Saltar para o conteúdo

Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro XIV

Wikisource, a biblioteca livre

Floresta no meio de fraguedo, escancarado em cavernas. De uma rocha alta, precipita-se uma cascata natural.

Cena I

[editar]

FAUSTO (só, meditabundo, encostado a uma árvore, com os olhos no céu. Luar encoberto. Relampeja. Zune o vento.)

Tudo obtive de ti, sumo, inefável Ente.
Entrevi-te no mundo a face refulgente.
Sou rei da criação; sinto-a e desfruto-a. Dás-me
não só que a observe à flor e em seus prodígios pasme;
sondo-a, leio-a por dentro, assim, como leria
no peito de um amigo. Intendo, da harmonia
que une tantos milhões de seres passageiros,
ser tudo uma família, e irmãos meus verdadeiros
o mudo arbusto, o ar, as águas.

(Cresce o temporal e ouve-se ao longe o desabar de um pinheiro)

Quando a mata
ruge co’o temporal, e o pinheiro-magnata
rui fracassando em torno as arvores, e atroa
co’a trovejante queda o monte que reboa,

(Encaminhando-se para uma caverna)

forças-me co’o terror a entrar na alta caverna,
onde me descortino eu próprio à luz interna,
e no fundo do peito, aberto, omnipotente
mil prodígios descubro incógnitos à mente.

(Após um espaço de contemplação muda, amansa e cessa a tormenta. A lua rompe brilhante dentre as nuvens, e alumia a cena.)

Desfez-se o temporal: ergue-se clara a lua!
O mato gotejante, a penedia nua
vem-me representar, num alvor prateado,
miragens da saudade, as cenas do passado.

(Descendo da caverna, passeia na mata)

Ai! que não caiba um gozo, estreme, verdadeiro,
nesta vida falaz! Deste um companheiro,
que onde sinto endeusar-me, acorre sempre frio,
impassível, cruel, a recalcar-me o brio,
a provar-me o meu nada; um monstro, que eu forcejo
para afastar do lado e sempre ao lado vejo.

Se me choves teus dons, ele, co’um leve acento
da sua voz maldita anula-os num momento;
ele mal que vislumbra aos olhos meus o belo,
dentro no coração me ateia um Mongibelo.

Que vida! angústias sempre: ora a almejar por gozo,
ora inquieto na posse, e do almejar saudoso!

Cena II

[editar]

FAUSTO e MEFISTÓFELES, que desceu rapidamente no meio de um relâmpago desde o alto das rochas.

MEFISTÓFELES (chegando-se a Fausto)
Com que então, já cansou? Depois da faina
da boa vida que levámos juntos,
tornou-se a divertir? De tempo a tempo,
bom é que se descanse um poucochinho.
Isso é que abre o apetite e aumenta as forças.
Vamo-nos procurar mais novidades.

FAUSTO
Não tens mais que fazer, que vir tentar-me
nas horas boas?

MEFISTÓFELES
Co’a melhor vontade
o entrego a si, se quer; declare-o franco:
vai-se-me um sem-sabor, grazina e doido;
forte perda! levar o dia inteiro
sempre a servi-lo, sem lhe ler nas trombas
nunca jamais se está ou não contente!

FAUSTO
Bravo! O diabo sempre a atanazar-me,
e quer que inda por cima eu lho agradeça!

MEFISTÓFELES
Que seria de ti, filho do barro,
se não fosse eu, que te ando há tanto tempo
a curar de esquentadas fantasias?
Tinhas-te já safado deste mundo,
há que folhas!
Não sei que te aproveita
o andar poisando, à laia de coruja,
neste lapedo bronco; e o pró que tiras
de alimentar-te como o sapo inerte
do bafio de musgo e covas húmidas.
Que belo, que aprazível passatempo!
Sabes o que te eu digo? é que inda alojas
nesse corpo o Doutor.

FAUSTO
Não, que nem sonhas
que de força vivaz neste ermo alpestre
já tenho haurido em mim; se a bem souberas,
tão demo és tu, que por furtar-ma davas
trinta voltas no ar.

MEFISTÓFELES (ironicamente)
Se há gosto, é isso!:
Velar a noite à chuva pelos brejos,
abraçar com volúpia o céu e a terra,
empantufar-se a crer-se divindade,
fossar o mundo à cata do secreto,
volver no caco a obra dos seis dias,
sonhando-se Factor Arqui-potente...
não sei de quê, finando-se de amores
por quanto objecto avista, e desvestido
o invólucro terrestre, achar-se ao cabo
de tantas intuições maravilhosas,
a fazer... a fazer...
Cala-te, boca!

FAUSTO (indignado)
Passa fora!

MEFISTÓFELES
Isso mesmo: um passa fora
é a única resposta a quem profana
ouvidos castos, mencionando... coisas...

(Sorrindo)

Mas vá lá: se o divertem mentirinhas
pregadas a si próprio, outorgo vénia
como seja com regra. Acho contudo
que o meu Doutor, nesse papel sublime
depressa há-de cansar.

(Notando que Fausto lhe trejeita de agastado)

Ei-lo assomado
já outra vez! Se vai por essa via,
cedo recai na insânia e nos terrores.

(Mudando de tom)

Falemos de outro assunto. O seu benzinho,
sabe o que está fazendo? Está sentada,
no seu quarto, sozinha, o peito em ânsias,
o pensamento a monte; a sua teima
é toda o sujeitinho; e quer-lhe! quer-lhe
que não há mais dizer. Valha a verdade,
a paixão do Doutor teve rompantes
de furiosa lava; incendiou-a,
mas coalhou pouco a pouco, e está já fria.
Quer-me a mim parecer, que o potentado
deste reino silvestre acertaria
em no abdicar, e recolher-se amante
ao seio da gentil desconsolada.
Como ela vai fiando as horas longas!
Encostada à janela, agora mesmo
já está olhando o caminhar das nuvens
para a muralha antiga da cidade.
Daqui lhe escuto a usada cantilena:

Tomara ser passarinho.
para ir ter onde eu desejo;
depressa formara as asas,
que as penas são de sobejo.

Nisto de sol a sol consome os dias;
nisto de sol a sol desvela as noites.
Se alguma rara vez lhe assoma às faces
vislumbre de alegria, as mais das vezes
de mortal pesadumbre as tem nubladas;
ora mostra no rosto mal enxuto
sinais de ter chorado, ora parece
a poder de cansada estar serena...
mas sempre namorada.

FAUSTO
Ah, cobra, cobra!

MEFISTÓFELES (à parte sorrindo)
Cáspite! enrodilhei-te.

FAUSTO
Amaldiçoado!
Sume-te! e nunca mais boquejes nela.
Não tornes a acender-me nos sentidos
inda revoltos o desejo infrene
de ter nos braços tão suave prenda!

MEFISTÓFELES
Mas enfim que resolve? A rapariga
julga-o fugido... e não se engana.

FAUSTO
Como,
se eu lhe vivo tão perto, e não na esqueço,
nem querendo esquecê-la o poderia,
por maior que entre nós fosse a distância
Ouve! É tanto que até, quando a imagino
ajoelhada e contrita à mesa santa
ao corpo consagrado tenho inveja

MEFISTÓFELES
Como eu, quando imagino o meu amigo
pascendo rosas... no amorável horto
de dois gémeos que eu sei.

(Apontando para o selo.)

FAUSTO
Fora, alcoveto!

MEFISTÓFELES
Bom; insulta-me, e eu rio. O fabricante,
quando inventou rapaz e rapariga,
tomou a si o deparar-lhe ensejos.

(Ironicamente a Fausto)

Coitado! Faz-me dó, que em realidade
ir para o quarto dela ou para a forca
vem quase a dar na mesma!

FAUSTO
É céu na vida
sentir-me entre seus braços, repassado
no calor de tal seio... e todavia
mal sabes como até nesses momentos
co’o pensar que a desgraço estou penando!...
Eu sou um foragido, um pária, um monstro,
que, sem ver norte, sem gozar descanso,
se despenha caudal, de fraga em fraga,
via do abismo; e ela! uma criança
tão simplesinha, que trocara o mundo
por se ver, num recôncavo dos Alpes,
ditosa dona de um feliz tugúrio,
onde sempre a lidar, fosse rainha.

(Falando consigo mesmo)

Não te bastou, vil réprobo, a jactância
de arrasar o universo, inda por cima
quiseste destruir a paz deste anjo.
Os caídos no inferno inda eram poucos?
Sus, sus, diabo! O teu auxílio imploro!
Ajuda-me a encurtar este suplício!
O que há-de ser que seja! A sorte dela
despenhe-se na minha, e pereçamos!

MEFISTÓFELES
Ih, como torna a arder! Vá daí, tonto,
vá consolá-la! Um néscio destes cuida,
se não vê logo furo, estar perdido.
Com gente denodada é que me eu quero.
Pontos há em que o julgo outro diabo;
mas diabo que logo desanima
é coisa que eu não levo à paciência.