Exaltação (1916)/9

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LX

L´âme noble prend comme elle donne, par
un instiner d´équitê passionnée et violent
qu´ele a au fond d´elle même.»

(Nietzsche.)


Um toque rapido, seco, nervoso da campainha, ás tres horas da tarde, despertou a Senhora de Assis de sua immobilidade. Áfilada, cumprida, esguia qual mumia branca e perfumada, ella jazia estendida em o fundo de uma rêde estreita, arqueada, toda feita de torçal. Essa rêde assim cortando obliquamente um dos cantos da saleta parecia um “cutter” pallido e languido aninado em os braços amorosos e impacientes de vagas loucas, caprichosas, famintas; seus pézinhos de linhas nitidas e accentuadas se projectavam para fóra, e ora se abraçavam como amantes que se revêem, ora quietas, juntinhos, um ao lado do outro, lembravam cabeças sorridentes, a dormitar; ella se baloiçava sem rythmo: ás vezes de manso, de olhos cerrados, toda entregue a esse vai e vem inconsciente, calmo, a esse torpor doce e amargo, indefinido como a saudade: mas ás vezes ella toda fremia, talvez quando libasse de mais uma emoção e, então, se estirando, dava com um movimento largo do braço, novo impulso á rêde que prineipiava a agitar-se, convulsa como se fôra o crescente de uma d´aquellas bandeiras barbaras do Oriente. Pela janella escancarada, ella via um pedaço de cêo sem mancha, de um azul poroso, molle, frouxo, e Ladice tinha a impressão de que esse cêo estava all bem perto, quasi ao seu alcance, e que se quizesse, ser-lhe-ia facil penetrar-lhe em a consistencia anilada, apalpal-a, agarral-a em as mãos vivas e harmoniosas, envolver seu corpo em as suas dobras maravilhosas de silencio e de sonho. A intensidade da luz a não deixava fixal-o; e em mente, ella comparava seu amôr a essa luz vibrante que a deslumbruva; a vista se lhe perturbava: pontos luminosos subiam e desciam, linhas tortas, curvas e rectas cruzavam, fugiam, tornavam a apparecer, de formas bizarras, semelhantes a filamentos osseos, atravês das lentes de um microscopio... Ao longe, a fronde brunida de uma pslmeira esguia, desfraldava ao vento de entre espathas apertadas e concavas, crinas hirsutas, pennachos brancos, insignias de paz...

A senhora de Assis tinha por habito receber em seu “boudoir” as pessoas que a procuravam durante o dia. Ao ourir o tilintar da campanhia, dirigiu-se precipitademente para o espelho afim de arranjar os cabellos que lhe caiam, de todos os lados, em cachos, em ondas, maliciosos, enchendo-lhe o rosto de sopros quentes, de manchas estranhas... Em seguida, endireitou-se toda, afastou-se um pouco, olhou-se novamente, sorriu ao notar que estava corada e que os olhos brilhavam muito... Cerrou as persianas, e... Theophilo entrou...

Ladice o recebeu com muita solicitude e certa agitação em os movimentos. O seu perfil se desenhava. subtil em o ambiente cinzento e azul de sua sala: as sombras lhe cobriam por inteiro os Joelhos, os braços. o pescoço; brincavam-lhe nas mãos, dansavam-lhe em os cilios, entravam-lhe pelas madeixas, escureciam-se ainda mais nas pregas da gaze que lhe velava a nuca, nas dobras das mangas, e tornavam-se quasi negras. na parte inferior da saia e no tapete que lhe ficava ao lado... Se não fossem a sua physionomia em que se reflectia todo o fulgor de intellectual, o rubor dos labios e a humidade fulgente de seus olhares em pansa, como uma emoção que pára, como o sangue quando fraqueia, ella pareceria uma tarde de outomno com as suas tintas indecisas, azul, rosa, perola, irmanadas. mescladas, ligadas, descendo sobre a terra, sobre o arvoredo, sobre a agua, sobre o passante como uma grande melancolia, como uma legenda pastoral, como a evocação pungente e adorada de um amôr que passou...

Theophilo recebia em cheio o facho de luz que vinha das venezianas meio fechadas; o seu lado direito estava todo illuminado, todo acesso de sol; sua tez pallida tinha reflexos de metal; esse jogo de claro escuro em sua pessoa, dava-lhe qualquer cousa de sinistro e attrahente, fazia lembrar typos de Rembrandt. de Dürer, de Hooch; a gravata verde, avelludada, emprestava-lhe a pelle tons esvaceidos de cobre, que mudavam segundo a posição da cabeça. Elle era justamente o amante para essa mulher romanesca que trazia em as sensações, um feixe de rosas ardentes, de magnolias trituradas, de manacás pesados de aromas e de mel... Ella tinha em a imaginação, curiosidades virgens, cadencias mysticas, sensuaes, como as dansas, os gestos hindús; guardava em o coração o impeto, o vigor, a amplidão de um amôr fechado, contido, preso, em a esterilidade de um segredo...

A rêde chamou a attenção do recem-chegado que a achou linda, pequenina, o berço de uma fada; talvez o leito de Tetis sobre a onda espumante...

— Ha dez annos que não vejo uma rêde... Em Europa, desconhecem totalmente a delicia d´este repouso movimentado...

— E´ um costume nosso, puramente tropical. Não conheço, Dr., poesia maior nem mais forte que uma rêde sob uma laranjeira florida, em noite de luar... Oh! é terrivel o que sentimos... A alma se levanta, se torce, se agonia de violencia, de extase, de terror... Temos medo, temos ancias, temos saudades de cousas que nunca vimos, que ignoramos, mas que desejamos... E todas esas sensações são acompanhadas pela ideia da morte, pela certeza de que tudo aquillo deve acabar, que d´ahi a pouco, nós, essas flôres, easa arvore franzina, esse cheiro que sóte como um som, não seremos mais que uma pocira de oiro, que particulas cinzentas, emquanto esta mesma lua rolará sobre outras cabeças, levará o veneno de suas harmonias brancas a outros corações que se despedaçam...

Ladice em esse momento falava com o seu iaterlocutor, como se elle não fôra a sua paixão; ella toda estava estranha a elle. Seu corpo vibrava com as suas palavras e suas mãos pareciam, mais alvas, mais magras, mais frias...

— E´ necessario um temperamento muito artistico para experimentar de proposito uma emoção...

— Mas, arrependi-me, porque soffri muito... Chorando em pranto e agarrada ao braço de meu marido, deixei pressurosa aquelle logar que tanto mal me fazia...

— Quando eu tinha vinte annos, era assim susceptivel a esses accessos morbidos, a esse sentir claro e profundo, a essa percepção doentia e perfeita do mundo externo. A natureza agia em mim como se fôra a sua palpitação, o seu fremito nervoso... Ella me subjugava por completo. A primeira vez que fui ao Oriente, quasi adoeci... Adorei a Italia como adoramos a uma amante: beijava-lhe o raio do sol, as pedras, o vinhedo agarrado ás collínas com a tenacidade. a pertinacia do amor de seus filhos... Mas, com os annos isso tudo desapparece, essa vida, esse ardor, apagam-se, e dão lugar a uma calmaria monotona enervante... Meu Deus, já não sou o mesmo que era! — A colera, a angustia lhe passaram pelo olhar.

— O senhor ainda é tão moço; é antes questão de temperamento que de idade.

— Sim, mas a juventude é o momento propicio, é a estação em que as nossas phantasias desabrocham... Tenho trinta e oito annos, d´aqui a quatro, que serei eu? Nada; justamente a metade do que fui... — Os olhos do Poeta velavam-se de tristezas.

— Exaggera. O homem aos quarenta annos, attinge á sua força intellectual, ao poder da dominação; adquire o esplendor das grandes arvores, do carvalho, do cedro, por exemplo, — accrescentou a Senhora de Assis em um tom meigo, consolador, envolvendo-o em as caricias de seu olhar.

Theophilo achou graça na comparação, riu-se e respondeu:

— Sempre musa lyrica. E depois de observal-a por algum tempo, continuou — Sempre que a vejo, lembro-me do Oriente. Parece-me antes uma egypcia que uma brasileira. Em Alexandria conheci uma mulher, que era o seu retrato. Ao pronunciar essa phrase, assumiu um ar distrahido.

Era a primeira vez que elle se referia assim a ella, á sua pessoa.

— O Oriente? Sinto-o em os gestos, em os sentimentos, em os sonhos. Quem sabe se não é devido a isso que tenho qualquer cousa de oriental...

— Será uma affinidade espiritual e physica... Na realidade seus traços o são: as sobrancelhas largas, o nariz direito, os olhos fechados. — E em mente comparava a sua fronte á d´aquella rainha dos Amoritas: “Um espaço de crystal com candelabros de ouro.” E reparava que sua boca tinha a flamma, o calor do Oriente; a perfeição, a arte da Grecia; era uma boca muito capaz de aprisionar o coração de todos os homens... — O Oriente seria forte de mais para seus nervos... — accrescentou elle.

— Com certeza não supportaria a sua vertigem esfusiante; a sua atmosphera de delirio e de molleza. A minha morte, então, seria unica, original; o triumpho completo do espirito sobre a materia... E que espanto não teriam aquelles que não comprehendem, quando lessem a causa-mortis; pelo renascimento eterno de sensações... Suas mãos se extendiam para a frente, unidas, eheias de vigor e de emoção e seu corpo era cortado por um só arrepio intenso.

— Seria a morte digna de um vate. O Oriente tem todos os philtros que envenenam o organismo e a imaginação: langôres calidos, sensuaes; movimentos lentos como se fossem extasca, bafagens de sandalo e de myrrha; olhares onde o ardor baila como um sylpho. Oh! é perigosissimo para sensibilidades estremadas como a sua... De quem herdou tanta vibratilidade? inquiriu elle.

Creio ser uma affirmação scientifica — disse ella rindo-sе. — Justamente o que falta em meus paes, irrompeu em mim com exuberancia...

E´ de apparencia fragil. Não se entregue tanto a essas impressões que esgotam a vitalidade — observou elle carinhoso, notando-lhe as linhas adelgaçadas.

— Ellas vivem em mim como se fôra o seu relicario de ouro, o seu alimento, o seu asylo — exclamou ella.

— Habitue-se a governal-os e até a expulsal-os, se preciso fôr...

— Não contrario a minha natureza. Afinal ellas me proporcionam prazeres singulares. Ha instantes em que a minha vida terrena parece cessar, como se o meu senso a curvasse em adoração — respondeu Ladice banhada de scintillações.

— Aristoteles já dizia que o homem ama a sensação; mas haja cuidado porque de tal excesso poderá vir certa apathia.

— Apathia? — repetiu ella. surpresa. Não creio porque nunca sinto as mesmas impressões. São fortes justamente, porque são sempre novas. Meu Deus, trago em o ser, extensões, alternativas, profundezas... — E ahi a sua voz teve accentos de desespero e de abatimento.

Theophilo approximou-se um pouco, seu coração se desfazia em piedade, em curiosidade. A estravagancia da Senhora de Assis começava de fascinal-o.

— Mas deve soffrer muito, e tambem gosar muito — ao pronunciar essa palavra elle estremeceu levemente sem mesmo saber por que.

Ladice, de olhos baixos, respondeu-lhe:

— Tudo em mim é forte: Sou como o fogo, como a terra, como a agua... Sou uma força...

Theophilo olhava-a admirado; exultava de ver um perfil tão franzino ter a ousadia de se julgar um elemento, um poderio, uma ascendentia; e, enciumado, attribuia essa vehemencia de temperamento ao milagre da vida, da juventude, da exaltação; e, agoniado, desejava ter dez annos de menos. Em este momento um temor inexplicavel se lhe apoderou do espirito: — é que essa mulher poderia morrer brevemente sem que elle lhe conhecesse os mysterios que o deslumbravam...

— Lembre-se entretanto, de que as cordas das lyras dos psalterios, dos bangos se arrebentam quando a musica é arrebatada, impetuosa...

Ladice deitou-lhe um olhar longo, sombrio, e falou sorrindo:

— Qu´importa! A morte me será bemdicta... Recebel-a-ei como a ultima das volupias humanas...

— Mas é uma volupia que só desejamos quando o derradeiro pedaço de oiro da vida nos rola das mãos; quando já deixamos atrás de nós, esse instante unico da existencia, em que nos é dado brincar com o azul, à ebriez, a imperfeição, em que bebemos o luar em fundos de palmas macias e roseas; em que encaramos os astros com a altivez de um rival...

O ar fatigado da tarde, a fragrancia um pouco activa da flôr do Imperador em um jarro ao lado d´elles, o pallôr da luz já bastante amortecida, o sofá, a rêde, as sedas, a juventude de ambos e a solidão que os cercava, embriagavam-n´os, intoxicavam-n´os brandamente, enchiam-n´os de poesia, de sentimentalismo, de amor. Suas vozes misturadas faziam um murmurio abafado, um som de cinnor hebreu, um rythmo mavioso...

— Morrer-se moça, que cousa bella! — Exclammou ella. Imagine Doutor, um corpo que tem do pé á cabeça rosas abertas, entrelaçadas, suffocadas de sol! Um corpo, em que a seiva corre de ponta a ponta, qual brado de guerra, qual epithalamio entoado por vozes varonis, cair de repente inerte, silencioso, terrivel como um ponto final, um limite, porém majestoso, sublime, orgulhoso, porque não morreu de todo, pois, a sua ebullição, o seu amor, a sua magnificencia pairarão no ether, no verniz das folhas, nas brumas, nos botões em eclosão... E´ o privilegio, Doutor, da juventude, que, quando morre, só morre a meio...

— Na verdade é o triumpho esplendido da juventude; mas, é preciso viver mais, muito mais ainda, para que elle tenha todos os esplendores... — Os olhos do Poeta fixaram-se em as curvas finas dos hombros da Senhora de Assis.

— Queira cumprir a sya promessa, recite-me poesias suas — implorou Ladice.

— Oiça, “Volupia de Rosas”.

Theophilo n´essas estrophes cantava-lhes as volupias multiplas: pelo azul, pelas sombras, pela luz, pelo fragor faminto dos insectos, exaltando, porém, a mais terrivel e cruel de todas, a sua volupia fatal, mortifera, a sua volupia pela carnação feminina...

Ladice com os cotovellos fincados nos joelhos, escutava:

— E´ bem o poeta da emoção: as suas rosas são seres sensiveis... São eu mesma.. Ajuntou ella baixo para si vaidosa, estarrecida.

— Ellas me trouxeram os seus gestos mysteriosos, e os seus extrêmos... São a Senhora mesma... — E elle levantou-se.

A Senhora de Assis acompanhou-o até a porta. Ao apertar-lhe a mão sentiu uma ternura extraordinaria invadir-lhe em massa o corpo. A sua alma se offerecia ao vare bem amado, como um bouquet olhando-lhe em os olhos, disse-lhe:

— Venha amanhã, á noite. Recebo; encontrará bôa prosa...

Retendo-lhe a mão, Theophilo respondeu-lhe:

Prefiro a sua á de todas as eminencias... E´ devéras admiravel... Sim, virei amanhã... E saiu.

O dualismo, a belleza espiritual de Ladice o inebriavam. Era qualquer cousa de novo, de fresco que se lhe apresentava á analyse. Elle a achava um typo original, cosmopolita, que tinha, em o ser, a violencia dos bogarys, o calor das rêdes, a flexibilidade dos bambús, a nostalgia das violas, a acidez das mangas, as sonoridades agudas, estonteantes, do canto da cigarra, assim como a revereneia, o mysticismo impenetravel das cidades syrias, e o colorido, a claridade, a abundancia das flôres de Nippon. Era a mulber que elle procurava desde que saira da adolescencia; era o mal estar eterno que sempre lhe coroava os prazeres por mais subtis que fossem; era a inconstancia, o movimento, o desasocego, o rancor surdo que lhe minavam o peito e que, ás vezes, o faziar um revoltado; era a flamma que o queimava em as noites de Julho, quando amparava com mãos ardentes, a cabeça pesada de desejos e de amôr por um ser que nunca eucontrára, por uma amante desconhecida que tivesse as formas da Belleza e da Intelligencia.

Ha alguns annos atrás elle a vira uma vez, porém rapidamente, e não passou tres noites sem dormir como aconteceu a Goethe quando vio o retrato de Mme. de Stein; porém recordava-se que recebera uma funda impressão, apesar de lhe não haver conhecido o maior encanto, o traço dominante de sua extructura, o relevo de sua individualidade: a attracção estranha de seu espirito, de seu modo de ser. Ella encarnava o estro de sua epocha: — poema, ardor, musica, flôr em desordens rythmadas. Theophilo sentia a sua energia juvenil voltar, enfunar-lhe o sangue, renovar-lhe as pulsações; ella parecia dispôr do poder de Doumouzi, que fazia reverdecer a terra, remoçar as vergonteas, engendrar os rebentos, efflorecer as ramas... Seu perfil fino, inquietante se lhe agarrava ao coração com a teimosia, a crueldade de um remorso, de uma dôr infinda. A anciedade, o deleite, tangiam-lhe em os nervos, subiam-lhe dos membros, á guisa de evaporações indecisas, lacrimejantes de lagôas immobiles...

A Senhora de Assis, essa tarde, não saiu. Preferiu ficar em casa sózinha. Queria reviver o seu colloquio com Theophilo; queria desfolhar detidamente em o silencio e a solidão essa margarida magnifica que se lhe brotára em as sensações... Ella trazia em o intimo uma vehemencia branda, refreada, forte como uma essencia, nimia, actuante, que lhe desfibrava de manso o bom proposito, a razão, a virtude. Era como se lhe houvessem passado em a alma, uma esponja embebida em espicanardo: paz rubra tumultuosa, estonteante, cingia-a, envolvia-a, enrodilhava-a, entorpecia-a, como se fôra um cendal tecido de vidas multiplas. Seus hombros caidos, a nudez de seus braços, as linhas descidas e firmes de seu corpo primaveril, as dobras preguiçosas de seu vestido de musselina, saturados de amor, recendiam amôr...

Mas, ás vezes, ella cortava essa enchente impetuosa de prazer e de goso, com um gesto rapido, com uma palavra dita alto, como sendo o echo de um amargor, o traço de um queixume que lhe terebrava a consciencia: em rememorando a sua attitude, os seus olhares, a sua linguagem para com Theophilo, lamentava-se de haver sido fria, de lhe não ter deixado transparecer de algum modo essa paixão que era o esplendor de sua existencia. Que lhe importavam o pudor, o acanhamento de seu sexo de nunca ter a primazia em a seducção? Ella abjurava tudo, escrupulo, argumento, subterfugio; recusava lançar mão do ardil feminino a que muita mulher recorre com successo: de jamais revelar ao homem o que se lhe vai em o coração. Seu amor era differente. Ella encarava Theophilo como sendo o typo mais perfeito e completo d´essa natureza que lhe era mãe, amante, deslumbramento... Via n´elle o symbolo animado do que ha de grande em o universo: amôr duplo, selvagem, razzia destruidora de seu ser, irrompendo, espontaneo, verdadeiro, livre, vehemente, repentino como uma exclamação.

* * *

No dia seguinte o salão da Senhora de Assis começava a encher-se, ás oito horas da noite. A vida politica do marido forçava-a a receber todas as semanas. Ella desejava ardentemente que ninguem comparecesse á recepção desse dia, sobretudo Armando Sueiro que a importunava com seu amor visivel e terno, e João Dalmada, cujos olhares indiscretos, ella temia. Durante o dia Ladice espreitava o céo afim de ver se descobria alguma nuvem, indicio de tempestade ou chuva; mas em vão! O azul continuava puro, immovel, fixo, como se fora o fundo de uma tela.

Os primeiros a entrar foram justamente esses dous: Armando vinha exuberante, loquaz, contente, enthusiasmado como se houvesse passado dias inteiros a agoniar, e nesse instante sómente voltasse ao frenesi da vida. João trazia um sorriso dubio, o disfarce, a illusão de uma alegria.

A Senhora de Assis logo que os vio, teve certeza de que essa noite seria esteril para seus planos, e, de antemão, resignava-se, revestia-se de paciencia para aturar as declarações fofas, theatraes de um e a ironia cortante de outro. Annunciaram os Senhores de Sant´Hilario e Dinah. Ladice entristecida, sentia mais e mais afundar-se-lhe o coração... Ella toda tomava involuntariamente a physionomia, a compostura de victima.

Theophilo Fernão de Almeida foi um dos ultimos a chegar. Ladice notou-lhe a pallidez e a elegancia extrema. Recebeu-o com effusão como se viera de motu-proprio, e não a seu convite. Elle lhe perguntou baixinho, como passara e se estava bem; Ladice tambem lhe respondeu em o mesmo tom, porém, muito perturbada pela maneira carinhosa com que elle lhe falava. As suas palavras caiam quaes gotas de mel espesso, qual gomma perfumada de lirio sobre sua sensibilidde magoada; parecia-lhe em este instante que a sua alma se estreitava em uma só dôr aguda, pungente, martyrizante, louca...

Theophilo em seguida dirigiu-se para a sala onde Francisco se encontrava. Muitos homens já o conheciam de nome e outros pessoalmente. Regosijavam-se todos de sua presença e do ensejo que se lhes deparava de o ouvirem. Havia mesmo certa curiosidade da parte de alguns, devido a rumores com fóros de lenda que corriam a seu respeito; tratavam-n´o com gentilezas e certo zelo.

Ao ver tanta homenagem, o coração de Ladice dilatava-se de orgulho: Elle era o seu reino, o seu romance, o hymno febril de sua juventude...

Dinah commentava um pouco ironica, em um dos angulos da sala, o noivado de una companheira de collegio, que até então se conservara fiel á sua doutrina: — Não se casar afim de não viver sob a dependencia do homem. — A Senhora de Assis tomou o facto como muito natural, e poz-se a gracejar, a explical-o maliciosamente, quando Armando se approximou. Elle ouvira a ultima phrase: "E´ mais uma astucia de nosso sexo".

— E´ mais uma astucia de nosso sexo — repetiu elle alto. — Isso é tremendo, em a boca de uma mulher... Quanto mais conheço a psychologia feminina, mais perplexo fico — accrescentou elle abanando a cabeça.

— E´ mesmo muito confusa, respondeu Ladice. — Tal qual a via-lactea. Vista a olho nú, milhares de estrellas atiradas a esmo... continuava ella, rindo muito.

— Perdemo-nos em tentando investigal-a... E´ devéras indecifravel. — Exclamou elle, achando-a infantil.

— Diga, entretanto, se essas sombras não são nosso encanto, quiça nossa attracção maxima, uma superiodidade? — Inquiriu-lhe Ladice victoriosa.

— O engenho humano ha penetrado em tudo: destroe e crea diariamente theorias, substancias, minérios, e até a vida. Principiam mesmo de negar a existencia dos corpos simples. Mas quando se atira a estudar a mulher, esbarra tonto, indeciso, ante tanta variedade, tanta contradicção... Nunca se sabe ao certo o que ella é, e o que deseja — ajuntou elle cheio de ironia.

— Nós mesmas, Senhor Armando, não o sabemos. Nossos actos muitas vezes, obedecem a um mero impulso momentaneo: trazemos em o seio os germens de todos os sentimentos, volições e energias...

— A mulher é a paciente infeliz de paixões mobiles, respondeu elle.

— No censure esse ser fragil, estranho, perigoso sobre cujos nervos, passam em tropel, as pulsações universaes.—E sua voz fremia.

— A mulher é apenas a vontade do homem e nada mais — verberou Jorge, chegando-se.

— Oh! a bella definicão de um demolidor, exelamou a Senhora de Assis. — Declara-nos, então, irresponsareis?

— Peremptoriamente — affirmou elle.

— Já meditou sobre os direitos que nos concede?

— Não os podeis ter...

— Dá-nos, pois, uma liberdade incondicional, ampla... Oh! a bella definição! Repetia Ladice, rindo-se, estrepitosa...

— Olha Jorge, sejamos francos bastantes vezes, somos nós a vontade d´ellas — accrescentou Armando.

— Obrigada, fallou como um homem do mundo — replicou Ladice.

— Estou tão convencide do que externei, que seria incapaz de condemnar uma mulher — concluiu Jorge, satisfeito, retirando-se.

— Até que afinal soube ser gentil... Ambos attingiram o mesmo fim por vias diversas. Os meus agradecimentos.— E Ladice ligeiramente curvou o joelho.

— Não fosse a sua inconstancia, que nos inspira temor, e... seria ella perfeita — disse Armando.

— E’ a sua força, o seu imperio perante o homem essa eclosão continua de novidades, de mudanças, de estimulos, originados por uma necessidade instinctivea de se renovar, de conhecer, de abranger todas as sousas, de cingir o mundo, a sciencia com o espirito, as ideias, de se livrar emfim da ausencia de emocão, que é a morte de sua vida espiritual.— Ladice exultava do que dizia.

— A presença de uma mulher evoca sempre o amor, a tragedia. Essa sua fadiga de emoção, o seu alvoroço por uma sensação ainda não sentida, a pressa de abandonar o amante que, ainda ha pouco, acariciava, são verdadeiras torturas para nós...— Armando felava pausadamente, pesando cada palavra, embora a sua attenção se voltasse para a Senhora de Assis, afim de lhe surprehender qualquer manifestação pessoal.

— A mulher é muito subjectiva, Sr. Armando. Queira perdoar-lhe, portanto, as rupturas que produz em o coração bem formado dos homens...

Depois de um pequeno silencio, Armando lançou a seguinte phrase, a guisa de tentativa.

— Eu, por exemplo, não lhe creio no amôr...

Ladice sorriu, percebeu-lhe o intento, quiz responder-lhe que o amôr na mulher é a sua mais alta violencia; mas, preferiu deixal-o em a duvida, dizendo-lhe:

— Esse sentimento ainda lhe vem obedecer aos caprichos de sua natureza oscillante...

Armando Sueiro sentiu-se desconcertado. Esperava uma replica negativa, algum louvor exaggerado á fidelidade feminina, alguma defesa brilhante contra essa pecha que jogam á mulher. Pasmava da sinceridade com que ella lhe acudia ás perguntas, pois era esse o seu proprio juizo sobre o sexo fragil... Era a primeira veg que ouvia de boca feminina tal verdade. A sua curiosidade o incitava a saber mais, ainda mais... °

— Diga-me, D. Ladice, que é que a mulher mais admira em o homem?

Apés haver pensado um instante, respondeu-lhe:

— O que a mulher mais admira em o homem é o seu lado nebuloso, metaphysico... O Senhor não póde imaginar a influencia, a magia que exerce em seu espirito... A mulher tem o delirio do desconhecido — accreseentou ella, saboreando as torturas que se passavam em o coração de Armando, conscio de ser totalmente desprovido da qualidade attractiva acima referida. Elle trazia a alma em a superficie, em os olbos, em a expressão dos traços, em o movimento de suas mãos; era uma alma sem horas mortas, sem escuros, sem subtilezas.

Essa phrase veio qual setta rasgar-lhe o amôr proprio, a esperança; aniquilar-lhe os sonhos altaneiros. Por minutos elle tomou a feição abatida de passaro ferido que deixa tombar as azas...

A Senhora de Assis em se afastando, deliciava-se intimamente do damno que causára á compustura elegante do chronista.

Toda a mulher é astuciosa e tem qualquer cousa de felino. Gosta de judiar, de maltratar, de martyrizar tanto a presa, que ama, como a que lhe é indifferente.

Armando permaneceu calado, fumando, incapaz de encetar qualquer conversação.

Dinah, ao seu lado, não comprehendia, não se podia explicar a transição subita de Armando e tachava-a de exquisitice de literato.

A Senhora de Sant´Hilario se entretinha com um velho Visconde, typo conservador, sempre irritado e maldizente, que não cessava de menoscabar a sociedade moderna e as prerogativas concedidas á mulher de hoje.

Em a sala contigua jogava-se o “bridge”. A Senhora de Assis esquivou-se furtivamente do salão para uma pequena varanda. Ella tinha o coração cheio de segredos e de exaltações: todo o seu ser era um só dithyrambo venusto, attico, incisivo...

Embrenhando as mãos, os pulsos pela rama virente de uma trepadeira que vicejava ao redor, Ladice, sentia voltear-lhe em a imaginação excessiva, o lyrismo, os assômos, a fadiga d´essa natureza que se lhe desdobrava aos pés qual incensorio immenso e trescalante... Sorria ao ver os jasmins embutidos de luar, queimarem-se de immoderações e cairem sobre o azulejo, á guisa de estrellas mortas, de illusões perdidas, de votos quebrados. Não invejava o arvoredo farto de calma e de frescor, furar mansamente o azul á semelhança de ilhas fluctuantes. Dava as costas ás rosas immoveis, rigidas, de apparencia vitrea, tal qual estivessem sob tampos de crystal, tal qual olhos parados de somnambulos erradios... Enviava a sua sympathia, a sua compaixão aos cravos que levavam a sua dôr ao auge, pedindo o orvalho, a aurora, o sol, a febricidade das asas de mica... O luar enfaixava-lhe a cabeça como um turbante, e, caindo em cheio sobre os crotons, avivava-lhes, ainda mais, as vestes sangrentas... Rumor surdo de vozes masculinas veio bater-lhe em o ouvido. Ladice abeirou-se da porta para melhor escutar. Ella viu Theophilo, João e mais dous outros approximarem-se e sempre falando, deterem-se á curta distancia do lugar onde se achava. Ao ouvir algumas palavras, a Senhora de Assis logo atinou com o assumpto da conversa. Referiam-se a um caso sensacional, que os jornaes do dia narravam com a crueza e exactidão de analysta indifferente e de arbitro — uma senhora de alta distincção que abandonara o lar.

Ladice se admirava da pouca deferencia com que tratavam, a sós, a mulher. Rasgando toda a cortezia, mostravam-se ferinos, maliciosos, golpeadores subtis, impiedosos para com as suas paixões. Mas ella tambem reparava, e com certo orgulho, que apesar de todos esses ditos mordentes, elles, pobres infelizes, permaneciam seus escravos, suggestionados, acorrentados á sua belleza, ás suas proprias fraquezas.

Ella ouvira bem nitidamente João dizer que a virtude era fragil, porque era feminina, assim como a resposta de Theophlio, “que a fealdade e a estupidez dão força á fraca virtude.” E em o fundo de seu coração, Ladice sentia essa verdade e via-lhe a tenuidade, a tibieza, a inviabilidade quando ella perde os seus maiores apoios, os seus mais fortes adjuntos: o amor, a fé. Continuando a pensar, apanhava machinalmente um a um os jasmins.

— Dir-se-ia Euphrosyna, a mais bella das Graças, a colher rosas, myrthos, tulipas para a cintura esbelta de Venus.

Ladice voltou-se rapidamente e deu com Theophilo ao seu lado:

— E´ uma mulher do seculo XX que tem para com as flores, as plantas, a natureza inteira, o culto pagão, afervorado, excessivo, que Zoroastro nutria para com o sol... — E extendeu-lhe a palma da mão onde estavam tesos ainda frios e immaculados tres jasmins.

O Poeta curvou-se para melhor vel-os. A sua attenção, porém, se fixava em a fórma espiritualizada, nervosa de sua mão, em a ponta rosea dos dedos que pareciam brincar com flammas e em a brancura maravilhosa da pelle... Elle os tomou e os levou aos labios, ás narinas, e emquanto os fitava, dizia a meia voz:

— “Jasmin, flôr dos temperamentos abrasados e amorosos, o teu perfume grita tão forte na alma que chegamos a desejar a morte, á força de adorarmos a vida... Com certeza as nymphas do monte Ida, passaram, para as tuas petalas simples, as pulsações de seus corações, os rythmos estuantes de suas dansas. A primavera fez cair sobre ti, como uma bençam, a sua louçania, a sua ardencia, a sua diaphaneidade. Tens a impureza delicada da pouca idade, d´aquelles que ainda esperam a gloria de amar. A virgem que te aspira, perde um pouco de sua innocencia... A mulher que te aperta em as mãos, vira a cara de medo de se trahir... — Ahi elle parou e olhou-a. Ella se apoiara sobre o balaustre, todo o seu corpo se dobrava, se vergava, se inclinava, como um bambú, como um junco. Elle, o ermo, as suas palavras entravam-lhe em o coração quaes arpejos flammantes, qual hallucinação... O encantamento, a vertigem dos jardins de Shiraz rolavam-se-lhe pelos sentidos, á guisa de represas partidas, rotas... Calado, elle continuava a olhal-a, a sentir-se preso por esse ser fragil tão manifesto e intensamente perturbado... Elle via os seus corações agitarem-se desordenados, á semelhança de rutos rudemente sacudidos pelo vento que passa...

Sempre silencioso, Theophilo retirou-se para o salão, sentindo sua pessoa envolta em arcos de triumpho.

Ladice, sózinha, procurava, em vão, acalmar-se, seus olliares se alargavam pelo espaço: de um lado a natureza vigorosa, indomavel, estimulante em uma promiscuidade seductora se confundia, se sustentava, se unia, se tolerava jaqueiras umbrosas, austeras quaes juizes inexoraveis, encravavam-se em as vestes fluctuantes de bambual espesso; abacateiros viris, intromettiam as suas hastes nodosas pela rama espraiada de cajueiros infecundos; grumuchamos e ameixeiras em efflorescencia, formando uma só fronde, alçavam-se para o alto como offrenda da terra á fidelidade das estrellas da lua radiosa; umbaubas esguias, polidas, com reminiscencias de arte grega, grupavam ciosas suas folhas amaneiradas; paineiras despidas, esgalhadas, hartas, emergiam do verdor como espectros, restos de pilhagem, como o testemunho indefesso da maldade alheia. A coma ondulante, adherente, vaporosa das jaboticabeiras enfileiradas, tinham, em a sua immobilidade, meneios de vaga suspensa, de convulsões paralysadas. As frondes dobradas das palmeiras assemelhavam-se a calices transbordantes de seiva e chlorophylla. Isoladas, dominando o laranjal, as tres pontas de um jambeiro erguiam-se ameaçadoras qual formidavel tridente, brandido por algum Neptuno raivoso... Além um immenso trançado de arvores, de copas, de folhagens, de galhos, de troncos cobria o outeiro esconso, derramava-se pela vertente desenhando em o azul uma linha sinuosa, colleante, ligeira, como a borda de uma asa... Em o jardim a seus pés, a natureza já se apresentava com requintes, delicadezas, de civilização. As flôres tomavam attitudes languidas, copiavam o modo, o gesto, o donaire feminino. Cada uma se esforçava por conservar a sua individualidade, a sua identidade e como o coração das mulheres moças, ellas, as flores, á noite, contrahiam-se delirantes... Camelias e azáleas nimbadas de bar gloriavam-se de sua nudez impeccavel e assim brancas, claras, luminosas, evocavam a perfeição de uma ideia... O chão manchado pelas sombras tomava um aspecto umbratico, sinistro...

A Senhora de Assis sentia esfusiar de si, do ar, de tudo, o mesmo esto, a mesma vibração, o mesmo clamor e como um exame de particulas e de pollens fecundantes, subir, subir, disseminar-se pelo ether, levar o seu principio activo a outras sensibilidades, germinar uma vida nova, em outros seres...

Ladice deixou a varanda, hesitante, lentamente, pesada de languidez. Ella trazia agarrada á sua physionomia, ao seu corpo, os vestigios, as marcas, de sentimentos que foram sustidos em a sua força, em a sua tensão maxima...

Sentou-se em o sofá. A figura, as palavras, a belleza de Theophilo, desenrolavam-lhe as trenas de oiro do pensamento; provocavam-lhe delirios em os nervos, em a intelligencia; emprestavam-lhe á alma, sensações de conquista, de exito, de immortalidade...

As columnas, as flôres, os moveis, os reposteiros, os separavam, escondiam-n´os um do outro, inhibiam-n´os de se confessarem mutuamente o que lhes ia em o coração; mas os seus olhares aproveitavam o minimo espaço, embatiam-se, descançavam um em o outro, amavam-se como loucos, com atrevimento e audacia...

Theophilo conservou os jasmins em as mãos, e a todo o instante, beijava-os demoradamente, apaixonadamente, como se lhe estivese a beijar os cabellos, os cilios, os labios, invenção graciosa, terna, delicada de manifestar-lhe o seu affecto...

Ladice em vendo, pensava: Essa flôr assim de longe, em a sua boca, tem a forma de uma cruz de Malta... “Signal maravilhoso de redempção sellai o nosso amôr, a sua eternidade, o seu triumpho...”

Ella recebia com sorriso esse gesto de amôr, esse agouro feliz, essas asas angelicas que se abriam sobre si, essa alvorada de luz, de goso, de invocações admiraveis...

* * *

— E´ a ultima noite da lua cheia, Levar-me-ás á Praia de Botafogo. Quero ver a agua, o luar, as montanhas, dizia Ladice ao seu marido.

Pela sua apparencia Francisco percebeu que havia de ceder, de satisfazer-lhe o pedido, tal a vontade extraordinaria que se escondia em aquella compleição franzina.

— Essa tua effusão pela natureza, ao envez de arrefecer, augmenta prodigiosamente... Já não a tens mais como manifestação brilhante, como regalo maravilhoso para a sciencia, para a vista... Levas ao exaggero, entras-lhe em os arcanos, vives-lhe a vida e arrancas-lhe sensualidades novas... Se escrevesses quanta revelação estranha, atirarias ao mundo... Para mim, ella é apenas um espectaculo apaziguante, e as impressões que recebo não passam além dos meus sentidos externos...

— Meu Deus! como és feliz em te conservar surdo á sua poesia que dilacera e desvaira, aos seus appellos insistentes, continuos, atordoantes trazidos pelas brisas... nós e ella somos elaborados pelo mesmo mysterio. Oh, Francisco, desconheces essa volupia terrivel — sentir-se a natureza... — e o seu olhar caia sobre os raios obliquos da lua que se erguia lentamente por detrás da collina...

De facto Francisco não penetrava muito em a personalidade de sua mulher. Elle era um homem positivo de ideias bem definidas, calculadas, solidas, estaveis, sem phantasias nem ductilidades; talvez fosse devido a uma saude perfeita, o equilibrio, a harmonia de seu moral. Faltava-lhe certa agitação de nervos, certa febricidade de imaginação, um sensualismo ideal mystico, um sonhar incessante de loucuras extraordinarias, assim como a paixão que ardia em o coração de Ladice perennemente como a vida em todo o universo...

Existia verdadeira incompatibilidade intellectual entre os dous. O Senhor de Assis embora lhe não comprehendesse a alma exquisita, tributava-lhe, entretanto, um amôr immenso, sem reservas e orgulhava-se de sua originalidade exuberante e inopinada... Ladice, ao contrario, sentia vivamente a differença, os espaços insuperaveis, as alturas invenciveis que lhe separavam, lhe afastavam o espirito e o corpo; a sua natureza repudiava qualquer alliança, a sua resistencia individual impedia-lhe a communhão com um homem de sensações e de estructura d´alma antagonicas ás suas. O seu temperamento passional, poetico exigia um outro identico, para se diffundir até ás raizes, ás profundezas, ao fim da vertigem, das emoções apollineas.

Na vespera a Senhora de Assis dissera bem alto á sua mãe, afim de que Theophilo tambem ouvisse, que iria hoje á Praia admirar o mar. Duvida e esperança, sim e não, pallôr subito, doce mal estar obumbravam-lhe a todo o momento a fronte e o coração...

Elles chegaram um pouco tarde. A concurrencia era assaz numerosa. Não havia, porém, a animação caracteristica de días festivos; carecia uma exhibição, um motivo qualquer para estimular, trazer a lume, do fundo d´essas sensibilidades ananthas, a alegria, o ruido esfusiante, contagioso, o fragor de vida, que fulmina as multidões de um só golpe e as faz estremecer unisonas...

Essas pessoas caminhavam sempre sem parar, como que perfazendo um dever, uma obrigação; umas atrás das outrus, enfileiradas, cabisbaixas, inexpressivas, de uma docilidade automata e enervante que até fazia lembrar “le troupeau” de Nietzsche. Ladice no meio d´esse povo que antes parecia um rebanho tranquillo e pacifico, via a sua superioridade augmentar, duplicar, elevar-se. Tinha consciencia de trazer em o ser, faculdades divinas, fragmentos de transcendencia, culminancias, valores extraordinarios...

O Bar estava inteiramente tomado, elles caminhavam a esmo, á cata de um lugar vazio, quando alguem se levantando bruscamente, interceptou-lhes o minho.

— Venham para minha mesa — disse Theophilo. conduzindo-os para o ado do mar.

As pulsações de Ladice affrouxavam, corriam-lhe a vida e a morte simultaneamente em as veias.

Theophilo lhes apresentou o seu companheiro Dr. Isaac de Xavier, secretario de legação.

A exiguidade do espaço os collocara em uma proximidade perigosa e tolhia a cada um qualquer movimento exaggerado.

Ladice sentia um prazer infrene em provocar, em levar aos límites as sensações que lhe suscitara essa presença maravilhosa: sobre a madeira de laque branco, de proposito, seu braço nú, sem luvas, se estendia qual raio de luz, qual hyphen symbolico, ao lado da mão grande e fina de Theophilo. Esses dous orgãos indifferentes, promptos a obedecer ao aceno de uma intelligencia superior, não tinham para os passantes outra significação a não ser a sua propria; mas para a Sra. de Assis e Theophilo elles eram seres animados, os seus corações, as suas consciencias, o seu amor, as suas declarações afervoradas, as suas almas a enfrentarem uma á outra, as suas bocas a se dizerem: eu te amo!...

Avassalada por uma força, por uma ideia unica demente, que a arrastava, a empurrava, a obrigava a fazer, apesar da reluctancia, da opposição, da obstinação de sua vontade, de seus principios, Ladice avançava de manso, chegava mais e mais o seu braço até tocar-lhe de leve em a mão, recuava de novo, parava á curta distancia e assim permaneciam quasi unidos, quasi apertados, sentindo ambos irradiar-se-lhe o calor de suas pelles!

Theophilo falava com vivacidade e eloquencia, assiduamente, como quem trata de desviar a attenção alheia, de destruir um pensamento importuno. Ladice, calada, ao parecer de quem escuta, rendia-se inteira, á influencia, á suggestão absoluta de sua pessoa; ella o amava com a mesma grandeza e liberdade como se estivessem a sós... O lugar, a gente que entrava e saia, seu marido, não tinham o poder de reter, de suspender, de fazer calar, os assomos de paixão, de prodigalidades estravagantes, de caricias, de beijos, sem rythmo, longos, silenciosos, como a morte sobre outra morte, que se infundiam em as suas cellulas, com o impeto, a bravura, a galhardia do canto das graunas ao saudar o romper d´alva, a dissipação das brumas...

Com o sabor lyrico de um amor triumphante, a alma de Ladice parava immobil, extactica, ante o deslumbramento que a rodeava. A lua, sem o pallor do receio e da fadiga, se apresentava com a limpidez, o esplendor, a magnificencia da nudez! Fixando-a, Ladice, em seu intimo, lhe dirigia esses appellos:

“Luz das trevas, poder infinito, doçura do espaço, rosa candente, introduze em as minhas fibras o encantamento de teus amores secretos, a languidez delirante de teus movimentos...

“Coração do ether, do desconhecido, do universo, que trazes em as tuas paredes como as charamellas e as tubas, os votos, os sopros, os protestos de amor dos seculos, que já se foram, dá a immortalidade ao meu sentir...

“Brasa accesa pelo fogo eterno, desejo inflammado, que corres atrás dos dias, empresta ao meu olhar o fulgor de tuas scentelhas divinas...

“Medalha de ouro, presa em o seio da immensidade, alegria dos horizontes, das sombras, das nuvens, graça dos astros, nympha do azul, curva-te, para que eu te beije...

“Virgem romantica, virgem inspiradora, amorosa dos mares cantantes, que leva o som rubro, o estylete da nostalgia, do suicidio, o estertor aos corações, aos espiritos que se desejam, augmenta a minha belleza, por amor do meu amor!...

“Esphinge, que attrahes a sabedoria, a experiencia, a observação, o labor da immaterialidade humana, protege-me; verte sobre meus cabellos, sobre a minha fronte o teu philtro mysterioso...

“Mãe admiruvel, que abraças a terra, o céo, as cousas vivas, mortas e inertes, transmitte-me a vastidão, o dominio, a universalidade de teu amor...

“Reverbero do sol, esphera ardente, esteril, ignea, que rolas desesperada, qual amante infeliz, faze que eu desconheça esse verme, esse fogo que consome...

“Deusa surprehendida em o banho por Acteon, Diana, que passava as noites em a cabana de Endymion, Hecate, que presidia aos sortilegios, á magia, ás praticas supersticiosas, recebe em sacrificio, em recompensa o meu coração e toda extensão de seu amor, a sua beatitude e a sua maldade, a hecatombe de annos infructiferos e de sensações virgens, a sua divergencia, o seu capricho, a sua exaltação, a sua fé, a sua lagrima, a sua esperança, a sua imperfeição...”

Com um suspiro longo, profundo, Ladice voltou o rosto e deu com os olhos curiosos de Theophilo, cravados em a sua physionomia. Ella sorriu, elle tambem sorriu, continuando, porém, a interrogar, a desvendar, a buscar as paixões que acommettiam esse perfil transido, onde a inteligencia toda se aninhava... E elle via como essa fórma immortal subjugava os elementos: a terra, o dia, a natureza, o mar immenso, as horas, curvavam-se a seus pés, como animaes domesticados, mansos, fieis... E em seu pensamento se avolumava o firme proposito de conquistal-a, de possuil-a eternamente.

A Sra. de S. Hilario e Dinah chegaram.

— Estava crente de que não virias mais... E´ tão tarde! — exclamou Ladice.

— Tivemos visitas. Não podiamos sair, respondeu a Sra. de S. Hilario.

Apoiado sobre o balaustre, Theophilo parecia olhar o mar.

— E se fizessemos uma excursão em bote automovel pela praia?... Disse elle, de repente.

A proposta foi acolhida com enthusiasmo.

Ladice, de mãos juntas, extremamente commovida, ante a perspectiva de um passeio tão cheio de poesia italiana, permanecia silenciosa.

— Que delicia! — observou timidamente Dinah

— E´ uma ideia excellente, atalhou Francisco.

— Lembrar-me-ia de Veneza, — accrescentou o diplomata.

Theophilo olhava avidamente para Ladice, a ver o que ella pensava a respeito.

A Sra. de S. Hilario, depois de pequena indecisão, disse:

— Eu fico, porque não ouso affrontar a agua e a noite. — E sentou-se.

Essa objecção feriu o ouvido de Ladice.

— Será possivel, mamãe! Tenho certeza que nenhum mal te advirá. Vamos, gostarás immensamente. A noite está linda! — Mas em seu coração, rogos persistentes, para que sua mãe ficasse, surgiam desoladamente...

Inabalavel em a sua resolução, a Sra. de Santo Hilario repetia, de continuo:

— A humidade far-me-ia adoecer.

— Não iremos, então, — respondeu Ladice, angustiada, debruçando-se sobre o gradil.

— Nesse caso, ficarei eu, que sou por indole naturalmente avesso a essas digressões, — replicou Francisco, encaminhando-se para sua sogra.

Depois de certa hesitação, elles se decidiram a descer. O bote á gazolina vagava indolentemente, lá em baixo da escada. Dinah e o diplomata foram os primeiros a entrar: o estado de solteiro, de ambos, attrahia-os, forçava-os a se fazerem mutuamente companhia; elles se sentaram e puzeram-se a conversar.

Theophilo e Ladice de pé vibravam ante a dominação, o encantamento, a serenidade dessa noite oriental... Sobre as suas cabeças um céo de verão, esverdeado, brumoso, quente, sem scintillações, se extendia como um zimborio de ponta a ponta; atrás a cidade se estirava apertada, cingida, abraçada por uma corôa de fogo. Ella não tinha o dormir calmo de coração innocente. Era uma hetaira, uma bacchante fatigada, enfeitada de rosas, de folhas de parra, de argolões de ouro, de saia rubra, perseguida por sonhos tenebrosos: deslocações bruscas, sons abafados, manifestações epilepticas, sussurros de colera, visões macabras. As montanhas ao redor assistiam enternecidas, sombrias, por vezes aterradas, a esse somno agitado, tumultuoso. De um lado, o Pavilhão Mourisco ardia em uma orgia de luzes, de côres, de deslumbramentos: era a fantasia de um fakir que se animava... Beijando as collinas, as palmeiras, se alongavam frementes de goso e de orgulho, — berços fluctuantes onde o coração das mulheres romanticas se embala constantemente, cofres maravilhosos, onde se amontoam as primicias do ether, do tempo, do sol, das horas. Plantados a esmo, por mão sinistra entre paredes brancas, traços negros, punhaes manchados,—os cyprestes—lamentações de agonizantes. Ferindo o espaço de continuo, enxalmos de movimentos accelerados, rapidos, velozes, de olhos inflammados, quaes feras embravecidas, iam e vinham allucinados... A´ esquerda o morro da Viuva, nostalgico, saudoso, como um vate byroniano, como uma paisagem normanda, distillava uma doce melancolia, era a nota dolorosa, era o brado de paz, de carinho, de sympathia, de saudação ao Atlantico submisso, á náo estrangeira que aportava. Amarrado por uma corda lassa e grossa, um barco triste e vazio boiava, qual esquife abandonado. Beirando o mar, ao longo do cáes, archotes em combustão, atalaias em flamma, columnas incendiadas, guardavam a praia, multiplicando-se indefinidamente em a agua nutante. Em frente o Pão de Assucar, todo envolto em fina nevoa, perdera a ferocidade, a rudeza, a grosseria de sua substancia vista á claridade, a olho nú; tinha o ar brando, ameno, quasi beato, quasi seraphico, dir-se-ia um monge a implorar a Deus a perpetuidade das cousas, sob as pregas rudes de seu capuz escuro. As ilhas esparzidas aqui e alli eram, como exemplos de solidariedade: flora, seiva terrena, implantados em a vida, em o seio marinho...

A aragem agora se tornara mais fresca, mais subtil e entrava pelos cabellos de Ladice, pelas rendas de seu vestido. Theophilo, a seu lado, mostrava-lhe as montanhas de além, apagadas, indecisas, esfumaçadas e dizia-lhe: “Meu Deus, como eu desejava saber as reminiscencias, as recordações que ellas trazem em seu bojo, em seus flancos, em seu granito, dos primeiros navegantes que aportaram a estas plagas, das caravellas enfunadas, arquejantes, desalentadas, pejadas de um punhado de gentes aventurosas, épicas, guerreiras, avidas de renome, de liças, de thesouros, de riquezas!... — Montanhas ilhas, rochedos, que fostes testemunhas dessa posse primitiva, sem resistencia, infantil de quem chega primeiro e grita: é meu! dizei-me o rancor, as imprecações, o pavor desses indios de arcos tesos, de flexas molhadas ea curare, promptos a trespassar, a varar os usurpadores de seus direitos... Murmurai-me a crueldade que usaram para com elles, esses selvagens bravios, errantes, livres, que vivian a vida primeva, essa boa vida ingenua que se gasta entre uma sésta e uma caçada, sem tormentos de imaginação, nem subtilezas de moral... Indigenas impetuosos, destros, temerarios, nativos de minha terra, eu vos saúdo, vós que trazeis em a côr avermelhada de vossos membros rigidos e desenvoltos a flammula ardente da liberdade, o bafo adusto de nosso sol, de nosso clima, e em o negror de vossos cabellos lisos, compridos, soltos e abundantes, a virgindade estuante de nossas florestas, as sombras atras de nossas matas... Contai-me as pelejas esforçadas, as rebelliões, a bonhomia dos padres da catechese, a fidalguia de Duguay-Trouin, com seus formosos cachos de ouro ainda mais crespos pelas brisas tropicaes, os tambores, os pifaros, as fanfarras, os tiros de arcabuzes, de béstas, de trabucos, annunciando a chegada real de D. João VI... Quanta revelação, quanto segredo, quanta verdade quizera eu arrancar da mudez desses granitos que sentiram passar sobre o seu dorso o sôpro tragico de quatro seculos, que assistiram e ainda assistem a essa aggregação de centros de força, de attracção e de repulsão de um povo que se esforça, que trabalha para o triumpho!...”

O olhar de Theophilo se perdia nas montanhas adjacentes. Elle tirara o chapéo e passara a mão nervosa pela cabeça. Um bocado de cabello que se descollara do resto caia-lhe sobre a frente alta e brunida: o ar preto que o circumdava realçava-lhe ainda mais as linhas harmoniosas do corpo.

Ladice toda sua, fitava-o suspensa e adivinhava em a tristeza de seu semblante o mesmo desejo eterno de tudo saber, de tudo conhecer, que tambem a avassallava... Cheia de piedade e de doçura ella olhava a curva graciosa de seu pescoço, o collarinho deitado, os seus labios unidos de extremidades finas. Ahi os seus olhos se detiveram largo tempo: — toda a sua alma corria, se prendia em esses labios perfeitos que eram os fermentos de seu amor. Com a voz um pouco tremula perguntou-lhe baixinho:

— Que pede ás estrellas, amor ou luz, como Shelley?

Depois de consideral-a algum tempo:

— Luz, amor, disse elle lentamente, — não, que já os tenho. — Mudando de tom, com vivacidade e desespero: — O que eu peço e rogo aos céos, ao destino, ao inferno, ao mundo, á vida é a mulher que desejo, que amo... Se fosse preciso que tudo perecesse em uma convulsão, que o firmamento, o mar, os rios, se unissem, rolassem, formassem uma só massa, que as estrellas caissem, que os coriscos ateassem fogo em o universo inteiro, que os abysmos se abrissem e vomitassem dragões, que os basiliscos fulminassem a humanidade com o seu olhar fatidico, que os ventos se libertassem dos odres de Eolo e dizimassem a terra, que eu morresse coberto de lepra, de ulceras, asqueroso, abandonado como Yolanda de Sallière... Pouco se me daría, comtanto que tivesse apertado ao menos uma vez em meus braços as formas animadas dessa mulher adorada, que eu tivesse sentido passar sobre o meu rosto a desordem de seus cabellos, o sopro ardente de sua boca... — Com ar desvairado, tocando de leve em o braço de Ladice, continuou baixinho, quasi a murmurar. — O´ mulher divina, recebe o meu amor, a eurythmia de meu corpo é de meu espirito... Guarda em teu coração a minha alma ajoelhada a te adorar eternamente, as pulsações de meu sangue em dizendo o teu nome... Governa o meu poder, a minha vontade, a minha idela, como se fossem teus servos, teus subditos, teus libertos... Sê minha, mulher formosa, que trazes em teus gestos, em teu perfil a ballada, o estribilho vertiginoso que mata... — A cabeça de Ladice lhe tombou em o hombro, as suas mãos se apertaram, os seus olhos pararam um dentro do outro, em o transe de um extase.

Eros pairava sobre elles, esparzia-lhes os lirios, os cravos, as clematites, arrancadas de suas guirlandas e esbraseados pelos seus dedos; despejava-lhes sobre as cabeças a sua aljava cheia; os momentos amorosos, os suspiros esmorecentes, as doces intolerancias, as impaciencias sublimes de um coração, para outro coração, a ternura mortal de duas almas que se esmagam como petalas de rosas, adejavam, esvoaçavam, subiam e desciam ao redor de ambos, quaes mil borboletas impertinentes e afugentadas...

— “Luz, força, poder de minha juventude, eu te amo...” balbuciou finalmente Ladice, afastando-se, desprendendo-se, sentando-se sobre o banco...

A attitude calma e natural de Dinah e do diplomata, que conversavam de costas viradas, em pé em o outro lado do bote, tranquillizou Ladice, convenceu-a da ignorancia, do alheamento delles sobre o que acabava de passar-se. — Ella sabia que a pouca idade quando se junta, gosta de exhibir erudição, de provocar admiração, de fazer valer os dons, a sciencia, a intelligencia que possue, de mostrar o germen que o tempo, os annos, o estudo virão a desenvolver: são vaidades que se investem, que lutam, que buscam a victoria, que se alardeam... Elles conversavam como bons amigos, apesar de alguma timidez da parte de Dinah. Quanto ao machinista e seu companheiro, Ladice pouco se importava: o mais velho cuidava da sua tarefa com solicitude; o outro, o mais moço, rapaz de 20 annos, ainda em o vestibulo da vida, sem as sevicias do trabalho e do infortunio, bello especimen da geração nova, olhava-a a miúde com curiosidade e malicia...

Theophilo se approximou e sentou-se ao seu lado. Ladice immobil, encarando o vacuo com as palpebras meio descidas, ao parecer de quem bebe o extase de todas as sensações, reprimia os impetos de seu sentir...

Theophilo tinha a alma cheia de rythmos ineditos; o seu espirito, a sua imaginação se rendiam ao estro maravilhoso, ardente, estonteante do poeta do amor e seus mysterios; á meia voz, no ouvido de Ladice, poz-se a recitar-lhe em inglez os seguintes versos de Swinburne:

“If love were what the rose is,
And I were like the leaf
Our lives would grow together
In sad or singing weather...”[1]

Ladice o não deixou acabar, interrompeu-o, aproveitando essa conjuncção para declarar-lhe a grandeza de seu sentimento, a identificação, a unidade radiosa de seus seres e ella disse:

“Eu sou a rosa verde do destino, tu és a sua certeza, a sua duvida: dous elementos em um só.”

Theophilo continuou:

“If I were what the words are
And love were like the tune
With double sound and single
Delight our lips would mingle...”[2]

Ladice o interrompeu:

“Eu sou a forma, tu és a ideia, eu sou o começo, tu és o fim — nossos labios são os mesmos labios.

Theophilo continuou:

“If you were life, my darling,
And I your love were death
We'd shine and snow together...”[3]

Ladice o interrompeu;

“Eu sou a paixão que mata, tu és a exaltação que incita — uma só vida, uma só morte para dous corações que fazem um só.”

Theophilo continuou:

“If you were thrall to sorrow,
And I were page to joy
We'd play for lives and seasons...” [4]

“Tu és o sol esplendido, eu sou a purpura de teu horizonte — tu és os pés de Christo, eu sou a caricia de Magdalena — união perpetua que passa além do tumulo.”

Theophilo continuou:

“If you were April's lady
And I were lord in May,
We'd throw with leaves for hours...[5]

Ladice o interrompeu:

“Eu sou a doçura violenta da primavera, tu és a tristeza fecunda do poeta, — eu sou o cheiro agudo das flores, tu és a pulsação que se accelera,— tu e eu dualismo divino gerado em um só ser.”

Theophilo continuou:

“If you were queen of pleasure
And I were King of pain,
We'd hunt down love together...”[6]

Ladice interrompeu:

“Eu sou o amor que se dá, tu és o desejo immenso, — eu sou a mulher, a noiva, a amante, tu és o homem, o noivo, o amante, — um só respirar, uma só palpitação, um só fremito para dous corpos...

Em falando, as mãos brancas de Ladice tinham o gesto amoroso, largo, lento das alvoradas, ella sentia correr-lhe, do pé á cabeça, o arrojo, a nimiedade, a audacia, a energia de quem governa os homens, dirige os destinos, sancciona as cousas, fecha e abre os corações: — era uma força a curvar-se ante outra força; eram dous mundos que se moviam em a fragilidade da materia viva...

As suas personalidades se conservavam unidas, isoladas, inteiras, encerradas: ellas se não propagavam, se não diffundiam, se não disseminavam; dir-se-iam duas columnas resoantes de vibrações, de claridades intensas, cegas, offuscantes como as da luz do sol nas zinas do verão; elles não percebiam que estavam prestes a chegar... elles não reparavam no olhar attento. avido, acceso, indiscreto do rapaz de vinte annos... não viam a lua, alli, em o mar, a seguil-os: ora symbolica, apparentando ser o globo de ouro, a insignia, o attributo, o distinctivo do poder novo, almo, que os glorificava... ora se transformando, ser o espirito do mal, o duende chacoteador, zombeteiro, a bailar desatinado, enfurecido em a onda verde rugosa...

Ladice, ao desembarcar, mostrava em o rosto o pallor tragico da emotividade, das grandes resoluções, das abstenções supremas...

Elles seguiram para casa em automovel; encolhida em um canto, ella se entregava á vertigem da velocidade, ao deleite da carreira louca, desabrida, da passagem veloz, através das cousas immoveis... ella sentia em o coração o peso de todos os amores de seu tempo... as suas veias tinham o palpitar insoffrido de chammas que trepidam, de aguas que descem...

Em se separando de Theophilo, do vate bem amado, disse-lhe:

— Não se esqueça de me trazer pessoalmente as “Balladas” de seu poeta inglez — e em pronunciando essas palavras, a Sra. de Assis entregava-lhe o espirito, a sensibilidade, a vontade que antes lhe dera, á vista da lua, do céo, da natureza, em aquelle instante em que seus olhos se fundiam sob o mesmo fremito...

Ella levava para o marido, para casa, para a familia, o seu corpo vazio de si...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Se o amor fosse o que é a rosa, eu fosse como a folha, nossas vidas cresceriam juntas em o tempo triste ou cantante...
  2. Se eu fosse o que são as palavras, e o amor fosse como a musica com um som duplo e uma só delicia, nossos labios se misturariam...
  3. Se fosses a vida, minha querida, e eu vosso amante fosse a morte, nós brilhariamos e nevariamos juntos.
  4. Se fosses escrava da dôr e eu pagem da alegria, brincariamos durante vidas e estações.
  5. Se fosses a dama de Abril e eu senhor de Maio, jogariamos os dados com as folhas durante horas.
  6. Se fosses rainha do prazer e eu rei da dôr, caçariamos Juntos o amor.