluctuantes, onde Cupidos pareciam brincar em suas ondas.
Pouco a pouco, seus olhares, ubiquos a principio, foram-se fitando, parando, retendo, suspendendo n´essa fragilidade branca e rosea que encerrava uma alma tão cheia de primaveras esplendidas.
Em linguagem simples, mas eloquente, Armando expoz-lhe sua missão e a esperança que o alentava de que a Senhora de Ássis não deixaria de ouvir o seu appello em favôr das creanças pobres.
Ladice quiz esquivar-se; ella tinha certa relutancia em se exhibir em publico, em acotovelar a multidão, em fazer parte do povo... Mas o chronista insistia :
— E´ uma acção quasi divina, que vai praticar — transformar flôres em pão para os orphãos. — Elle sorria, e mostrava uns dentes muito unidos e pontudos.
Depois de certa hesitação, Ladice accedeu; era um acto de caridade, que ia praticar, esse sentimento fixo, permanente, prompto, a fome, a sêde de sua alma; sentimento estridente, que se não abrandava, emquanto não désse, não soccorresse, não o satisfizesse até ao extremo.
O modo, o tom da conversa da Senhora de Assis eram languidos; ella apparentava o abandono, a fadiga subtil, o cansaço de quem ainda traz sensações profundas; — mas, de repente, ella toda mudou... A sua voz revestiu-se de mais calor; o castanho de suas pupillas escureceu-se, adquiriu brilho seco, arido, de pedra preciosa; rubor, ora mais forte ora mais fraco, banhava-lhe as faces; seu rosto parecia receber todos os sopros do meio-dia. Corriam-lhe pelo sangue, pelos membros, rythmos de pœan... Os labios, as pontas dos dedos incendiavam-se... sem coração pisado pelo soluço da delicia, pelo soluço do pesar, estirava-se em eclosões: — a esperança de encontrar Theophilo n´esta festa occorreu-lhe de subito, emergiu-lhe do cerebro com a rapidez com que Christo apparecia aos Apostolos, aos discipulos; era a primeira vez, porém, que essa ideia se fechava em verdades, em certezas, em affirmações sem que ella propria soubesse a razão. Ladice a recebia como sendo presente do Destino, recompensa de uma perseverança infinita.
Meu Deus, como ella se sentia ser um vergel florido, perturbado pelo canto agudo da araponga!
Ah, ella sabia que seu coração pequeno como o dos outros mortaes, igual na forma e na funcção, possuia, entretanto, forças, estridencias, encantamentos unicos, ainda não percebidos...
Seu sangue, seus nervos, suas tendencias, os trabalhos de sua imaginação laboriosa volviam-se para Theophilo, para o poeta bem amado, como para seu ether luminoso e necessario. Picava-lhe o intimo o mesmo e formidavel desejo que atormenta o universo, as luas exangues, os helianthos virgens, que tombam, e os corações mortos, frios, apodrecidos, mas que esperam sempre: elle era-lhe o fogo, a rima estuante, o espelhinho grego de bronze onde ella se mirava...
A sala enchera-se. Francisco recebia n´essa noite alguns amigos politicos. A Senhora de Ássis com sua pallidez de maguolia e seu corpo abietino de amphora grega e a graça de suas attitudes orientaes, attrahia irresistivelmente os olhares dos homens.
O elegante chronista ainda lhe não abandonára o lado, comprazia-se com ouvir-lhe as theorias, com o modo de ser tão seu.
— Sim, o poeta sem amôr seria uma impossibilidade physica e methaphysica, como bem diz Cartyle — redarguiu Ladice.
— Acha então que o poeta se não deve casar? — interrogou Armando.
— Seria, então, um infeliz... O amôr do poeta é vehemente, forte, mas inconstante... Elle ama a mulher, a natureza e a amante igualmente. — Ladice em mente exeluia Theophilo.
— Não devemos pedir aos intelleetuaes o que exigimos do commum dos mortaes... Depois, qu´importa; é afinal o amor que triumpha...— replicou Armando.
— Sim... é amor triumphante para quem tem seivas multiplas para quem sacia em as exaltações do pantheismo, as ancias de uma alma vibratil... Emquanto a mulher, geralmento entidade fraca... — e a mão de Ladice fina e branca abria-se e fechava-se como se ella sentisse o tremor immenso da natureza amorosa...
— Oh! a mulher contentar-se-ia com pertencer-lhe, ser-lhe a companheira fiel e orgulhosa... — interrompeu-lhe Armando. — E de resto, difficilimo encontrar-se uma cerebração viril em cabeça feminina — accrescentou elle.
— Viver em segundo plano, ser tida como uma lembrança esquecida, uma estrophe recitada, uma chamma apagada — ajuntou Ladice vivamente — apenas haver do marido o corpo vazio d´elle, é horrivel para o coração de uma mulher, Sr. Armando... — No enthusiasmo da conversa, Ladice chegára-se mais para a beira da cadeira e sua cara se achava bem em frente da cara do chronista.
— Perdão... mas nem todas são como a Senhora... E´ inedita. Não devo, portanto, generalizar uma excepção — respondeu Armando sério.
Proferida por bocas diversas, Ladice ouvia essa phrase “nem todas são como a Senhora” pela terceira vez. Seria ella realmente assim differente das outras, um rythmo ainda não modulado? Em sua consciencia, vaidades innumeraveis desdobravam-se.
— A mulher deve ser o incitamento espiritual, e segredo de deslumbramentos, a auxiliar intellectual do marido, a sua arte. — Ao enunciar essas palavras a Senhora de Assis pensou em Theophilo, e seus olhares perdiam-se, distrahidos...
Jorge approximou-se, e, num gesto de ciume, interrompeu esse dialogo que se tornava longo, interminavel, terrivelmente interessante, ao seu parecer:
— O Senhor seu pae, D. Ladice, manda dizer-lhe que está com saudades de seu piano... Deseja ouvir a “Réverie” de Tchaikowsky — virando-se para o companheiro — a sua interpretação é estranha como uma poesia de Poé... Faz-me mal...
Armando conduziu-a ao piano; a cabeça de Ladice ficava justamente sob as flôres roxas espargidas aos pés da Madona; o elegante chronista não poude deixar de notar sua predilecção para com essas flôres montezinas que elle via pela primeira vez em uma sala e em uma cintura.
— D. Ladice, só agora, começo de perceber a belleza d´estas flôres, que apenas distinguia ao longe nas collinas, apertadas entre as cambiantes verdes de nossas arvores...
— São incultas, solitarias, quasi a unica floroscencia decisiva de nossas florestas... E´ por isso que as quero tanto, — E tomando uma em as mãos, olhando-a: — E´ sempre com reverencia que as colho... Afigura-se-me ler em suas corollas melancolicas a epopéa do Calvario...
— São na realidade symbolicas — disse Armando afastando-se, e dirigindo-se para onde Francisco se achava em companhia de dous homens que elle desconhecia.
De pé, parado, os braços cruzados, alheio á musica, á conversa, elle só via Ladice, examinava-lhe os traços, os movimentos, a posição de cabeça um tanto inclinada, a renda que ora se enrugava, ora se esticava sobre o collo maravilhoso; a boca pequena, fechada; á guisa de dous crescentes abraçados e ardentes, e pensava: Oh! mulher de plasmas feitos de frutos rubros, de margaridas de maio entrançadas de luares, de caules verdes, impacientes, repletos de amôres da meia-noite...— Oh! minha Senhora da Paixão, aos vossos pês, accendo todos os lumes de meu coração...
Ladice inteira na musica, não lhe via a attenção exaggerada, a pertinacia; mas, de repente, ao virar uma pagina, seus olhares encontraram-se rapidos e entrasam noz de Ladice como confissões prohibidas, venenosas, motivos ignotos, maleficos... Embaraçada, a Senhora de Assis desceu as palpebras brancas de tuberosa; mas sentia, sob essa cegueira voluntaria, a força d´esses olhares concentrados, devassar-lhe os segredos, o bem, o mal que a governavam... E arrepiada, nervosa, gelida, precipitava os accordes, não attendia aos signaes de repetição, louca por deixar o piano, por esquivar-se, desapparecer..
— Suas mãos estão frias como sua alma... — observou-lhe Jorge segurando-as.
—... que tem a sensibilidade dos extrêmos? completou ella risonha...
— Oh, o auge, sempre o auge, sempre os cimos — repetiu Jorge.
— Senhora de Assis ê uma alma perfeita... o apogêo em tudo — exclamou Armando, approximando-se, respondendo á phrase que acabava de ouvir.
— Façamos um pouco de literatura. O illustre chronista dar-nos-á o prazer de recitar algumas poesias...— disse Jorge, ainda mordido pelo ciume, esforçando-se por afastal-o da presença de Ladice.
— Si lhe não fôr incommodo...— ajuntou esta.
— Pelo contrario, ser-me-á grande honra, tel-a como ouvinte... — accrescentou elle.
Ladice conservou-se de perfil, levemente encostada em a mesa, a enbeça pendida um pouco para a frente no geito de quem escuta; a cauda do vestido toda torcida, fazia dobras enviezadas, repuxadas e amontoando-se de um lado só, deixava transparecer-lhe as formas cinzeladas.
Armando ficou algum tempo pensativo, em seguida começou a declamar um trecho da Ulysséa de Pereira de Castro; sua voz era monotona, ás vezes tarda como se alguma emoção o atormentasse.
“... e n´esse longo, ondado
“Cabello guarda amôr em mór thesouro
“Neve, rubi, safira, rosa e ouro.”
Ladice recebia esses versos como uma declaração, um cântico, endereçados á sua belleza; ella não ousava olhal-o, mas havia a sensação de que era fitada com insistencia, quiçá com significação: dir-se-ia que fluidos estranhos os ligavam, corriam d´elle para ella, como essas espadanas de luz que jorram das mãos das Virgens.
“De teus raros extremos de belleza
“Os mesmos elementos se namoram.”
Ladice notou-lhe ligeiro tremor em a voz, involuntariamente ergueu a cabeça e viu dous olhos famintos de embates apaixonados, voltados para seus cabellos...
Esta noite antes de ir para a cama a Senhora de Assis demorou-se longas horas á janella. O ar limpido, sereno, tinha seintillações de crystal; o céo parecia o reflexo impedrado de um mar immenso, profundamente azul... Marte tremulava como a ponta de um cigarro acceso...
“Meu Deus, aquelle eypreste esguio que fére tão duramente o céo é a interjeição dorida, eterna das minhas visceras para meu Poeta bem amado...” — pensava Ladice.
Ella se embriagava em as sombras fantasticas do arvoredo na terra, em o bulicio das folhas, dos ramos que palpitavam como arterias, em a massa escura que a rodeava, que lhe entrava pelos poros, pelos cabellos, pelas narinas até lhe levar ao senso, os mysterios estuantes da netureza amorosa e sensivel: ella adivinhava os segredos que se passavam nos botões retorcidos, nos pollens atrás de pollens incontidos, nas raizes avidas de abysmos, de subterraneos, de firmezas... Ella ouvia o barulho de crescimento, de liberdade dos rebentos, das gavinhas, dos grêlos, proseguindo na sua faina de expansão... — Ella percebia o ruido frouxo, rouco, abafado dos estyletes que produziam... E o extertor, os soluços das paniculas, das campanulas, dos corymbos caindo mutilados, desfeitos, mortos... E o ai das folhas, dos galhos que se quebravam... E o gemido dos troncos, das frondes que envelheciam...
Todo esse movimento silencioso e invisivel de cousas que nasciam e que morriam lhe agiam em os nervos, em as celulas... sentia forças e potencias creadoras... E Ladice, encharcada de lyrismos pensava: “E´ em este instante, de horas escondidas, que a natureza se entrega ao amor... Passáros que passais pressurosos, com certeza ides em busca de caricias mais quentes?... folhagens resequidas que vos moveis, sois o ninho macio de serpentes que se ajuntam?... Insectos, que vos encontraes sobre umbellas cheirosas, não sabeis que vosso amor freme sobre outro amor?... Escaravelhos luzentes estreitam-se em cavidades carunchosas de lenhos decepados; borboletas lascivas beijam-se rolando sobre o oiro de antheras violadas; rios, correntes insoffridas precipitam-se em mares cantantes; brisas encanadas incitam palmeiras isoladas, sem companheiros; corações se entrelaçam em a vertigem, sob a alvura das rendas, dos véos, dos linhos bordados. Estrellas que me vêdes dizei-me, porque não tendes affectos? Lua, que és pallida como a paixão, é verdade que nunca recebeste estes beijos que se quebram em nossos labios, bramantes, terriveis, bravios, como as aguas em os recifes? Montanhas que vos ergueis lá no longe, em a esterilidade de vossos flancos, não echoam os murmurios amorosos que sobem, sobem do Universo adormecido?....Sois o esquecimento, uma cousa que passou e não volta mais, sois a legenda morta, o intruso em a fecundidade do mundo que se desdobra...”
“Ladice sentia-se desfallecer. Sua alma fugia-lhe como corceis á brida solta... Mais tarde, ao cerrar as persianas, seus labios recitavam a meia-voz:
“De teus raros extremos de belleza,
“Os mesmos elementos se namoram.”
Armando Sueiro ao deixar a casa da Senhora de Assis, levava a alma em fogo... Ela inundava-lhe o ser, abrangia-lhe o pensamento, exaltava-lhe a imaginação: “E´ uma mulher que nunca satisfaz; é uma Pompeia palpitante, onde se tem sempre alguma surpresa que descobrir; —é rosa de Ispahan, cujas petalas sempre frescas, sempre humidas, sempre rosadas, magnificas, seductoras, gloriosas, desafiam o tempo, as outras bellezas, as outras mocidades, que virão... E´ a namorada immortal a inquietar o poeta, o artista, o pensador que se quer apossar, explorar, calcar, machucar esse ser de purpuras e de viclencias esplendidas... Tel-a aqui bem perto de mim e não poder agarral-a, arrebatal-a triumphante por caminhos beirados de laranjeiras: glaucas, com as suas flôres a se apertarem, a se curvarem, a se despregarem, rolando, caindo, sumindo-se uma a uma pelos seus cabelos, pelas suas mãos crispadas, pelos seus joclhos finos... O cheiro da flôr de laranja tonteia; as palavras que ella esenta teem a delicadeza, o transporte, o livor da flôr de laranja... Ella mesma é uma flôr de laranja que suspira, que ama, que anceia,.. Oh! tu que trazes em tuas pupillas a acidez corrosiva da desejo e em tua boca escarlate, os contornos, o signal, o ardor, a sensualidade morbida e rubra do beijo, vem a mim!... Quero levar-te longe, além, em esse Oriente azul, jardim inebriante de emoções... Repousarás em sombras ardentes, ao abrigo de arvores altas, classicas e graves... Seus galhos unidos, liados, enramados, a se empurrarem, famintos de sol, de ether, de espaço, extender-se-ão sobre ti, qual doce! vivo, sensivel, ondulante... Deitar-te-às sobre camadas de papoulas, de rosas, de nelumbos, de papyros que, impregnados de teu calor, serão quaes mil pequenas bocas a te acariciarem o corpo liso de esmalte branco... Tudo em volta, crepita, ferve, se inflamma... As mulheres que passarem trarão em as linhas magras e nervosas de seus membros, subtilezas, vehemencias de champanha, de serenatas, de guitarras plangentes... O ar está quente, e o sangue de tuas veias e teus cabellos que se emmaranham... Divinamente pallida, ficarás immobil, convulsa, pelas harmonias languidas, pelo delirio de vida, de volupia que se evola d´esse amante eternamente forte, inesgotavel, apaixonado — a natureza! Oh, vêm, commigo que sou artista e que te saberei amar... Do teu corpo estreito e juvenil farei poemas, onde a juventude vindoura se queimará, se exaltará... Perpetuarei o prazer, o riso, a melancolia, as lagrimas, os contrastes intensos de tua alma de Virgem e de bacchante...”
Armando passou grande parte da noite a escrever; as phrases corriam-lhe abundantes; sua fantasia dilatava-se em considerando os atavios maravilhosos é perfeitos da Senhora de Assis.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.