Fabulas (9ª edição)/9
Burrice
Caminhavam dois burros, um com carga de açucar,
outro com carga de esponjas.
Dizia o primeiro:
— Caminhemos com cuidado, porque a estrada é perigosa.
O outro redarguiu:
— Onde está o perigo? Basta andarmos pelo rastro dos que hoje passaram por aqui.
— Nem sempre é assim. Onde passa um pode não passar outro.
— Que burrice! Eu sei viver, gabo-me disso, e minha ciencia toda se resume em só imitar o que os outros fazem.
— Nem sempre é assim, nem sempre é assim... continuou a filosofar o primeiro.
Nisto alcançaram o rio, cuja ponte caira na vespera.
— E agora?
— Agora é passar a vau.
O burro do açucar meteu-se na correnteza e, como a carga se ia dissolvendo ao contacto da agua, conseguiu sem dificuldade pôr pé na margem oposta.
O burro da esponja, fiel ás suas ideias, pensou consigo:
— Se ele passou, passarei tambem — e lançou-se ao rio.
Mas sua carga, em vez de esvair-se como a do primeiro, cresceu de peso a tal ponto que o pobre tolo foi ao fundo.
— Bem dizia eu! Não basta querer imitar, é preciso poder imitar, comentou o outro.
— Que é passar a vau? perguntou Pedrinho.
— E’ uma expressão antiga e muito boa. Quer dizer “vadear um rio”, passar por dentro da agua no lugar mais raso.
— E por que a senhora disse “redarguiu”? Não é pedantismo? quis saber a menina.
— E’ e não é, respondeu dona Benta. Redarguir é dar uma resposta que é tambem pergunta. Bonito, não?
— Por que é e não é? Como uma coisa pode ao mesmo tempo ser e não ser?
— E’ pedantismo para os que gostam da linguagem mais simplificada possivel. E não é pedantismo para os que gostam de falar com grande propriedade de expressão.
— E que é propriedade de expressão? quis saber Narizinho.
— Propriedade de expressão, explicou dona Benta, é a mais bela qualidade dum estilo. E’ dizer as coisas com a maior exatidão. Ainda ha pouco Emilia falou no “ferrinho do trinco da porta”. Temos aqui uma “impropriedade de expressão”. Se ela dissesse “lingueta do trinco” estaria falando com mais propriedade.
— Mas é ou não é ferrinho? redarguiu Emilia.
— A lingueta do trinco é um ferrinho, mas um ferrinho não é lingueta — pode ser mil coisas.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.