Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/XII
Bem vejo que o senhor todo é bondade
E abaixar-se quer p'ra confundir-me.
Anda tão costumado quem viaja
A contentar-se por delicadeza
De pouco. Sinto eu sobejamente,
Que minhas pobres fallas não divertem
Quem tanto sabe.
Um só de teus olhares,
Uma palavra, muito mais m'int'ressam
Que deste mundo toda a vã sciencia.
(Beija-lhe a mão.)
Não façaes tal! Como podeis beijal-a
É tão grossa, tão rude! Em que trabalhos
Não tenho de lidar o dia todo!
Minha mãe é poupada em demasia.
(Passam.)
E vós, senhor, andaes sempre em viagens?
Quam duro é que a isso nos obriguem
Dever e profissão! Com que saudade
Ás vezes de um logar nos apartamos
E sem poder ficar!
Nos verdes annos
Cabe bem divagar por esse mundo;
Mas chega alfim a idade, e á sepultura
Baixar solteiro, só, não fez ainda
Bem a ninguem.
É com horror que vejo
De longe tal futuro.
Pois em tempo,
Caro senhor, deveis acautelar-vos.
(Passam.)
Sim, mas longe dos olhos serei longe
Tambem do coração. Em cortezia
Sois, mestre, mas amigos tendes tantos
De muito mais engenho que eu coitada.
Acredita, querida, o que se chama
Engenho e intelligencia, as mais das vezes
É mera estupidez, louca vaidade.
O que?
Pois a innocencia, a singeleza
Jamais conhecerão sua valia ?
Humildade, modestia, dons supremos
Que com amor concede a natureza...
Pensae em mim sequer um instantinho,
Para pensar em vós sobra-me tempo.
Estaes a miudo só?
Sim; é pequeno
Nosso arranjo caseiro, mas carece
Quem delle trate sempre. Uma creada
Não temos; varro, coso, o comer faço
E ando dentro e fora noite e dia;
É minha mãe em todas estas cousas
Tão exigente! Não que ella precise
Viver tão acanhada. Bem podiamos,
Melhor que muitos, pôr-nos á vontade:
Deixou-nos nosso pae bem boa herança,
Uma casa e jardim no arrabalde.
Comtudo passo vida bem tranquilla
Agora; meu irmão assentou praça,
Morreu minha irmansinha. Duras penas
Co'a creança passei, mas quem m'as dera
De novo, tanto a amava.
Um anjo era
Se par'cida comtigo.
Foi creada
Por minhas mãos e tinha-me sincero
Entranhavel amor. Viera ao mundo
Já depois do pae morto; por perdida
Tivemos nossa mãe, tão mal esteve.
Foi pouco e pouco recobrando as forças,
Mas em amamentar a creancinha
Nem podia pensar. Assim criei-a
Eu só com leite e agua, como filha
Minha que fosse, e ao meu collo o anjo
Sorria, bracejava, ia crescendo.
A mais pura alegria então gosaste.
Mas tambem tive horas trabalhosas.
O berço da pequena estava á noite
Ao pé da minha cama, em se mexendo
Acordava-me logo; ora o seu leite
Tinha de dar-lhe e junto a mim deital-a,
Ou, se não se calava, levantar-me
E pelo quarto andal-a passeando.
E de manhan bem cedo ao lavadouro
Havia de ir, e á praça, e da cosinha
Tratar, e isto sempre; como hoje
Ámanhan outra vez. O animo falta
Neste lidar, senhor, algumas vezes,
Mas descanso e comida melhor sabem.
(Passam.)
A mulher 'stá peor, não tem partido,
Um solteirão a custo se converte.
Uma mulher qual sois, bem poderia
Idéas mais sensatas inspirar-me.
Dizei-o francamente, até agora
Nada eneontraste? Em parte alguma o vosso
Coração se prendeu ?
Diz o dictado —
Um lar que é nosso e uma boa esposa
Valem mais que ouro e perolas.
Dizia
Se nunca desejastes...
Fui eu sempre
Em toda a parte mui bem recebido.
Perguntava se amastes algum, dia
Seriamente ?
Ninguem deve attrever-se
A brincar com senhoras.
Não me faço
Entender.
Sinto muito, mas entendo
Que de grande bondade sois dotada.
(Passam.)
Conheceste-me ha pouco, anjo adorado,
Quando entrei no jardim ?
Pois não o viste?
Puz os olhos no chão.
E tu perdoas
A liberdade que tomei, e quanto
Minha insolencia ousou quando saías.
Da cathedral ?
Fiquei como assombrada.
Nunca me succedera tal; não tinha
Ninguem que me dizer. Ai, eu pensava,
Teus modos immodestos acharia ?
Parece que lhe veio ao pensamento
Logo, tratar-te com desembaraço.
Confesso-vos porém, não sei que cousa
Logo aqui se moveu em vosso abono;
Quiz-me deveras mal, por não ter força
De mal vos querer a vós.
Coração, anjo!
Deixae-me ver.
Que fazes ? ramalhetes ?
Não, 'stou brincando.
Que é?
Deixae-me agora,
Que de mim zombarieis.
Que murmuras ?
Mal me quer, bem me quer.
Rosto divino.
Mal me quer, bem me quer, mal me quer, —ama-me!
Sim, bem me quer!
Dos ceus seja um oraculo
O que te disse a flor, sim, minha vida,
Ama-te !
Entendes o que é — elle ama-te ?
(Pega-lhe nas mãos.)
Estremeço de gosto.
Não, não tremas
O apertar das mãos, os olhos digam
O que ineffavel é; todo entregar-se
Arroubado em delicia tão intensa
Que deve ser eterna! Sim, eterna!
O fim della seria o desespero.
Sem fim! Sem fim!
A noite vem chegando.
É verdade, partamos.
Pediria.
Que mais tempo ficassem, mas a terra
É muito má. Parece que outro officio
Ninguem tem mais, do que saber da vida
Da visinhança e os passos espreitar-lhe,
E por mais que se faça, não ha modo
De escapar ás más linguas. O que é feito
Do nosso lindo par?
Lá se sumiram
Da alameda no fim, quaes passarinhos
Que alegres brincam.
Ai, morre por ella.
E ella por elle. Assim vai sempre o mundo.