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Felicidade pelo casamento/II

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A viagem ao Rio de Janeiro tinha para mim um encanto; é que, embora perdesse os carinhos maternais e os passeios ao longo dos rios da minha província, vinha para uma capital desconhecida, onde, no meio da multidão, podia isolar-me e viver comigo e de mim. Os negócios de que vinha tratar dependiam de poucas relações, que eu inteiramente não estreitaria mais do que o necessário.

Fui morar em uma casa da Rua Direita com o meu criado João, caboclo do Norte, que me conhecia o gênio e sabia sujeitar-se às minhas preocupações.

A casa não era grande nem pequena; tinha duas salas, uma alcova, e um gabinete. Não tinha jardim. Ao manifestar o meu despeito por isso, acudiu João:

— Há jardins e passeios nos arredores, meu amo. Meu amo pode, sempre que quiser, ir passear pelo interior. E Petrópolis? Isso é coisa rica!

Consolei-me com a expectativa dos passeios.

Passei os primeiros dias a ver a cidade.

Vi muita gente boquiaberta diante das vidraças da Rua do Ouvidor, manifestando no olhar o mesmo entusiasmo que eu quando contemplava os meus rios e as minhas palmeiras. Lembrei-me com saudade das minhas antigas diversões, mas tive o espírito de não condenar aquela gente. Nem todos podem compreender os encantos da natureza, e a maioria dos espíritos só se nutrem de quinquilharias francesas. Agradeci a Deus não me ter feito assim. Não me detenho nas impressões que me causou a capital. Satisfiz a curiosidade e voltei aos meus hábitos e isolamento.

Dois meses se passaram sem novidade alguma. Iam bem os negócios que me trouxeram ao Rio, e eu contava voltar à província dentro em poucos meses.

Durante este primeiro período fui à Tijuca duas vezes. Preparava-me para ir a Petrópolis quando fui atacado de uma febre intermitente.

João chamou um médico da vizinhança, que me veio ver e conseguiu pôr-me são.

O Magalhães era um belo velho. Ao vê-lo parecia-me estar diante de Abraão, tal era a sua fisionomia, e tal a moldura venerável de seus cabelos e barbas brancas.

Sua presença, tanto como os remédios que me deu, serviu de curativo à minha doença.

Quando vinha visitar-me levava horas e horas em conversa, interrogando-me sobre as mil particularidades de minha vida, com um interesse tão sincero, que não me dava lugar a negativa alguma.

O doutor era um velho instruído e tinha viajado muito. Era um prazer conversar com ele. Não me contava cenas da vida de Paris, nem aventuras de Hamburgo ou Baden-Baden. Falava-me do mar e da terra, mas no que o mar tem de mais solene e no que a terra tem de mais sagrado. O doutor pisara o solo da Lacedemônia e o solo de Roma, beijara o pó de Jerusalém, bebera a água do Jordão e rezara ao pé do Santo Sepulcro. Na terra grega foi acompanhado de Xenofonte, na terra romana de Tito Lívio, na terra santa de São Mateus e São João.

Eu ouvia as suas narrativas com um respeito e um recolhimento de poeta e de cristão. O velho falava com ar grave, mas afetuoso e ameno; contava as suas viagens sem pretensão, nem pedantismo. Aquela simplicidade dava-se comigo. Tal foi o motivo por que, terminada a moléstia, era eu já amigo do Magalhães.

Entrando em convalescença, julguei que era tempo de satisfazer as visitas do médico. Escrevi-lhe uma carta, incluí a quantia que julgava devida, e mandei pelo João à casa do doutor.

João voltou dizendo que o doutor, depois de hesitar, não quisera receber a carta, mas que se preparava para ir à minha casa.

E, com efeito, daí a pouco entrava-me em casa o Magalhães.

— Então quer brigar comigo? perguntou-me ele parando à porta. Fazem-se estas coisas entre amigos?

Minha resposta foi atirar-me aos braços do velho.

— Então! disse ele; já vai recuperando as cores da saúde. Está são...

— Qual! respondi eu; ainda me sinto um pouco fraco...

— De certo, de certo. É que a doença o prostrou deveras. Mas agora vai indo pouco a pouco. Olha, por que não toma ares fora da cidade?

— Eu preparava-me para ir a Petrópolis quando caí doente. Irei agora.

— Ah! ingrato!

— Por quê?

— Mas tem razão. Eu ainda nada lhe disse de mim. Pois, meu amigo, se eu lhe oferecesse casa em Andaraí... deixaria de ir a Petrópolis?

— Oh! meu amigo!

— Isto não é responder.

— Sim, sim, aceito o seu favor...

No dia seguinte, um carro nos esperava à porta. Deixei a casa entregue ao meu caboclo, a quem dei ordem de ir à casa do doutor, em Andaraí, três vezes por semana.

Eu e o doutor entramos no carro e partimos.

A casa do doutor era situada em uma pequena eminência, onde, vista de longe, parecia uma garça pousada em uma elevação de relva.

No jardim e no interior tudo respirava o gosto e a arte, mas uma arte severa e um gosto discreto, que excluíam todas as superfluidades sem valor para dar lugar a tudo o que entra nas preferências dos espíritos cultivados.

No jardim algumas plantas exóticas e belas adornavam os canteiros regulares e cuidados. Dois caramanchões elegantes e leves ornavam o centro do jardim, um de cada lado, passando entre ambos uma rua larga flanqueada de pequenas palmeiras.

— É aqui, disse-me o velho, que havemos de ler Teócrito e Virgílio.

A casa, mobiliada com elegância, era pequena; mas tudo muito bem distribuído, tudo confortável, de modo que as paredes externas tornavam-se os limites do mundo. Vivia-se ali.

O doutor possuía mil lembranças das suas viagens; cópias de telas atribuídas aos grandes mestres de pintura, manuscritos, moedas, objetos de arte e de história, tudo ornava o gabinete particular do doutor, nessa confusão discreta que resume a unidade na variedade.

Uma biblioteca das mais escolhidas chamava a atenção dos estudiosos em um dos gabinetes mais retirados da casa.

— Agora que já viu isto tudo, deixe-me apresentá-lo a meu irmão.

E chamando um moleque mandou chamar o irmão. Daí a pouco vi entrar na sala em que nos achávamos um homem alto, menos velho que o doutor, mas cujas feições indicavam a mesma placidez de alma e qualidades do coração.

— Mano Bento, disse o doutor, aqui te apresento o sr.... É um amigo.

Bento recebeu-me com a maior cordialidade e dirigiu-me palavras da mais tocante benevolência.

Vi então que a palavra amigo era para os dois um sinal de distinção e que havia entre ambos a certeza de que quando um deles chamava amigo a um terceiro é que este o era e merecia a afeição do outro.

No mundo, de ordinário, não é assim. Hoje, mais ainda que ao tempo de Molière, é verdadeira e cabida a indignação de Alceste:

Non, non, il n’est point d’âme un peu bien située
Qui veuille d’une estime ainsi prostituée.*