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Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro XXIV

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Prisão. Janela alta gradeada. Uma alcova ao fundo da prisão, onde há, sobre uma tarimba, uma cama de palha, com um cobertor velho, e uma bilha d’água ao pé. À esquerda do espectador, no primeiro plano, supõe-se ser a entrada da prisão, fechada com uma portinha de grades de ferro, que abre para o palco.

Cena I

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FAUSTO, por trás da grade, com um molho de chaves e uma lanterna. MARGARIDA, deitada na cama de rosto para o espectador, ferros aos pés e nos pulsos, e o cobertor por cima de si; está pálida, e numa espécie de sonolência.

FAUSTO
Arrepios assim nunca eu senti. (Fraqueza
da humana condição.) Aqui, nesta escura,
nesta humidade infecta onde entro horrorizado,
e que ela está vivendo, é que ela tem penado
por um sonho de gosto horas sem fim de luto.

Que é isto, coração! Tremes irresoluto
no momento de ir vê-la! A sua aparição,
que tem para assustar-te? Avante, coração!
Valor! Para a salvar apenas resta um passo.
Cada instante perdido acerca-a do trespasso.

(Mete a chave na fechadura.)

MARGARIDA (cantando em delírio)
Nasci de uma perdida.
Gerou-me um salteador.
A mãe roubou-me a vida.
O pai tragou-me em flor.
Saltou-me a irmã vizinha
do fresco seu coval;
mudou-me em avezinha
no agreste matagal;
fugi da terra feia;
vim ser feliz no ar;
aqui só me recreia
voar, voar, voar.

FAUSTO (diligenciando abrir a fechadura)
Ah! Mal sabe a infeliz, que o seu querido ausente
já tão perto lhe está, que lhe ouve claramente
o tinir dos grilhões, das palhas o soído,
cada vez que revolve o corpo dolorido.

(Entra)

MARGARIDA (desvairada, envolve-se no cobertor, voltando-se para a parede)
Jesus, vê-los lá vem! Que horrendo fim!

FAUSTO (mansinho)
Não tremas.
Não grites; sou eu; venho arrancar-te as algemas
salvar-te.

MARGARIDA (arrastando-se para Fausto)
Se és acaso um ente humano, e pode
tocar-te um mal extremo, ao meu martírio acode!

FAUSTO
Silêncio! O teu clamor acorda os guardas.

(Pega nos grilhões para os abrir.)

MARGARIDA (de joelhos)
Não!
Não! Quem te deu licença, algoz, de me pôr mão?

Antes da meia noite! É cedo. Tem piedade!
Um pouco mais de vida! Espera a claridade!

(Levanta-se)

Sou tão nova, tão nova! Hei-de morrer tão nova?
Meu Deus! diz que sou bela, e vou por isso à cova.
Ai! qu’é do meu querido? antes sempre ao meu lado,
e agora tão distante? a c’roa do noivado
desmanchou-se-me; o pó sumiu-lhe as tristes flores.

(Fausto forceja para a levar)

Larga-me os pulsos, larga! «Acrescentar-me dores,
selvagem! para quê? fiz-te algum mal? até
nunca te vi.

FAUSTO
Que transe!

MARGARIDA
Estás-me aqui ao pé;
bem vês que te não fujo. É mister que amamente
primeiro o meu menino, e depois o adormente,
que toda a santa noite a levámos de vela,
a criancinha a rir-me, e eu a afagá-la a ela.
Para me atormentar, furtam-ma, e agora teimam
que a matei eu! Vê, vê, co’as penas que me afreimam
se posso nunca mais ter hora de alegria?
Até já pela rua (olha que tirania!)
cantam a Margarida; a moda é moda antiga,
mas comigo é que entende a letra da cantiga.

FAUSTO (caindo em joelhos)
É ele, o amado, o teu, que te ora de mãos postas
ajoelhado a teus pés, que o sigas, que dês costas
a este infame horror.

MARGARIDA (ajoelhando ao lado dele)
Oh sim; ajoelhemos.
Nos céus mora a piedade; os santos invoquemos.
Vê, ouve lá por baixo o inferno em fúria, a sanha
com que o espírito mau o fogo eterno assanha!

FAUSTO (em voz mais alta)
Margarida, repara! Atende, Margarida!

MARGARIDA (atenta)
Ouvi-lhe a voz... Chamou-me... Onde está?

(Caem-lhe os grilhões e as algemas)

Desprendida!
Já o posso abraçar; já posso neste peito
senti-lo palpitar no abraço mais estreito.
Chamou-me. Vi-o ali. Todo o motim do inferno
a escarnecer-me em coro, e a blasfemar do Eterno,
não lhe encobriu a voz; reconheci-lha; disse
Margarida! e era a mesma, a mesma na meiguice.

FAUSTO
Sou eu.

MARGARIDA
És tu?! Repete-o.

(Tacteando-o)
És; és; já não duvido.
Ficai-vos, meus grilhões, meu cárcere insofrido!
Vens salvar-me: estou salva e livre... Espera!... aqui
é (se a não reconheço?!) a rua em que eu te vi
pela primeira vez; a porta além diviso
que entra ao quintal da Marta, ao nosso paraíso.

FAUSTO (forcejando para que saiam)
Vem, vem! Segue-me!

MARGARIDA
Espera. É tão grande a alegria
que estou sentindo aqui na tua companhia!

(Afagando-o.)

FAUSTO
Se teimas em ficar, perdemo-nos.

MARGARIDA
Já vejo
que tudo lhe esqueceu: pois nem sequer um beijo?
Não me entendo! a abraçar-te e inda aflita! Mas dantes
quando o teu falar terno, os teus olhos amantes
me envolviam de céu, beijavas-me; um beijar
como quem me queria em beijos sufocar.
Beija-me, ou beijo-te eu.

(Beija-o)

Que lábios! que regelo!
que mudez! Tanto amor, pudeste-me esquecê-lo?

(Vai-se afastando dele)

FAUSTO
Vem! Segue-me, querida! Anima-te! Protesto
que ardo por ti, mas sai deste lugar funesto!
Nada mais te suplico. Anda comigo.

MARGARIDA (encarando-o, indecisa)
Creio...
mas não sei se és o mesmo. Afirma-mo! Receio

FAUSTO
Sou, sou; fujamos!

MARGARIDA
Bom. Tens-me desalgemada.
Senta-me no teu colo!... Estou maravilhada
de me olhares sem tédio. Ignoras por ventura
quem seja esta mulher, a quem vens dar soltura,
meu amigo?

FAUSTO
Vem, vem! Já rompe a alva.

MARGARIDA
A mãe
matei-a; a criancinha afoguei-a também...
mas não era só minha, era tua igualmente;
para os dois, é que Deus a dera de presente;
sim, também para ti...
Mas, fala-me sincero:
és na verdade o mesmo? ou será sonho? Quero
sentir nas minhas mãos a tua mão querida.

(Toma-lhe a mão)

Enxuga-a! que lentor!

(Encarando fitamente na mão)

De sangue vem tingida!
Justos céus, que fizeste? Embainha essa espada!
Pela cruz to suplico.

FAUSTO
O pretérito é nada.
Matas-me.

MARGARIDA
Não te hás-de ir, antes de satisfeito
o que aos mortos se deve, e exige pronto efeito,
e amanhã já. Repara! Importa que to explique:
No principal sepulcro a mãe; meu mano fique
logo ao pé dela. A mim, talha-me a cama fria
mais longe, mas, por Deus, não longe em demasia.
Ao meu seio direito, o nosso pequenino
muito aconchegadinho; e mais, só determino
que junto a mim, ninguém. Por suma glória tinha
jazer-me ao pé de ti; foi outra sorte a minha.
Como que sinto um braço a empuxar-me invisível
para ti... de ti outro a repulsar-me horrível.
E mesmo assim és tu, que me olhas tão piedoso.

FAUSTO
Pois se vês que sou eu, se vês que te amo, e ouso
salvar-te, é vir comigo, e já.

MARGARIDA
Lá para fora?

FAUSTO
Sim, sim, para o ar livre.

MARGARIDA
Ai, não, não. Nesta hora
anda por lá a morte à minha espreita. Escuta!
Avizinha-se; fico; e espero-a resoluta.
Não movo pé daqui senão para a jazida
onde nunca se acorda, e todo o mal se olvida.
Adeus, e para sempre, amado Henrique! Parte!
Vive!... Não poder eu agora acompanhar-te!

FAUSTO
Podes, queira-lo tu. A porta está patente.

MARGARIDA
Não me é dado sair. Perdida totalmente
a esperança! Fugir! E para quê, se eu sei
que me alcançavam logo? oh! não, não fugirei.
Achavas que era dita andar de terra em terra
a mendigar o pão, comigo própria em guerra?
sempre em sustos? Quem foge a tantos mil espias?

FAUSTO
Bem; morrerei contigo, uma vez que aporfias.

MARGARIDA
Vem! Corre! Dá-te pressa!
Acude ao teu filhinho!
Sabes? a via é essa,
que borda o ribeirinho.
Remonta-lhe a corrente!
Corta-o na ponte! Dás
num matagal em frente!
À esquerda encontrarás
o açude de um moinho...
É lá, é lá,
que inda boiando está
o inocentinho.
Vai, salva-o, que és seu pai!
vai! vai!

FAUSTO
Deliras, Margarida! Ah! torna em ti! Desperta!
Decide-te! Um só passo, ó cara, e estás liberta.

MARGARIDA
Oh! quem já me dera passado este monte!
A mãe lá em cima diviso sentada
na penha escalvada, que fica defronte!
Que mão regelada as tranças me aferra!
Não posso; fujamos; assombra-me; aterra
ver sempre defronte a mãe assentada
na penha escalvada no cimo do monte.
Meneia a fronte,
sem que me veja.
Não pestaneja.
Que ar de quebranto!
Se dormiu tanto!
Dorme, e jamais há-de acordar:
adormeceu para deixar
o nosso amor em liberdade.
Gostos da minha mocidade,
quão breve tínheis de acabar!

FAUSTO
Já que és surda à razão, e às súplicas do amor,
levo-te à força.

(Deitando-lhe as mãos.)

MARGARIDA
Pára! Afasta-te! Ousas pôr

mãos violentas em mim? Neguei-te eu nunca outrora
nada do que é devido àquele a quem se adora?

FAUSTO
Doce amor da minha alma, é dia; vês? é dia.

(Apontando-lhe para as grades da janela)

MARGARIDA
Vejo; o meu derradeiro, o mesmo que devia
sagrar o nosso enlace.
Esconde a toda a gente
que estiveste comigo.
Adeus eternamente,
pobre coroa minha!
Hajamos esperança
de tornar-nos a ver, mas não será na dança.
... Em cada rua povo! e povo! e povo! a praça
apinhada em silêncio; o juiz que espedaça
a vara, e aos pés ma atira! aquilo é o campanário,
que lá me está chorando o dobre funerário!
Tomam-me; atam-me as mãos; chegam-me ao cepo, sente
cada um no seu colo o golpe ao meu pendente...
Acabou-se o universo.

FAUSTO
Antes não ter nascido
se tinha de ver isto: ela, assim! eu perdido!

Cena II

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MEFISTÓFELES da parte de fora da grade, os DITOS

MEFISTÓFELES
Perdidos, se exauris em frases e terrores
o instante de escapar.

(Entra)

Os nosso corredores
escarvam d’impaciência. A manhã rasga.

MARGARIDA (com grande terror)
Aquilo
que surde além do chão... quem é?! Vai despedi-lo,
Ele, ele! que me quer! Tenta levar-me! Ousado
vem-me inda perseguir neste lugar sagrado!

FAUSTO
Viverás!

MARGARIDA (pondo os olhos no céu)
Juiz Sumo, a ti me entrego.

MEFISTÓFELES (a Fausto)
Vem,
ou deixo-te com ela. Escolhe!

MARGARIDA
Sumo Bem,
Pai meu, que estás nos céus, salva-me, que eu sou tua
Santos Anjos de Deus, levai-me à vista sua!
Henrique, horror a ti minha alma purifique!

Cena III

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Abre-se por cima o Empíreo. CORO DE ANJOS e OS DITOS

MEFISTÓFELES
Sentenciada!

CORO DE ANJOS
Salva!

MEFISTÓFELES (apossando-se de Fausto e levando-o consigo)
És meu.

MARGARIDA (já nas alturas, para onde tem ido subindo)
Henrique! Henrique!

FIM DO POEMA