Felicidade pelo casamento/III

Wikisource, a biblioteca livre

No fim de um mês de convalescença resolvi voltar para a cidade.

Que mês aquele!

O doutor saía de manhã e voltava à tarde para casa. Durante o dia ficávamos eu e o irmão do doutor, matávamos o tempo passeando ou conversando; Bento não era tão instruído como o doutor, mas tinha a mesma bondade e afabilidade, de modo que eu sempre ganhava com um ou com outro.

À tarde quando o doutor chegava punha-se o jantar à mesa; e depois íamos ler ou passear pelos arredores.

Ainda me lembro dos passeios que fizemos ao alto da Tijuca. Às sete horas da manhã vinham dizer-nos que os cavalos estavam prontos. O doutor, eu e Bento saíamos imediatamente. Um criado nos acompanhava levando uma pequena canastra. Chegando ao termo do passeio, o doutor escolhia um lugar favorável e mandava abrir a canastra.

— É uma refeição de preparo, dizia ele.

E, debaixo de uma árvore, às brisas frescas da montanha, comíamos algumas frutas secas com vinho velho e pão.

Tendo resolvido voltar para a cidade, mesmo para adiantar os negócios que me traziam à corte, e que se achavam atrasados, dispus-me a dar parte disso aos meus hóspedes.

Era de manhã, voltava eu de um passeio à roda do jardim. Entrei pelo fundo. Na sala de visitas estavam o doutor e Bento. Ouvi-os conversar e pronunciar o meu nome. Não podiam pronunciá-lo senão em sentido favorável. Picou-me a vaidade. Quis ouvir o meu elogio na boca daqueles dois amigos, tão recentes e tão completamente amigos.

— Mas que tem isto com...? perguntou Bento.

— Tem tudo, respondeu o doutor.

— Explica-me.

— Sou, como sabes, amigo desse moço...

— Também eu...

— Mas esta amizade é tão recente que ele ainda não tem tempo de nos conhecer. Pelas nossas conversas soube eu que ele possui uma fortuna muito regular. Obriguei-o a vir para aqui. Se Ângela vier agora para casa, parecerá que, contando com o coração e a mocidade de ambos, armo a fortuna do rapaz.

— Ele não pode pensar isso.

— Sei que é uma boa alma, mas é tão mau o mundo, pode fazer-lhe supor tanta coisa...

— Enfim, eu insisto, porque a pobre menina escreveu-me dizendo que está com saudades da casa. A própria tia, sabendo disto, deseja que ela venha passar uns tempos conosco.

Nisto entrou na sala um moleque dizendo que o almoço estava na mesa.

Eu retirei-me ao meu quarto, onde o doutor e Bento me foram buscar.

À mesa, não me pude ter. Enquanto o doutor me deitava vinho no copo, disse-lhe sorrindo:

— Meu amigo, acho que faz mal em privar-se de uma felicidade que lhe deve ser grande.

— Que felicidade?

— A de ter sua filha perto de si.

— Ah! exclamaram os dois.

— É sua filha D. Ângela, não?

— É, murmurou o doutor; mas como sabe?

— Fui indiscreto, e dou graças a Deus de tê-lo sido. Não, não sou capaz de supor-lhe uma alma tão baixa; conheço a elevação dos seus sentimentos... Demais, eu já tencionava ir-me agora.

— Já? perguntou Bento.

— É verdade.

— Ora, não!

— Mas os negócios?

— Ah!

Notei que ficaram tristes.

— Pois ficarei, disse eu; ficarei ainda alguns dias. Entretanto vamos hoje buscar a filha desterrada.

Acabado o almoço mandou-se preparar o carro e fomos os três buscar a filha do doutor.

Ângela recebeu com verdadeira satisfação a notícia de que ia para casa de seu pai. Quem, ouvindo esta notícia, ficou logo carrancudo e zangado, foi um rapaz que lá encontramos na sala, a conversar com a tia e a sobrinha. Era uma dessas fisionomias que não mentem nem enganam ninguém. Respirava frivolidade a duas léguas de distância. Adivinhava-se, pela extrema afabilidade do começo e completa seriedade do fim da visita, que aquele coração namorava o dote de Ângela. Falo assim, não por ódio, como se poderá supor pelo correr desta história, mas por simples indução. Fisionomias daquelas não pertencem a homens que saibam amar, na verdadeira extensão desta palavra. Se não era o dote, eram os gozos dos sentidos, ou então simples vaidade, não faltando uma destas razões, e é essa a explicação plausível daquilo que eu já chamava namoro.

Os meus dois hóspedes conheciam o rapaz. Quando Ângela deu parte de pronta, despedimo-nos e o doutor ofereceu a casa ao namorado, mas com uma fria polidez.

Partimos.

Ângela, a quem fui apresentado como amigo da casa, era um daqueles espíritos afáveis para quem a intimidade seguia-se à primeira recepção. Era um tanto gárrula, e eu compreendia o encanto do pai e do tio, ouvindo-a falar com tanta graça, e todavia sem indiscrição nem fadiga.

A mim, tratava-me ela como se fora um velho amigo, o que me obrigou a sair da minha taciturnidade habitual.

Enquanto o carro voltava a Andaraí e eu ouvia as mil confidências de Ângela sobre os passatempos que tivera em casa de sua tia, estudava eu conversando ao mesmo tempo as relações entre este espírito e o rapaz de quem falei. Que curiosidade era a minha? Seria simples curiosidade de quem estuda caracteres ou já algum interesse do coração? Não posso dizê-lo com franqueza, mas presumo, talvez orgulho meu, que era a primeira e não a segunda coisa.

Ora, o que eu concluía era que, na vivacidade e na meiguice de Ângela, é que se devia procurar a razão do amor do outro. Os homens medíocres caem facilmente neste engano de confundir com a paixão amorosa o que muitas vezes não passa de uma simples feição do espírito da mulher. E este equívoco dá-se sempre com os espíritos medíocres, porque são os mais presunçosos e os que andam na plena convicção de conhecerem todos os escaninhos do coração humano. Pouca que seja embora a prática que eu tenho do mundo, o pouco que tenho visto, e algo que tenho lido, o muito que tenho refletido, deu-me lugar a poder tirar esta conclusão.

Chegamos finalmente a Andaraí.

Ângela mostrava uma alegria infantil tornando a ver o jardim, a casa, a alcova em que dormia, o gabinete em que lia ou trabalhava.

Dois dias depois da chegada de Ângela a Andaraí apareceu lá o sr. Azevedinho, que é o nome do rapaz que eu vira em casa da irmã do doutor.

Entrou saltitando e espanejando-se como passarinho que foge à gaiola. O doutor e o irmão receberam o visitante com afabilidade, mas sem entusiasmo, o que é fácil de entender, atendendo-se a que a vulgaridade do sr. Azevedinho era a menos convidativa deste mundo.

Ângela recebeu-o com alegria infantil. Eu, que começara o meu estudo, não perdi ocasião de continuá-lo atentamente para ver se era eu quem me enganava.

Não era.

Azevedinho é que se enganava.

Mas, e é esta a singularidade do caso, mas por que motivo, apesar da convicção em que eu estava, entrou-me no espírito certo desgosto, em presença da intimidade de Ângela e Azevedinho?

Se ambos saíam a passear no jardim, não me podia eu conter, convidava o doutor a igual passeio, e seguindo os passos dos dois, não arredava deles os olhos atentos e perscrutadores.

Se se retiravam a uma janela para conversarem sobre coisas fúteis e indiferentes, lá os seguia eu e tomava parte na conversação, tendo sobretudo um prazer especial em chamar exclusivamente a atenção de Ângela.

Por que tudo isto?

Seria amor?

Era. Não posso negá-lo.

Dentro de mim, até então oculto, dava sinal de vida esse germe abençoado que o Criador depôs no coração da criatura.

Digo até então, porque o primeiro sentimento que eu sentira por uma mulher e a que aludi nas primeiras páginas, não era absolutamente da natureza do amor que eu agora sentia.

Então, não era tanto o sentimento, como a virgindade do coração, que dava alcance à felicidade que eu almejava e à dor que sentia. O sentimento que agora se apossara de mim era outro. Dava-me comoções novas, estranhas, celestes. De hora a hora eu sentia que se estreitava o laço moral que me devia prender àquela menina.

Levantei as mãos para o céu quando Azevedinho se despediu. Ele parecia feliz, e se, amando Ângela, tinha razão de sê-lo, devia ser bem oculta a conversação dos olhos de ambos que escapasse ao meu olhar perscrutador.

O que é certo é que eu levantei as mãos ao céu quando Azevedinho saiu.

Foram todos acompanhá-lo à porta, por cortesia. Aí, o desempenado rapaz montou no alazão em que viera e desceu garboso a estrada deitando aos ares saborosas fumaças de charuto.