Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/XVI
Henrique, tu promettes?
Quanto eu possa.
Se tens religião saber quizera;
És bom deveras, sei, mas imagino
Que não guardas a fé.
Não falles nisso,
Vida minha, bem sabes quanto te amo,
Por meu amor o sangue e vida dera;
A ninguem roubar quero o sentimento,
A fé na sua Egreja.
Isso não basta,
Deve-se crer tambem.
Devido o julgas?
Se comtigo podesse alguma cousa!
Não respeitas os santos sacramentos.
Respeito, sim.
Mas sem amor. Ha muito
Que á missa não vais, nem te confessas;
Acreditas em Deus?
Quem póde, filha,
Dizer eu acredito em Deus? Pergunta
Aos padres e aos sabios, a resposta
Parece escarnecer de quem pergunta.
Então não crês?
Entende o que te digo,
Anjo, anjo do ceu. Quem é que ousa
A dar-lhe um nome e a affirmar se attreve
«Eu acredito nelle.» E quem sentindo,
A dizer se abalança «não, não creio?
O que tudo contem, que tudo anima,
A mim,a ti e a si contem e anima.
Dos ceus não vês além curvar-se a abobada,
E firme a nossos pés não jaz a terra?
Com amoroso olhar astros eternos
Não se elevam? Não cravo nos teus olhos
Os meus, e penetrar em ti não sentes
Na mente e coração todo o Universo,
Que, arcano insondavel, se desdobra
Visivel e invisivel de ti junto?
Com esse sentimento o peito inunda
E quando nelle immêersa te sentires,
O nome então lhe dá que mais quizeres:
Delicia, coração, ou Divindade! -
Nome não acho, o sentimento é tudo,
O nome é rumor vão, o nome é fumo,
Que o brilho dos ceus tolda e offusca!
Tudo isso é mui bom, muito bonito,
Quasi que diz o mesmo o nosso padre,
Mas por outras palavras.
Dil-o tudo!
Todos os corações que o Sol aquece,
Na lingua cada um que lhe foi dada,
Dizel-o posso eu tambem -na minha,
E sôa muito bem quando se ouve,
Mas algum erro nisso entra por força,.
Pois não és bom Christão.
Luz da minh'alma.
Ha muito tempo que me doe o vêr-te
Em companhia
De quem é?
Do homem
Que sempre anda comtigo, e que aborreço
Do fundo de minh'alma. Em toda a vida,
Nada no coração me deu tal golpe,
Como a sua figura repellente.
Meu coração, não tenhas delle mêdo.
Ferve-me o sangue, se o vejo perto;
E p'ra todos os mais sou sempre bôa!
Mas assim como só por ver-te morro,
Assim pavor occulto elle me causa,
E por malvado o tenho só por isso.
Deus me perdoe, se sou com elle injusta.
Neste mundo é mister que haja de tudo.
Com similhante homem não quizera
Um instante viver. Se a porta cruza,
Olha p'ra tudo como escarnecendo
E quasi enfurecido. Vê-se logo
Que não o int'ressa nada, que não pode
Ter amor a ninguem. Dando-te o braço
Tão ditosa me sinto, e á vista delle
Confrange-se -me o peito.
Tens meu anjo
Algum pressentimento.
Este horror tanto
Me possue, que se elle a nós se chega,
Acho que não te amo, e quando o vejo
Nunca posso resar. Isto magôa-me
Immenso; has de sentir o mesmo, Henrique.
É uma antipathia.
Agora vou-me.
Ai, pois não poderei nunca tranquillo,
Repousar um instante em teu regaço,
E o peito ao peito, a alma unir á alma?
Se dormisse sosinha, mui gostosa
O ferrolho te abrira hoje de noite;
Mas a mãe tem o somno muito leve
E se ella nos visse, eu morreria.
Isso, meu amorsinho, não estorva.
Aqui tens este frasco; só tres gotas,
Que no copo lhe deites, a sepultam
Em somno bem profundo.
O que não faço
Eu por amor de ti? Mas estas gotas
Não farão mal algum.
Pois de outro modo
Ousára aconselhal-o ?
Em eu te vendo,
Não sei que força, homem da minh'alma,
Me move a teu capricho. Tenho feito
Tanto por ti, que me não resta quasi
Mais que fazer.
(Sáe.)
A macaquinha foi-se?
Estiveste outra vez espionando ?
Ouvi perfeitamente o que se disse,
Foi o senhor Doutor cathechisado;
Bom proveito lhe faça, é o meu desejo.
Tem o maior empenho as raparigas
Em devotos nos ver á antiga moda;
Se nisto se dobrar, cogitam ellas,
Em tudo o mais é nosso.
Monstro infame,
Não vês como s'afflige aquella santa,
Cheia de sua crença, que imagina
Unica ser que os homens salvar pode,
Porque julga perdido o que mais ama?
Tu ideal e sensual amante,
Pelo nariz te leva uma creança!
Aborto singular de lama e fogo!
E de physionomia entende a palmos.
Quando me vê, não sabe o que em si sente,
Lê-me na face occulta pravidade,
Percebe que hei de ser de certo um genio
E talvez o diabo. Então à noite?
E que te importa?
Tenho gosto nisso.