Fantina/Um Juizo Critico
MEU CARO BADARÓ
Vou por meio desta carta communicar-te a impressão, que deixou em meu espirito a rápida leitura, que fiz, do teu romance manuscripto intitulado—Fantina—, e que pretendes dar à luz da publicidade. Em meu entender estréas lindamente a tua carreira de romancista, e si o gosto litterario não está ainda inteiramente pervertido, o teu livro será acolhido com applausos e obterá considerável successo.
Talvez estejas lembrado, que por vezes te disse em conversação, que em matéria de litteratura, e especialmente no romance não conheço escola alguma, que tenha jús a predominar exclusivamente, e só admitto a authoridade daquella, que é presidida pelo bom senso e pelo bem gosto.
E' somente guiados por estes dous fanaes, que podaremos descriminar e seguir o que ha de bom e bello nas tendencias das diversas escolas e nos escriptores de melhor nota, e escolher com criterio o que ha de aproveitável no material, que a nossa própria imaginação e observação nos podem suggerir para um emprehendimento litterario. O bom senso nos esclarece para rejeitarmos o que ha de futil, banal e grosseiro, e só escolhermos o que ha de conveniente, util e decoroso na vida real. O bom gosto nos inspira para que só lancemos mão do que é bello, isto é, daquillo que pode ser agradável á imaginação do leitor.
Utile dulci — eis o axioma de critica litteraria, que nunca será derrogado. Do primeiro se encarrega o bom senso, o segundo é tarefa do bom gosto.
Si o romantismo puro não pode constituir uma escola, também não o pode o realismo. No romance principalmente, genero de litteratura, sobre o qual ainda ninguem legislou, nem pode legislar, campo vasto, aberto a todas as imaginações, ninguem deve ser julgado segundo os aphorismos desta ou daquella escola, deste ou daquelle systema.
No romance nada de exclusivismo escolar ; nada de exagerações. Caracteres e descripções, lances e peripecias, tudo deve ter o cunho da verosimilhança e da naturalidade ; tudo deve marchar de accordo com as leis physicas e moraes, a que o mundo e a humanidade estão sujeitos, a menos que não se tracte de alguma dessas producções, que pertencem francamente ao genero phantastico, como os poemas de Ariosto, as Mil e uma Noites, os Contos de Offmann, alguns romances de Theophilo Gauthier, e outros.
O romance, como tudo que é producto litterario, deve visar a um fim qualquer, que seja util ao homem e a sociedade. Sua missão consiste, no meu entender, em procurar elevar o espirito humano exaltando-lhe a phantasia e inspirando-lhe sentimentos nobres e generosos por meio da creação de typos brilhantes e dignos de imitação em contraposição a caracteres ignobeis, torpes ou ridiculos. Ora, a realidade é quasi sempre fria, trivial, e ás vezes abjecta e repugnante ; bem poucas vezes se apresenta em condições de poder ser copiada ao natural em uma téla litteraria ; sempre é mister, que o pincel ou lápis do artista retoque as linhas e o colorido, para que o painel se torne apresentavel como obra de arte. Eis ahi porque não posso comprehender, que haja producção litteraria de merito, sem que tenha alguma cousa de poética e ideal. Si o realismo prevalecesse absolutamente nos dominios da litteratura, esta não seria uma arte nobre, engenhosa e profunda, como é ; seria apenas um mero processo mechanico, como é a photographia em relação á pintura.
Por outro lado o romantismo, ou antes, o idealismo exagerado nos leva de encontro a uni escolho não menos formidavel, e que devemos evitar com igual cuidado. Perdendo-se de vista inteiramente o mundo real, que em todo caso deve servir de typo ás producções da phantasia, o espirito como que perde a orbita de seu giro, embebe-se nas regiões do delyrio, e só engendra creações monstruosas, cuja deformidade em vão procura disfarçar sob o apparato de brilhantes accessorios, e de uma linguagem rica e imaginosa.
No meu entender soubeste evitar em teu pequeno romance com igual felicidade os dous escolhos, que acabo de indicar. Si bem que se filie francamente á escola realista, — escola que sem duvida deve predominar, quando se tracta de um romance brazileiro, de costumes e da actualidade, — todavia não é elle o transumpto de uma realidade chata, grosseira e trivial, mas sim um quadro vivo e interessante do que ella oferece de digno da attenção do artista, do litterato e do phylosopho. Muito mais longe ainda anda elle das quixotescas exagerações do romantismo descabellado. Caracteres bem delineados e bem sustentados, lances e peripecias bem conduzidos, dialogo sobrio e animado dão muita vida, interesse e realidade ao teu romance ; ao passo que uma linguagem correcta, elegante e pura, sem degenerar em lusitanismo, e também muito brazileira sem descahir no americanismo, de que tanto abusam alguns escriptores nacionaes, fornece-lhe o verniz ideal, de que não se pode prescindir em toda a producção litteraria.
E' por agora o que te posso dizer ao correr da penna a respeito de tua producção, depois de uma rapida leitura. Aguardo ancioso sua publicação para poder lazer della mais ampla apreciação.
Teu amigo
Este material está em domínio público nos Estados Unidos e demais países que protejam os direitos autorais por cem anos (ou menos) após a morte do autor.