Fantina/XXXVI

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Tendo acabado de almoçar Frederico foi passear á roça.

D. Luzia entrou para o escriptorio e chamou Fantina, que appareceu-lhe como sempre trazendo um riso alegre nos labios vermelhos. Fazendo diversas perguntas a respeite de Frederico e de Rosa, D. Luzia obrigou Fantina a contar tudo quanto sabia e a prometter opposição á vontade do senhor.

A' Rosa estava reservada outra sorte de interrogatorio.

D. Luzia chamou a Felisberto e levou Rosa ao paiol onde estavam os instrumentos do castigo.

Mandou amarrar a rapariga a uma escada, levantar impudentemente as saias e applicar ás nádegas cincoenta vergastadas. Ainda não estava a execução no meio e já o sangue ensopando o instrumento corria pelo chão, e nem um grito. Só se ouvia um gemido cavo que sahia pelas narinas, porque a bocca estava sobre um pau e calafetada com pedaços de algodão. O olhar de D. Luzia tinha uma immobilidade assustadora. Quando as pontas do couro espicaçando a carne fumegante atiravam pingos de sangue sobre o vestido de D. Luzia, esta dizia ao rapaz :

— Olha que te faço vir enxugal-os com a bocca.

Quando o algoz tirou as cordas e a mordaça, foi preciso levantar a rapariga, que tão tremula estava, que não podia sustentar-se de pé.

Então D. Luzia chegando perto perguntou á castigada :

— Que tal, senhora alcoviteira ?

Nada respondeu, e só deixava se ouvir o borborinho da respiração contida e dos soluços cortados.

No olhar que a rapariga lançou sobre a senhora havia um curiscar de fluidos enraivecidos que abraçavam-se como dardos para a vingança.

O suicidio passou-lhe pelo espirito como a ponta da aza de um corvo, mas ella pensou, lembrou-se da vingança que o sangue que ensopava o pó estava pedindo, e enchotou aquella idéa como a um cão leproso.

— Para vingar-me preciso viver. Meu sangue em poças humedece a terra.

Rosa remordendo-se interiormente não dava-tregoas á imaginação, procurava, apalpava, evocava memórias adormecidas pelo tempo.

Afinal lembrou-se do pae Joaquim.

Qualquer raiz venenosa que martyrisasse por muito tempo, era o que Rosa queria ; não desejava matar a senhora do primeiro golpe. Iria destruindo-lhe a vida paulatinamente.

Ao cabo de alguns mezes ou annos arrastados pela via dos soffrimentos atrozes, que se apagasse a luz da lampada funesta.

D. Luzia usava á sobre-mesa comer sómente doce de cidra ; por isso ao lado das muftas iguarias estava sempre uma compoteira destinada a ella. Gostava do sumo forte que apertava o paladar. Por ahi achou Rosa porta larga, de uma largura feliz, onde passariam os corrossivos mais destruidores.

Consultando ao pai Joaquim, conhecido pela alcunha de Feiticeiro, elle impoz como condição, que Rosa lhe desse duas camisas de flanella.

O pai Joaquim era um typo africano dos mais repugnantes ; sem dentes, de beiços muito cahidos e grossos, pernas tortas e pés de uma deformidade phantasiosa.

Este negro era na fazenda rodeado de prestigio tal, que temiam-lhe até o olhar, que segundo diziam, fazia cahir o cabello e apodrecer as unhas. A habilidade de applicar os venenos scepticos elle a possuía em alto gráu.

Em um domingo, perto de onze horas, quem estivesse na varanda da fazenda, e olhasse para a volta do rego que trazia agua aos engenhos.havia de ver sob um sol alto e alegre como um olho de sentinella, a figura do pai Joaquim com a foucinha ao hombro e um samburá na mão, em caminho da matta. Ao pôr do sol voltou.

Conferenciou com Rosa ensinando-lhe o modo de applicação e entregou-lhe um embrulho de raizes e cascas, que ella logo occultou nas dobras do curubá. Dizia o feiticeiro que aquelles remedios applicados simultaneamente na dose de um cabo de colher, produziam falta de appettite, grande ardor nas pernas e frieiras entre os dedos.

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