Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro XXII
Campo. Dia enuviado.
Cena única
[editar]FAUSTO e MEFISTÓFELES
FAUSTO
Penúria, desconforto a vida inteira,
e um cárcere afinal.
Quem to diria,
bela inocente! como ré fadada
a cruz tormentos! Tanto pôde a sina!
E este infame traidor a ter-mo oculto
Ousa ainda encarar-me! Anda, dardeja-me
as áscuas desse olhar. Se te parece,
exaure-me de todo a paciência
a arrostares-me em face!
Encarcerada,
falta de tudo, obsessa de demónios,
em garras de juizes desalmados,
e eu no entanto em mil frívolos recreios
engodado por ti, seus ais não oiço,
não na arranco do abismo onde a recalcas.
MEFISTÓFELES
Já não é a primeira.
FAUSTO
Ah perro! há monstro!
Retorna-o, Senhor Deus, que podes tudo,
ao ser canino com que o vi rojar-se
aos meus pés, com que fila atraiçoado
ao viandante incauto, e salta às costas
do homem caído! ou torne à costumada
forma de cobra, arraste-se na terra,
e eu que pise, que esmague o miserável!
Já não é a primeira!! Onde há ’í peito,
que abranja horror tamanho! Haver mais de uma,
que se tenha afogado em tal miséria!
Não terem logo os transes da primeira
por todas pago e resgatado a todas!
Eu só de imaginar as penas desta
sinto infernos cá dentro!... ele, impassível,
mencionando as sem conto amostra os dentes!
MEFISTÓFELES
E quer isto connosco associar-se!
Onde a ciência em nós começa apenas,
a de homens deu em seco.
Ambicionaras
seguir-me o voo, e mal batemos asas,
já se te oira o juízo e cais.
Busquei-te,
ou buscaste-me tu?
FAUSTO
Não me arreganhes
a dentuça roaz! metes-me nojo!
Espírito sublime, oh tu, que observas
meu sentir e pensar, como te aprouve
jungir-me escravo ao mais feroz dos génios,
para o qual dor alheia é pasto, é glória!
MEFISTÓFELES
Findou?
FAUSTO
Salvá-la!... ou mal por ti, que voto
com tal imprecação assoberbar-te,
que te há-de durar séculos.
MEFISTÓFELES
Não cabe
na minha alçada espedaçar os ferros
da pública vindicta. Acho-te pilhas
no teu Salvá-la! Quem pregou com ela
nesse abismo? eu ou tu?
Vá lá. Fulmina-me!
(Inda foi providência o não ser de homens
o jus do raio.) Usual nos tiranetes
foi sempre, onde inocentes se desculpam,
tapar-lhe a boca, por livrar de empachos.
FAUSTO
Leva-me a ela: vou soltá-la.
MEFISTÓFELES
E os riscos?
Lá na cidade o crime de homicida
acha-se inda em aberto... Inda revoam
sobre os terrões do morto espiritinhos
vingadores, à espera do homicida.
FAUSTO
Outra das tuas. Maldições sem termo
sobre ti, monstro! Já to disse; mando
que lá me ponhas, e ma salves.
MEFISTÓFELES
Pronto,
quanto ao levar-te; agora omnipotência
confesso que a não tenho. O que eu só posso
é sepultar em sono o carcereiro.
O mais não me pertence: há-de ser de homem
a mão que furte a chave e solte a presa.
Eu fico de vigia. Tenho prestes
os nossos palafrens enfeitiçados;
montam, ponho-os em salvo. O que prometo
é isto, e hei-de cumpri-lo.
FAUSTO
Andar! Corramos!