Exaltação (1916)/8

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VIII CAPITULO

A grande attracção do dia era a festa de caridade. O Rio de Janeiro elegante afíluira a esse jardim fechado, sem flôres, sem coloridos, sem ridencias, todo verde, severo, escuro, lembrando os velhos solares de nossos antepassados: se não fossem a musica, as gargalhadas sonóras, o aspecto festivo das barracas e o vai e vem da multidão, seriamos obrigados a levar as mãos ao coração e apertal-o de tristeza...

Cada barraca era encimada por uma phrase allusiva ao seu conteúdo:

“O brinquedo leva a paz ás creanças.”

“A inspiração que encontrardes em um calice de vinho, não ides afogal-a em uma garrafa.”

“ E´ somente espiando o vosso destino que podeis evitar o infortunio.”

“Uma simples lembrança é muita vez o laço de uma grande paixão.”

“Em esta caixa de surpresa, achareis o que perdestes.”

“O café dá ao rustico — calor, ao intellectual — ideia.”

“Enchei o vosso coração de flôres, depois exultai.”

Grupos numerosos paravam em frente das barracas, commentavam-lhe a feição, os dizeres, apreciavam a belleza, a alacridade, a silhueta esbelta das moças que vendiam, entravam e saiam contentes, do que haviam tomado, do que haviam comprado; a animação era grande e parecia augmentar constantemente; todos se mostravam liberaes, alguns até prodigos, sobretudo os rapazes ricos que, aproveitando o momento propicio, ostentavam a sua fortuna, e ganhavam a admiração das gentis caixeiras. A generosidade de uns estimulava a de outros, estabelecendo-se assim uma especie de conflicto occulto, feito sob sorrisos, sob olhares cheios de espectativas, sob palavras de agradecimento...

“Enchei vosso coração de flôres, depois exultai !” diziam os homens dirigindo-se avidos para comprarem uma flôr, para contemplarem de perto esse perfil luminoso que emergia de entre as flôres como rosa de Junho prenhe de sons, de sôpros, de lamentações...

A tenda branca de seda da China, tinha a apparencia vaporosa, leve, diaphana, indefinida, do sonho, da irrealidade, das apparições... Pela entrada larga, apenas cortada por um balcão, saia um aroma forte, esquisito, estonteante, variavel de flôres misturadas. Ora prevalecia um, ora outro, ora confundindo-se, formava uma essencia nova, para logo se desmanchar e surgir uma outra differente... eram perfumes que se succediam infinitamente como os dias, como os mezes, como as estações..

Flôres em profusão cobriam as paredes, as mesas, pendiam dos tectos, rolavam pelo chão, sob os pés aristocraticos de Ladice, sob as rendas de seu vestido...

Gladiolos amaranthos, coraleiros tremiam quaes labaredas agitadas pelo vento, indifferentes ao espasmo sensual das tuberosas em pleno agraço da juventude. Zinias, anemonas, geranimos ardiam cá e lá, semelhantes a bolas accesas, de uma luz igual, fixa, inalteravel, queimando-se ao abrigo de aragens; os flocos, as primavéras, as verbenas caiam sobre os amores-perfeitos, as violetas, os cravos suffocados... a digitalis e a petunia, lividas, balonçavam-se... as tulipas palpitavam de orgulho... as papoulas abriam-se como redes de rubis para o divertimento de libellulas; as fuchsias curvavam-se enamoradas de seus botões que se uniam como labios; os codeços estirados lembravam cabellos loiros desfeitos; os cachos deitados das glycinas, pareciam amethystas entornadas; as serpentarias erguiam-se erectas, serenas, como se fossem thronos de zephiros; as rosas alçavam-se apaixonadas e dignas como sendo a flôr da espiritualidade; as hortensias entesadas traziam as suas folhas amassadas no azul e no rosa das tardes de verão; os daturas volviam seus calices para baixo, dando por finda a libação; a acacia mimosa, branca de innoceneia e de pudicicia, olhava em extase; os crysanthemos gloriavam-se de suas formas irregulares, hystericas, geradas em a phantasia da terra; dir-se-ia que as yuccas guardavam Cupidos em suas corollas e mestravam-se ciosos de servir de sceptro a Flora; as cattleas, as cœlias, as vandas, trocavam-se reverencias em seu isolamento; todas essas flôres em a súa agonia tornavam-se mais bellas, mais sentimentaes; queixavam-se saudosas, suspiravam pelo céo azul, pela caricia das brisas, pelo bailar dos insectos, pelo raio de sol que as tocava em o coração como um gladio de fogo e de milagre fazendo brotar o amôr e a vida!

Ladice sentia-se vertiginosa em essa orgia de carnações lividas e estertoradas; era Cytherêa, Pomona rodeada de seus amantes... Os caules dobravam-se, extendiam-se para ella quaes braços insoffridos e acariciadores; enviavam-lhe perfumes, volutas de aromas, como mensagens amorosas, como beijos, longos, longos, que lhe rompiam os nervos, os ossos... Ella vendia em grande quantidade, pouco a pouco as paredes se despiam, as mesas se desnudavam; uma a uma as flôres a deixavam... Mais alguns instantes e ellas se acabariam, apenas sobejando as que jaziam no chão, murchas, desfiguradas, mas insistentemente reclamada pelos retardatarios... Os homens, oh, são incorrigiveis quando se trata de mulher bonita; regosijavam-se das rosas, dos cravos, das azáleas amarrotadas, pisadas, por pés que deveriam ser macios e roseos como ellas, as rosas, e invejavam-lhes o doce martyrio, o haverem sido machucadas pelas rendas de uma saia fina e quente como seu corpo. Elles mergulhavam com paixão e desejo as narinas em suas petalas meio mortas...

A medida que as horas avançavam e que o povo se retirava, o coração da Senhora de Assis fechava-se, angustiava-se, chorava. À esperança a abandonava, se partia com essa multidão que se disseminava, com esses minutos que nunca mais voltariam... Já a noite descia... Ella deveria ir-se embora nesse instante mesmo... Francisco que fôra dar umas voltas pelo jardim em companhia de amigos não tardaria em chegar...

Meu Deus, como eram profundos e torturantes os appellos de seu sangue para esse amante que a natureza creara para a satisfacção de seus mysterios, das suas dôres, do seu mal incisivo...

Atenazavam-lhe o senso a mesma anarchia, a mesma incoherencia, a mesma insubordinação, das formas intermediarias para um fim, uma selecção, um limite...

De uma pallidez ardente, Ladice curvara-se sobre o balcão; suas mãos brancas se alongavam pela face á guisa de asas fechadas de garças somnolentas; as pontas dos dedos repuxando-lhe ligeiramente o canto dos olhos, emprestavam-lhe a feição, de quem soffre nostalgias deliciosas; a desolação a possuia total, em bando... Ella nada ouvia, immobil, queda, recolhida em si como noviços quando rezam, como os prophetas quando escutavam a voz Divina...

“Flôres!” — exclama alguem que se approximara.

Ladice estremeceu, assustada, alheiada.

Flôres... Repetiu ella inconsciente erguendo a cabeça e olhando o seu interlocutor.

Theophilo Fernão de Almeida com sua cabeça magnifica de poeta, ahi estava parado, so deante d´ella.

Elle se abatia sobre o seu senso como o vento ululante dos cimos, sobre as planicies, como granadas pejadas de graças, de bençams, de labaredas do céo...

Sorrindo, dominando-se, arquejante, os olhos dentro dos olhos febris do vate bem amado, disse:

— Flôres? não ha mais...— João Dalmada ao ouvir a voz do amigo, levantou-se da cadeira apressado, e atirou-se-lhe em os braços.

— Mas, quando chegaste? E´ quasi uma surpresa saber-te aqui no Rio — indagou o Poeta.

— Ha apenas dous dias. Vim de subito, sem avisar. Ao apresentar a Senhora de Assis, Theophilo accrescentou :

— Já nos conhecemos, recorda-se? Ainda era solteira... Reconheci-a, mas julguei que me houvesse, esquecido... Ha tanto tempo... — E seus olhos baixaram tristes.

No intimo de Ladice levantou-se um hymno:

“Esquecel-o? — Amôr aonde vos escondeis que
“lhe não segredais em o ouvido a ballada de amôr que
“o glorifica e que meu coração canta!...

“Esquecel-o? — Elle que é o amôr de meu amor,
“o peccado de ouro que me rola sobre a alma como um
“ideal violento!...

“Esquecel-o ? — Elle que fizera florescer a minha
“juventude como as cerejeiras; elle, que me enchera as
“sensações de vertigens lentas, de alvoradas e luares
“insanos!...

“Esquecel-o? — Elle que se misturara em mim,
“como cabellos que se misturam, como os sons e as
“palavras, como as folhas em dia de ventania!...

Pela sua imaginação encandecida passava a synthese dramatica de todos os amôres:

"Amar — pensava ella — é sentir entrar em a
“fragilidade de um coração a desordem, os fremitos, o
“movimento, as irradiações do universo immenso...

“Marinheiros, que vos debruçais, em noite calida,
“sobre prôas fluctuantes, porque deixais escorrer sobre
“vosso rosto coberto de gilvazes, uma lagrima: san-
"gue de vossa dôr, traço feminil?

“Mulheres que abandonais lar, paes, irmãos e que
“perdeis a innocencia, a virtude como pesos super-
“fluos, porque seguieis este estrangeiro, entregai-vos
“a elle, submettei-vos a seu jugo; atirai-vos a seus pés
“qual serpente humilde e obediente!

“Homens, que ainda hontem sorrieis como um
“bem aventurado e que havieis o mundo como vosso,
“porque passais hoje curvado, acabrunhado, desvaira-
“do, as mãos tintas em sangue de um rival...

“Bocas torcidas, olhares estrabicos e colluntes,
“pallores intensos, corpos a se abaterem palpitantes,
“indisposições infindas d´alma, frenesi ardente de
“tomar uma cabeça, beijal-a e depois morrer... De-
“sejo louco de enlear mãos com mãos, labios com la-
“bios, e depois morrer...

“Amor — potencia, força, genio do bem e do mal
“—quebras a harmonia dos seres e dilatas-te sobre o
“mundo com a implacabilidade de um Deus...

“Amor triumphante, amôr victorioso sobes de
todas as cellulas, de todas as gargantas qual flamma
“eterna para fecundar a volupia da vida...

“Amôr — paraiso de goso, de rythmos, de exalta-
“ções, onde dous seres, trocam o beijo immortal, en-
“tram um em o outro como as côres, as estações, a
“gota que succede a gota!”

Vibravam em os nervos da Senhora de Ássis os estos ndmiraveis de Sappho.

Ladice retirou-se para o interior da tenda, afim de procurar alguma flôr para lhe vender. Remexia de balde os cestos, as caixas vazias, os cantos, os papeis de seda; nada mais, porém, restava.

—E´-me impossivel servil-o — disse-lhe ella.

— Ao menos nm botão — implorou elle, notando-lhe a figura esbelta.

— Se tivesse vindo meia hora antes, dar-lhe-ia flôres lindas...

— Queira ceder-me, por favor, as rosas que traz em a cintura... Os pobres a bemdirão — ajuntou o Poeta sorrindo, inclinando-se sobre o balcão.

— Estão murchas; quasi não vale a pena — proferiu Ladice, hesitante.

— Viverão ainda... Serão, afinal, um memento d´esta festa — acudiu elle de prompto.

João ficou um tanto contrariado com o gesto do Poeta. Elle tinha certeza de que a paixão de Ladice ainda perdurava; temia, portanto, a intimidade, a approximação, a familiaridade entre ambos. A acção em si nada havia de censuravel. O Snr, Dalmada, habituado em Europa, não estranhava esses galantetos que o homem e a mulher se atiram mutuamente; mas, n´este caso, havia qualquer cousa no fundo, na sombra...

Em uma sociedade em que o egoismo, factor principal, impera, domina, é digno de nota o interesse de João pela virtude de sua prima; mas, em analysando este gesto de honra, veremos que a sua origem se deriva dos mesmos sentimentos menores dos simples mortaes; facto esse que vem fortificar a celebre theoria da “Philosophia da Roupa ou das Apparencias” de Carlyle.

Sem se aperceber, a sua admiração pela Senhora de Assis transformou-se em amôr; mas, esse amôr permanecia em estado latente, tal qual aguas estagnadas, e só, de vez em quando, era sentido, desperto pelo aguilhão do ciume.

Elle se conformara com o seu casamento, mas não admittia que ella pertencesse a outrem.

Certo constrangimento, certa frieza principiava de paralysar-lhe a exuberancia para com o amigo de tantos annos. N´esse instante elle o desejou do outro lado da America, perdido em essas ilhas minusculas da glauca Oceania:

A Senhora de Ássis despregou as flores e entregou-as a Theophilo, dizendo-lhe:

— Levam-lhe crepusculos, agonias de uma vida intensa...

— A saudade me doira... vivifica-me...— replicou elle, fixando-a, tentando erguer com muita caricia as tres rosas que lhe pendiam entre os dedos, manchadas, febris, torturadas como labios apaixonadamente beijados...

— Preferem a morte... — balbuciou Ladice, apontando-as.

— Que importa! Viverão em sarcophagos — respondeu elle depositando sobre a mesa seis libras esterlinas.

Ladice enrubeceu calando em o sentido da phrase: — Elle as guardaria...

— Tornar-se-ão cinzas, particulas neutras, — exclamou João reforçando cada palavra.

— Não. Serão as pranteadeiras eternas do ether e das brisas; a nostalgia de uma festa... — Theophilo recebia em a cabeça classica o desejo das mãos, da boca, das pupilas, dos cabellos de Ladice, ebrios d´elle,

Francisco, em companhia de Armando e de Jorge vinha lentamente; ao ser apresentado ao poeta disse-lhe já conhecel-o pelo renome brilhante de seus trabalhos.

Juntos encaminharam-se para o portão principal; Armando ao lado de Ladice não cessava de falar; dava-lhe os parabens pela quantia elevada que reunira, devido em grande parte ao successo de seu perfil antigo; referia-se com louvores á noite agradavel que passara em sua casa; elogiava-lhe o espirito virilmente cultivado; contava-lhe do embaraço em que se achava sobre a escolha de um tituló para o livro que acabava de concluir; pedia-lhe permissão para servir de arbitro, indo para esse fim á sua casa, uma d´essas tardes...

Ladice lhe não ouvia a mor parte da arenga; apenas lhe acenava com a cabeça. Embora a sua attenção se voltasse integral para o vate, não deixou, entretanto, de apanhar a seguinte observação de Jorge:

— Qual! Ha mais ruido que verdade... Essa gente da imprensa exaggera, duplica, deturpa... E´ um ruflar de tambor que sobe até ao céo...— segredava Jorge mal humorado a João d´Almada, talvez adivinhando instinctivamente no Poeta, um rival temeroso.

— Trata-se, na realidade, de um talento genuino, saiba você — respondeu este, seco.

Ao despedirem-se, Francisco insistiu vivamente para que Theophilo lhe frequentasse os salões:

— Ser-nos-á altamente honroso a presença em nossa casa do poeta eminente.

Theophilo prometteu-lhe apparecer mui breve, antes da semana se findar.

Ladice sem luvas, apertou-lhe a mão um pouco fortemente, um pouco demoradamente... Seus olhos tinham a luminosidade dos amôres extremos que decompõem, desorganizam...

As rosas mortas que Theophilo levava, e que iriam repoisar em herbarios, estavam cheias della, do seu calor, das suas pulsações; evocar-lhe-iam a sua belleza poetica, a graça requintada de sua cabeça que um sopro grego animava, os traços de lírio de suas mãos brancas.

Meu Deus, quanta mudança, quantas alternações lhe invadiam o ser!

Sobre o seu coração passavam sons duplos e graves, o triumpho, a vitalidade incisiva de Wagner, os frenesis diabolicos, hystericos de Sehumann...

Sem saber porque, parecia-lhe que todos os grandes feitos do mundo lhe entravam em o amago de repente, de uma só vez, aos borbotões...

A religião se lhe apresentava como sendo uma estrada nova de oiro, de azul, de cantico, de palmas verdes... Distribuia esmolas com liberalidades estravagantes, praticava a caridade com beatitudes evangelicas e tinha arrebatamentos de fê, de ardor, de leito.

Esse amôr incitava-lhe a generosidade, os grandes principios, as mais altas ambições.

Ladice falava constantemente de Theophilo, a pretexto de tudo, como se fora seu, a sua gloria, a sua esperança.

A´ tarde, indagava mui habilmente de Francisco se o havia encontrado, e quando viria elle jantar.

A unica pessoa com a qual ella não ousava pronunciar o nome do Poeta, era com João.

Certa vez, de subito, o Snr, Dalmada inquiriu-a:

— Então Ladice como achaste Theophilo? Um pouco mais velho; não?

— Mais ou menos a mesma cousa... Olheiras muito profundas e roxas... — respondeu ella embaraçada, vermelha, evitando-lhe os olhos.

— E´ um espirito brilhante... Empolga... — continuou elle, forçando a conversa a ver se ella se expandia...

Mas a Senhora de Ássis fingia não ouvil-o e abaixada pregava muito attenta um pedaço de renda descosida...

Após uma dilação que já se lhe tornava afflictiva, Francisco, certa tarde, de volta da cidade, deu-lhe a grata noticia de que Theophilo Fernão de Almeida viria, á noite.

Seu coração se accendera como uma lampada; cobria-se de victorias, de estandartes brancos, de festões rubros...

Pela primeira vez ella experimentava a alegria, essa sensação vazia, essa torre rendada, a consolação dos pobres de espirito... Alegria, é como a neblina, como a espuma, estás sempre no alto, branca, leve, incorporea, sem continuação, morrendo em um baloiço para nascer em outro baloiço... Numen fugaz passas celere pelas almas predestinadas. Numen vadio te comprazes em o seio da mediocridade...

A Senhora de Assis, sentada no grande salão lia, á espera de Theophilo... Seus olhos pensativos e longos desviavam-se a todo o instante da phantasia amorosa e sombria de Poë. Quedavam-se tranquilos, a espreitar, para de novo volverem a saborear essa poesia morbida. "Alone", onde vibram a singularidade, a melancolia estranha de uma alma evocadora de ideias originaes, do terror, do arrepio, das invisibilidades ainda não sentidas das cousas terrenas...

Por vezes Ladice fremia de impaciencia e batia com os pézinhos no tapete, qual veadinha insoffrida a escarvar a areia...

Inesperadamente Francisco e Theophilo assomaram á porta: — O Poeta entrara para o escriptorio do Senhor de Assis, alguns minutos antes. Ladice não teve tempo de levantar-se, o vate bem amado sentou-se ao lado.

— E as rosas? — foram as suas primeiras palavras.

— Vivem... São immortaes...— respondeu elle.

— Em sarcophagos? — indagou ella,

— Não, em um poema...

— Que delicia ser-se as rosas de um poeta — pronunciou Ladice, unindo as mãos. — Com certeza cantou-lhes a belleza que se foi; as penumbras das tres irmãs mortas em uma cintura; o destino bemdito que as roubou a um fim vulgar e triste...

— Ah! Eternizei-lhos o trespasse unico; o sacrificio do seu frescor, da sua altivez, do sem viço, por alguns momentos de gozo, de prazer, de volupia silenciosa... Como é mugnifico o desejo das Rosas... — acerescentou elle sério.

— E´ desejo feminino... E´ a abnegação total — observou Ladice, orgulhosa.

— A abnegação, afinal, é o estrangulamento de todas as violencias... Nós, homens, tambem a temos para quem amamos. Não é mesmo Doutor? — disse elle dirigindo-se a Francisco.

— Sim; mas são raros os que chegam até este ponto — replicou o Sr. de Assis.

— De ordinario o homem recebe o que lhe offerecem, e satisfaz-se com isso — accrescentou o outro.

— Mas, o Senhor não é assim? Interrogou-o abrupta a Senhora de Assis.

— Sou uma excepção — suspirou elle.

— E eu Dr. sou a ambição que sóbe, a ambição que desce...

O atticismo de Ladice, o movimento de suas mãos brancas o surprehendiam, excitavam-lhe a admiração.

Elles estavam tão proximos um do outro que seus joelhos quasi se tocavam. A dominação da cabeça magnifica, do perfi suave do vate, d´essa haste que talvez tivesse o seu tronco em alemima provincia exotica, dominava Ladice, deslumbrava-a...

Ella lhe via nas pupillas quentes e paradas, leivos de sensações esquisitas, vãos á espera de todas as lias, esperanças de uma primavera verde, de uma ideia que lhe era sangue, e depois... trevas, elle, só elle nas sombras da iris. E Ladice pensava:

“O amôr n´elle será uma exaltação.”

Trataram de literatura. Theophilo discorreu sobre os grandes mestres, os genios de todas as epochas e de todos os povos. Falou sobre a influencia de Nietzsche nos escriptores modernos. Os seus processos ineditos de analyse, a sua interpretação pessoal, exclusiva, sobre os phenomenos do individuo, da especie, da natureza; a sua critica por vezes rancorosa e injusta, o seu gosto irreverente em desfibrar heroes e os tormentos inominaveis de sua alma anciada de perfeições... Contou-lhes tambem da bibliotheca magnifica que possuia.

Francisco levantou-se e foi buscar, afim de lhe mostrar, um livro curioso, cuja encadernação datava do seculo XYI.

Os dous ficaram sós... Os seus halitos se confundiam antes de seus espiritos.

Elle a achava deliciosa, com reminiscencias da virgem: membros delgados, elasticidade, traços classicos, certa ingenuidade encantadora a velar um temperamento nervoso, apaixonado, estravagante; typo accentuado da mulher moderna: intellectualidade, erudição, sensibilidade castigada, graça espontanea...

— Que livro estava a ler, quando entrei? — indagou elle, em um tom baixo, meigo.

— Poemas de Egar Poë. — E Ladice passou-lhe o volume — Conhece-o?

— Algumas — respondeu elle, folheando-o: — E´ uma musa satanica a sua. E virando o livro, leu na margem traduzidos e fortemente sublinhados os seguintes versos:

“Eu não sou como os outros são,
“eu não vejo como os outros veem,
“eu não posso tirar as minhas paixões
“de uma fonte commum...
“E tudo o que eu amo, amo sozinha...”

Ao ler o original, Theophilo, notou que a Senhora de Assis alterara o tempo dos verbos e em chegando a ultima linha, disse-o alto; em seguida, deitou-lhe um olhar rapido, pesquisador, agudo: elle vinha de ter uma revelação...

Essa phrase alheia que ella tirara de ontrem para si, essa phrase de que ella se apoderara como sendo sua, a encarnação de seu sentir — ideia que vivia n´ella como outrora vivera elle, Poë—traçava-lhe a paychologia...

Em seu cerebro, porém, uma duvida se levantara : Seria ella egoista no amôr, mesquinha, avara, cheia de imperfeições e mediocridades?... Ou o amôr n´ella seria o exclusivismo estranho de uma organização extraordinaria, uma força, um poder, uma dominação desvairada?,..

Essas conjecturas foram rapidas.

Em esse mesmo instante, os instinctos da Senhora de Assis lhe segredavam que os seus destinos se misturavam, que a fatalidade os atirava Juntos, os ajoujava para o bem e para o mal...

Silenciosa, ella tinha os fremitos da luz, das reverberações, das ondas embebidas em luares...

— Não gasta os dias em devaneios. Vejo que ama a leitura. — E seus olhos demoraram-se em o rosto de sua companheira.

— O estudo me é um prazer. — E seu perfil voltava-se para o Poeta como boca sequiosa para a agua que corre...

— E a vida e a caricia tambem — ajuntou elle em mente; mas, alto, apenas respondeu:

— E´ um prazer sagrado...

— Como desejo ouvil-o recitar as proprias poesias...

— Perdão, hoje me não é possivel... Sinto-me fatigado... Mas, qualquer d´estas noites tantas quantas exigir...

— Prefiro ouvil-as á tarde...

— O crepuseculo dá mysterios ao som. Tem razão.

— Adoro as sombras... — murmurou Ladice. Theophilo immobilizou-se-lhe em as pupilas. Essa mulher começava a inquietal-o.

Francisco entrou sobraçando um enorme volume de pergaminho já velho e bastante picado de traças. Theophilo, bibliophilo consumado poz-se a examinal-o detidamente, a fazer-lhe a historia, a precisar-lhe particularidades...

Ladice na mesma posição analysava-lhe a pessoa com minucia. Quanta loucura lhe passava então pelo espirito: aprisionar entre as mãos essa cabeça magnifica, e acaricial-a suavemente, sinceramente, Mais e mais ella se inclinava... Os seus cabellos roçavam o casaco do poeta bem amado. Sua boca, seus olhos, seus braços se estiravam ao viez, contrahidos, ardentes.

— Peccado levas a humanidade á corrupção, agarras com a mão solida o coração incauto e submisso e o abandonas ao mal destruidor...

Quando o homem ainda não era no mundo, volteavas em as linhas suaves e ethereas do perfil de um deus, nos gestos infinitos e creadores de suas mãos bemditas e no vacuo immenso e informe e hiante que lhe jazia aos pés qual epopéa silenciosa aguardando o milagre: Eras então o nardo, a pureza, a doçura, a graça santa dos movimentos celestes...

Mas o homem veio, e a serpe e a colera divina. E tu surgiste, atirado ao mundo em imprecações, sob a ameaça de uma espada a relampear labaredas! Trouxeste a raiva, o estridor, o impeto de tua origem violenta. Tens agora em as cellulas, plasmas satanicos, ritos diabolicos; castigo e delicia do universo; vivos em os seres jovens á guisa de um bolbo incendiado que se extingue e se multiplica incessantemente. Tens em as pulsações, o furor de violinos febris, de volições dementes... Estás em toda a parte: tanto na solidão do arvoredo espesso, onde o cheiro do ramo selvagem que se quebra é agudo e acre, como no olhar persistente dos homens e no respirar offegante das mulheres...

A Senhora de Ássis escreveu as seguintes phrases em seu “Diario”:

“Entro em o deslumbramento... Estou no cora-
“ção do sol... Sou a noiva da Luz...”

“Artistas, bellezas esthcticas, transbordos prima-
“veris, extase de cada ebriez, retorno dos movimentos,
“testemunhas de magnificencias idas — copiai-me a
“perfeição, tocai-me a radiosidade...”

“Vestem-me as sensações, muram-me, emparedam-
“me o corpo, os olhares, a admiração, as ancias ele-
vadas do meu poeta adorado...”

“Eu sou o mar immenso e profundo emmara-
“nhado de embrasamentos e de livores...”

“Thêo, és a divinização do meu futuro. Meu es-
“plendor, minha imaginação serão a terra nubil de
“tua curiosidade...”

“Thêo, és a cadeia de oiro que me prende ás pul-
“sações das horas e dos dias...”

***

— “Creio que os santos attenderam as minhas preces — observou Dinah d´Elvas á Ladice, vendo-a pela primeira vez após o seu encontro com Theophilo.

— Mas, por que?

— A alegria e a saude te voltaram... — E Dinah passava as mãos pelos pulsos de sua prima, beijando-a.

— E´ a doçura do mez de Maio... A innocencia da companheira perturbava-a.

— Já tenho permissão de meus tios para entrar para o convento...

— Oh, que satisfacção, até que afinal vencemos! — E Ladice abraçava-a longamente, embora passasse sobre essa alegria como se caminhasse em superficies lisas, resvaladias....

— Vai, segue a tua vocação; não foste feita para o mundo... Oh! não sabes o que elle é, filha. De todo o lado o peccado nos espreita, nos agarra, nos envenena... E uma vez em sua posse, não podemos mais sair; sobretudo quando somos moça e bonita e gostamos do prazer. Todos nós peccamos muito, mas muito... — Aecrescentou ella, alheia á significação nociva dessa affirmação...

— Quando não temos religião, quando não somos puras... Mas tu, Ladice, és bôa e do céo...

— Tambem sou peccadora, não vês ?... Rezo pouco; perco missas; gosto dos theatros, das festas, do luxo... — E em seu intimo a Senhora de Assis entregava a Deus a consciencia pesada, sombria, mas d´Elle...

— São peecados veniaes que te não levarão ao inferno — atalhou Dinah contente, risonha.

— E´ o que pensas... Pecca-se muito nas reuniões.., As lisonjas dos homens, os mãos desejos...

— E´s por demais escrupulosa. O catecismo classifica de falta grave, de peccado mortal: roubar, assassinar, cubiçar a mulher do proximo e outros... Não os commetteste absolutamente... — Acerescentou Dinah n´um riso franco, largo. Ella trazia hosannas no sangue...

Ladice sorriu; mas seu riso era meramente ficticio, limitava-se a movimentos, á contracções voluntarias dos musculos da face. Ella sentia certo mal estar em o intimo; com expressão de dor, respondeu:

— Os padres exaggeram... Por exemplo: aonde ha muito amôr, não póde haver censura... O amôr é uma evidencia de superioridade... Surge-nos em o senso, com a intuição, a clareza, a asseveração, o viço de um axioma adoravel...

— O amôr entre dous esposos, entre dous noivos, a igreja não prohibe... Atalhou Dinah.

— O amôr é um só, não obedece a disciplinas — interrompeu Ladice.

— Para abafar o amôr impuro, temos a resignação...

— Para que a tenhamos necessitamos de muita fé, e de certas disposições especises da natureza, ..

— A resignação é uma reverencia de adoração «dos instinetos, dos impulsos...

— Apanhar a felicidade e possuil-a é para nós phenomeno tão natural como beber e comer... Todas as nossas actividades, todos os nossos processos moraes tendem para ella, apesar de nós... — proferiu a Senhora de Assis, alliviada pelos seus proprios conceitos.

Dinah calada, volvera seus grandes olhos negros e simples para o rosto de sua prima a ver se comprehendia, se descobria o alcance de suas reflexões...

— Sê o Lirio do Senhor: Dá-lhe a exaltação do teu eu. Que a tormenta divina te rasgue constantemente as carnes... Que tua alma se queime todas as manhãs aos Seus Pés como um cirio e que lhe digas: — Senhor, para Vós hoje, sou menos que hontem...

Sobre a cabeça da Senhorinha d´Elva, Ladice deixava escorrer lagrimas de emoção sincera...

— E´s uma profana com vehemencias de S. Francisco de Assis... — proferiu Dinah illuminada.

— Elle é a minha paixão mystica — exclamou Ladice.

— Que elle seja o teu esposo espiritual, o teu guia, a tua protecção — acrescentou Dinah, fazendo-lhe em a fronte uma cruz minuscula.

— Que elle seja o meu modelo — ajuntou ella. baixo.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.