Filomena Borges/I
O Borges não cabia em si de contente no dia de seu consórcio com a filha de D. Clementina.
Estava a perder a cabeça — ia e vinha por toda a casa, radiante, cheio, abraçando os convidados, forçando-os a participarem daquela felicidade, que marcava a melhor e a mais extraordinária época de sua vida.
Era homem de meia idade, quarenta a quarenta e cinco anos, robusto, socado, fisionomia franca e extremamente bondoso, movimentos acanhados de quem não convive em alta sociedade, e um perene sorriso de dentes puros e perfeitos.
Usava o bigode raspado e uma barbinha de orelha a orelha, por baixo do queixo-o que o fazia parecer mais feio e mais velho. Nunca saía de suas calças de brim mineiro, do seu invariável paletó de alpaca, dos seus sapatões de bezerro e do seu chapéu do Chile. Um enorme guarda-chuva sempre debaixo do braço.
Todo ele estava a revelar a sua infância no campo, descalço, o corpo à vontade, as madrugadas feitas de pé, ao primeiro sol.
Nascera em Paquetá, onde se criou à larga com leite de jumenta, e onde residiu até a ocasião de perder o pai, um afamado e rico mestre de obras, português, antigo, econômico e ríspido, que, ao morrer lhe legou uma dúzia de prédios bem edificados, alguns terrenos, que mais tarde valeriam muito, e o inestimável hábito de ganhar a vida.
Borges sucedeu ao pai no trabalho, fez-se construtor como ele, e, em poucos anos, tornou-se um dos proprietários mais ricos da Corte. Todavia, o muito dinheiro, se não conseguiu fazer dele um extravagante, muito menos logrou precipitá-lo no orgulho e na avareza — o coração do bom homem continuou tão franqueado às virtudes, quanto sua bolsa fechada às loucuras e às vaidades.
Além desses dotes, tinha uma saúde de ferro e dispunha de uma força física de tal ordem, que se tornou legendária entre as pessoas que o conheciam de perto.
Citavam anedotas a esse respeito: um dia, estando a administrar umas obras, escapara dos andaimes um dos pedreiros, e o Borges apanhou-o no ar, como quem apanha um chapéu de palha, outra vez, tratando-se de safar um pobre diabo, que ficara entalado entre uma andorinha e uma parede — o nosso Borges arranjou um ponto de apoio, meteu os ombros contra a andorinha, e esta virou e caiu imediatamente para o lado oposto.
E como estes, muitos outros fatos, verdadeiros ou não, corriam de boca em boca, a respeito do possante mestre de obras.
Verdade é que bastava observar aquela carne transpirante e sadia, aqueles pulsos rijos e cabeludos, aquele peito largo, aquele pescoço nervoso e duro, para que a gente fizesse logo uma idéia justa do que seria capaz o Borges em matéria de força muscular.
Contudo, ninguém era menos amigo de questões. Nunca se metia em barulho; às vezes até, coitado, suportava em silêncio certos desaforos: mas também, quando lhe chegasse a mostarda ao nariz, o contendor podia entregar o seu ao boticário, porque o esborrachamento havia de ser memorável.
Devido a essa pujança excepcional, davam-lhe a alcunha significativa de João Touro.
João Touro era geralmente tido e havido pelo mais completo modelo de bondade e de bom senso. Ninguém lhe fosse pedir manifestações brilhantes de talento, concepções artísticas, descobertas científicas; ele, coitado! não era "homem de estudos" e nunca também lhe "puxaram muito pela memória". Aos doze anos saíra da aula de primeiras letras para se meter logo no trabalho; mas tinha muito "bom pensar" e um tino admirável para os negócios. Seu único vício consistia no rapezinho Paulo Cordeiro — nada de charutos!! — nada de bebidas! — e grande aversão às mulheres que não fossem tão puras como ele.
Antes do casamento, ninguém lhe conheceu uma inclinação amorosa, uma fraqueza; e nunca ninguém lhe descobriu outra preocupação que não fosse a do seu trabalho e a do — "seu Urso".
Urso vinha a ser um enorme cão de São Bernardo, que o acompanhava, havia muitos anos. Animal bonito, todo negro, e de uma aparência tão feroz, que lhe dava inteiro direito de usar do nome.
Todavia, o mestre de obras fora algumas vezes requestado pelas mulheres. Várias trintonas lhe lançaram a rede, mas ele sempre se desviara sorrindo e corando.
Entre essas, distinguia-se D. Chiquinha Perdigão, mulher de firma comercial, negociante, muito rica, com um bonito nome na praça — Viúva Perdigão & Cia.
O Borges, porém não queria outros negócios com ela, além dos de puro interesse pecuniário, e embalde o demônio da viúva empregava todos os meios para obrigá-lo a desistir de tal resolução.
Uma vez chegou a tomar-lhe as mãos, confessar que o amava, que só a ele podia fazer feliz; e o bom homem, sem ter uma resposta, pôs-se a suar, a suar até que fugiu, atônito e espavorido, como se levasse uma fera atrás de si.
Só a filha de D. Clementina, a flor das moças do Catete, a bela Filomena, teve o dom de acordar naquele coração encruado as fibras adormecidas do amor.
Ele próprio não atinara como "aquilo" se dera: um dia, a convite de Guterres, foi à casa de D. Clementina, viu a pequena, ouviu-a cantar ao piano um romance de Tosti, e desde esse momento não ficou mais senhor de si.
E o amor, o desejo, a paixão, rebentaram-lhe por dentro, como um monstro que se levanta, espedaçando a velha calma de quarenta anos.
Era a primeira vez que amava. O Borges, que até aí vivera para as suas propriedades e para os seus prédios em construção, desde que viu Filomena, desde que concebeu a idéia de possuí-la, nunca mais pôde compreender a existência sem a companhia dessa formosa criatura, por quem logo se sentiu capaz de todos os sacrifícios.
Lamentava, contudo não ser mais novo; não dispor de mais atrativos, para melhor merecê-la. Desejava ser mais fino, mais terno, mais civilizado; temia assustá-la com a sua medonha figura de touro. Receava o contraste formidável de sua grossa corpulência, de seu abdômen redondo e farto, de suas mãos curtas e vermelhas, de seus pés enormes, postos em confronto com aquele corpinho tão delicado, tão bem feito, com aquela pele tão branca, com aqueles pezinhos tão sutis.
Oh! aquele casamento realizava o melhor sonho de sua vida! Ele queria-a tanto!...
Os amigos ficaram pasmados quando tiveram notícia do fato:
— Quê?!... Pois o Borges, o João Touro, aquele pax vobis ia casar! e logo com quem?!..., com a filha de D. Clementina — a moça mais romântica e mais cheia de fumaças que havia no mundo!... Oh! — O João Touro com certeza não estava em seu juízo! — Ninguém lhe dizia que não casasse; mas, que diabo! fosse buscar uma mulher mais própria para isso e não uma cabecinha de vento, que só cuidava em patacoadas e maluquices!
O seu amigo mais íntimo e mais antigo, o Barroso, não se pôde conter, quando o Borges lhe falou nisso:
— Enlouqueceste, homem de Deus?! Não vês que vais fazer uma reverendíssima asneira?! Não vês que aquilo não é mulher que te convenha?! Não desconfias pedaço dasno, que aquela sirigaita e mais a raposa da mãe estão a farejar-te os cobres?!... Não compreendes que elas te querem, porque tens para mais de quinhentos mil contos?! Ora vai deitar um cáustico na nuca?!
João Touro, porém, não estava em circunstâncias de pensar. Todo ele era pouco para a sua paixão e, depois de uma conversa agitada com o Barroso, concluiu, perdendo a paciência:
— Homem! queres saber de uma coisa?! Vocês podem rosnar como entenderem; o que lhes afianço é que só a própria D. Filomena seria capaz de me fazer desistir do casamento. Só ela! Entendes tu?! só ela!
— Bem filho! respondeu o Barroso com o gesto de quem solta alguma coisa das mãos. — Tua alma, tu palma! Assim o queres, assim o terás. — Ora essa! Na certeza de que — para mim — se levares a cabo a tua doidice — perdeste tudo!
— Pois que perca! É boa!
— E desde então não contes comigo para coisa alguma!
— Vai para o diabo! gritou-lhe Borges, enterrando o chapéu na cabeça, e saindo furioso.
Entretanto, a Filomena custou bastante resolver-se a dar o "sim".
Muito sonhadora, muito saturada de romantismo, não se conformava com a idéia de se ligar a um burguês ratão como o Borges.
Tinha lá o seu ideal, seu tipo e, só com muito sacrifício, desistiria da esperança de encontrá-lo no mundo.
Sempre fora muito dessas coisas. Aos quinze anos perdia noites a ler novelas, várias vezes foi a mãe encontrá-la assentada no jardim, olhos no céu, a cismar, a cismar, perdida nos seus devaneios.
Era então franzina, muito descorada, e tinha grandes pupilas negras de um rebrilhar de tísica. Quase nunca expunha o colo, e seus vestidos, sempre afogados, cosidos à garganta por um estreito colarinho de rendas, davam-lhe o ar passivo e contrafeito de uma pensionista das irmãs de caridade.
Quando ria, o que era raro, mostrava dentes grandes, alinhados e extremamente claros. De perto, bem examinada, notava-se-lhe no canto dos olhos, estalando o pó de arroz, uma redezinha de pequenas rugas trêmulas, que se espalhavam pelas frontes, até à entrança dos cabelos. Em torno das sobrancelhas, finas e delgadas, nas mucosas das pálpebras, das orelhas, do nariz e da boca — um tom arroxeado de umidade serosa e doentia. As pestanas, muito escuras e ramalhudas, pareciam despregar e cair a cada movimento dos olhos.
Nas soirées fazia impressão vê-la assentada horas esquecidas a um canto da sala; muito direita no seu espartilho, o corpo teso, os longos e vagarosos braços cruzados sobre o ventre, os ombros empinados e contraídos, como por uma sensação de medo, trazia sempre o cabelo com singeleza; quando não era solto, apenas enrodilhado na nuca, acentuado o desenho puro de sua cabecinha redonda e deixando lobrigar parte do pescoço, que já então principiava a ser belo na sua cor de camélia fanada.
Perdera o pai por essa idade, e sua mãe D. Clementina de Araújo, uma senhora magra e comida de desgosto, impacientava-se silenciosamente por ver casada "aquela filha que Deus lhe dera".
Era essa toda a sua preocupação e também toda a sua esperança: — "Só um bom casamento as salvaria da triste situação em que se achavam".
O chefe da casa — o defunto conselheiro — não fora homem previdente, e gastara-se quase todo em procurar luzir; os bens, que sobejaram da política, caíram na voragem do jogo e das confeitarias. Ainda assim durante a vida, nunca lhe perceberam sombra de dificuldades, nem houve jamais, quem melhor soubesse guardar as conveniências de sua posição social. Os chás do defunto conselheiro eram deliciosos.
Quando uma apoplexia veio chamá-lo para a cova, os amigos tiveram que se cotizar para o fim de lhe pagarem as dívidas, a viúva teve que trabalhar para manter decentemente a filha — essa pobre filha, que da existência apenas conhecia alguns noturnos ao piano e alguns romances traduzidos do francês; essa filha, que crescera à luz do gás, dançando desde os quatro anos, e arruinando o estômago com os mesmos doces que arruinaram a fortuna do pai.
Trabalhar! Trabalhar seria o menos; esconder a precisão do trabalho é que era mais difícil! Felizmente o prédio em que moravam pertencia à orfã, e o imperador, que fora amigo do defunto — amigo e compadre — havia de ajudá-la.
Assim foi: Sua Majestade não negou o seu augusto auxílio à comadre, e esta, por sua vez, tratou de alugar o prédio e refugiar-se com a filha em uma casa mais em conta.
— Não seria, porém, metida entre quatro paredes, que a menina arranjaria um bom casamento! — Era preciso aparecer! — Mas os bailes, os teatros, os passeios, custavam tanto! — As modistas e os armarinhos "pediam os olhos da cara por qualquer trapo mais no tom!"
Todavia, não desertaram da boa sociedade.
Mas quanto sacrifício! Quanta luta! Quanto heroísmo ignorado! Que de lágrimas não havia escondidas naqueles vestidos enfeitados pela quarta vez! Quanta amargura naqueles penteados, naquelas capas, naqueles chapéus! Quanto sofrimento, quanta resignação naqueles leques, naqueles sapatinhos e naqueles sorrisos de amabilidade?
Às vezes tinham ambas que passar pior de boca, para não faltarem ao baile do Sr. conde de tal ou à soirée do Sr. barão de tal e tal. Uma verdadeira campanha! Um verdadeiro martírio, principalmente para a rapariga, que, em constante revolta com a realidade, estava sempre a sonhar coisas extraordinárias e regalias de alto preço.
A longa peregrinação pelas salas e pelas ruas dera-lhes um grande tato, uma grande experiência. Conheciam a gente à primeira vista. Mãe e filha entravam já familiarmente pelas almas dos indivíduos e iam devassando o que lá estava por dentro, como se bisbilhotassem uma gaveta franqueada.
Para a velha, então, não havia coração, por mais fechado, que se não traísse. Embalde procuravam outros, em idênticas circunstâncias, dissimular a falta de certos recursos; embalde se endomingavam caixeiros pobres, literatos necessitados, doutores sem meios de vida, procurando iludir, aparentar grandezas: — era bastante que D. Clementina corresse por qualquer deles uma olhadela de alto a baixo, para ficar sabendo quanto o sujeito pesava ao certo — quanto ganhava, quanto possuía, que lugar, enfim, devia ocupar na bitola de sua consideração.
Porque, é preciso notar, a viúva do conselheiro tinha já uma bitola para aferir os pretendentes da filha. Essa bitola marcava desde o marido "ótimo" até ao marido "péssimo". Quando a velha se referia a algum deles dizia secamente "regular" ou "bom", "sofrível para bom", etc. E essas simples palavras, ditas à socapa, determinavam as maneiras que Filomena devia usar para com o tal sujeito, se este se apresentasse.
O fato é que muita gente a cortejava. D. Clementina de vez em quando abria a casa aos seus amigos.
Que talento desenvolvido nesses modestos chás de família! Nada deixava perceber o mecanismo posto em ação para que não viesse a faltar coisa alguma no melhor da festa. Havia sempre piano, canto, recitativos, e às vezes dança, muita dança.
Mas tudo isso era por conta, peso e medida. Não se gastava um fósforo que não estivesse inventariado. Acabada a festa, procedia-se a um balanço minucioso; guardava-se com todo o cuidado o que pudesse servir para outra vez, e, antes de se deitarem, as duas senhoras arrumavam tudo, escovavam as roupas, acondicionavam as botinas, os leques e as jóias falsas.
Filomena lançava-se depois aos travesseiros, devorada por um estranho desgosto da vida, por uma vaga necessidade de horizontes largos, um desejar pungente de coisas imprevistas e grandes, uma sede indefinida de empresas arriscadas e situações transcendentes, que sua louca imaginação mal podia delinear.
E chorava muito, aflitivamente, sem saber porque. No outro dia eram suspiros e mais suspiros, queixas, tristezas, e um fastio e um tédio de causarem dó.
A mãe caía-lhe em cima, a ralhar, a aconselhar. Filomena que se deixasse de bobagens, que os tempos não davam para isso! E dizia-lhe tintim por tintim o que lhe convinha praticar, como devia proceder. Ensinava-lhe os segredinhos de agradar a todos, de prender, de "prometer sem dar, de negar, sem desistir".
— Agüenta-te, minha filha! Agüenta-te como vais, e um belo dia, quando menos o esperares, cai-te do céu um noivo "dos bons", que nos indenizará de todos estes sacrifícios.
O belo dia chegou com efeito, e o Borges caiu.
— Hein? que te dizia eu?... perguntou a velha, abraçando-se à filha, com as lágrimas nos olhos. — Chegou ou não chegou a tua vez?
Filomena abaixou o rosto e fez um gesto de descontentamento.
— Ora, deixa-te dessas coisas, minha filha! observou a mãe, apanhando no ar a intenção daquele desgosto. Quem dera a muitas a tua fortuna!
A outra soltou um grande suspiro.
— Que mais querias tu, então?!... volveu D. Clementina, entre meiga e repreensiva. — Quem sabe se preferias por aí algum bonifrates, que nos viesse atrapalhar ainda mais o capítulo?...
A filha emplumou-se com altivez, franziu o nariz, e estalou um muxoxo desdenhoso.
— Então?! prosseguiu a viúva do conselheiro.
— O Borges não é de certo nenhum Adonis; mas é um maridão, que vale quanto pesa!
E engrossando a voz, respeitosamente:
— Muito benquisto, muito bem relacionado... não é nenhum pé de boi... tem sua educaçãozinha... e, olha, filha, que aquilo tudo é sólido!
— Ora, faça-me o favor!..., disse a rapariga, impacientando-se — sólido será, mas não me venha dizer que o Borges tem educação!... É um bruto! É mesmo um "João Touro"!
— Não é tanto assim, menina!
— E o que fez ele outro dia aqui em casa?! Aquilo é de quem tem educação?! Um homem que come com a faca! Ora, minha mãe!...
— De acordo, de acordo, mas tu também deves fechar os olhos a umas certas coisas, oh!... Os bons maridos fazem-se, preparam-se — os diamantes não se encontram já lapidados! E, então aquele, coitado! Que a gente o leva para onde quer... Ali, é teres um pouco de paciência e o porás a teu jeito!
— Não acredito que daquele lorpa se possa fazer alguma coisa! retrucou a menina com desdém.
— Parece-te agora, verás depois que é justamente o contrário!... Em questões de casamento, minha filha, as aparências quase sempre enganam muito! Em geral os maridos que nos parecem mais fáceis de tragar, são justamente os mais amargos: ao passo que os outros, os tipos, os "Borges", esses são os bons, os doces! Cá por mim, nunca aconselharia mulher alguma a unir-se a um homem, que julgasse o seu espírito superior ao dela. Nada! Para haver perfeito equilíbrio num casal, é sempre indispensável que o marido conheça alguma superioridade na mulher: seja essa superioridade de fortuna, de inteligência, de educação ou mesmo de força física. Desgraçada da tola que não pense sobre isso antes do casamento — não será uma esposa, será uma escrava!
E D. Clementina, depois de dar uma pequena volta na sala terminou, batendo com ternura no ombro da filha: — Não te queixes da sorte, ingrata! O que no Borges agora se te afigura defeitos, são justamente qualidades muito aproveitáveis! Não avalias o tesouro que ali está! Digo-te com experiência! E, se duvidas, deixa correr o tempo, e dir-me-ás depois!
Filomena não se decidiu logo; porém, daí a poucos dias, a morte inesperada da mãe obrigou-a a tomar uma deliberação. Seis meses depois, voltava ela de uma igreja, casada com o Borges.
Seguiram logo para Botafogo, onde iam morar, segundo exigira a noiva. João Touro não poupara esforços para festejar o seu casamento, e, como sujeito considerado, que era, conseguiu reunir uma sociedade bem escolhida. Só o Barroso não quis comparecer:
— Tinha lá a sua opinião sobre o fato e não havia quem o demovesse daí.
Os convivas, não obstante, estavam todos de acordo em que o Borges não poderia encontrar mulher mais formosa e mais simpática.
Filomena, com efeito, apesar dos dissabores, já não lembrava aquela rapariga seca e descorada de outros tempos. Toda ela se carneara: a pele, atufada pela gordura, estendeu-se numa transparência macia e provocadora: o colo abriu-se em deliciosas curvas; a garganta enformou-se completamente; os braços encheram-se; os quadris ampliaram-se; a voz acentuou-se, e os olhos amorteceram com os cruentos mistérios da puberdade.
— E que ar de inocência! Comentavam em voz baixa, a contemplá-la no seu rico vestido de chamalote branco — que candura!...
— Não! dizia o Borges, que estava perto. — Não! nisso não tenho que invejar ninguém! — fui feliz!...
E esfregando as mãos:
— Fui muito feliz! A respeito de gênio, não há outra: dócil, meiga, modesta, incapaz de uma exigência, de uma recriminação! Nunca lhe vi o narizinho torcido, nunca lhe ouvi uma palavra mais áspera, um arremesso, uma impertinência! Sempre aquele mesmo sorriso de bondade, aquele mesmo arzinho de santa! É um anjo! É uma pomba de doçura a minha filoca! a minha rica filoquinha!
E o Borges, sem poder conter os ímpetos da felicidade, andava de um lado para outro, a contar os segundos, dando repetidas palmadinhas na barriga.
A casa tinha dois andares. Estava combinado que, à meia-noite, os noivos fugiriam para o de cima, enquanto no primeiro a festa continuaria, até entrar pela madrugada. Mas os ponteiros do relógio se reuniram nas doze horas, o Borges, impaciente, aproximou-se da esposa e, com a voz trêmula, o olhar suplicante e o hálito em brasa, disse-lhe ao ouvido:
— Podemos fugir... são horas... não acha?!
Ela ergueu os olhos e sorriu; depois levantou-se, deu-lhe o braço, e ambos desapareceram pelos fundos da sala de jantar. A madrinha já estava à espera da noiva, para a cerimônia do despojamento das roupas.
Mas o Borges, quando atravessava a sala contígua à alcova nupcial, ficou muito surpreendido com a mudança brusca, que acabava de se operar na desposada. O tal arzinho de santa fora substituído por uma expressão dura de má vontade. E a surpresa de João Touro aumentou ainda na ocasião em que, tentando segurar Filomena pela cintura para dar-lhe o primeiro beijo, ouviu-lhe dizer com um repelão enérgico: — Deixe-se disso, homem!
E ainda aumentou quando, depois que a madrinha a deixou só no quarto, ele — o noivo — querendo também recolher-se, levou com a porta no nariz, e ouviu ranger um ferrolho que a fechava por dentro.
— Ora esta! resmungou o Borges, sem saber que fizesse.
E bateu, a princípio devagarinho, depois mais forte, mais forte ainda. Só resolveu abandonar o posto, quando Filomena lhe gritou da cama:
— Com efeito! O senhor não tenciona acabar com isso?! Vá dormir, e deixe-se de imprudências! Se espera que eu lhe abra a porta, perde o seu tempo. Boa-noite!
— Bonito! disse o pobre noivo, cruzando os braços.