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Filomena Borges/VI

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Não obstante, o Borges ainda não se podia considerar feliz. A mulher, depois da cena da alcova, tornou-se mais esquiva; enquanto que a paixão dele, como se recebesse um novo impulso, recrudescia de um modo fantástico. Mas continuava a ser o seu amante platônico, o seu namorado, disputando um sorriso, um olhar de ternura, à custa de enormes sacrifícios.

Durante os dias que precederam à viagem, o mísero não fez outra coisa além de procurar meios engenhosos de seduzir a esposa. Certo de que a violência não produzia bons resultados, tentou captá-la com presentes de grande valor; punha, a todo o momento, à disposição dela, jóias caríssimas, cortes de seda do que havia de melhor. Depois, desiludido também por esse lado, lançou mão de outros recursos — Tentou fasciná-la com a grandeza, falou-lhe em belas posições sociais, falou no seu título, que não devia demorar muito; mas, ainda assim, nada conseguiu: o maldito ferrolho estava, inabalável e frio, como uma lei da natureza.

Ele, porém, em vez de sucumbir, redobrava de coragem. Procurou afinar os seus gostos pelos dela; fazia-se triste, propenso às melancolias e aos êxtases; apertava muito a roupa ao corpo para figurar mais magro: fingia-se poeta — roubava versos dos almanaques, torcendo-lhes os nomes e às vezes o sentido, versos que ele copiava pacientemente durante a madrugada e que deixava, como esquecidos, no seu escritório, sobre a pasta, molhados de pingos d’água que representavam lágrimas arrancadas do coração. Outras vezes, quando a via de bom humor, fazia-se muito estouvado, cheio de rapaziadas, risonho, alegre, com fumaças de estroinice fidalga.

— Creio que agora se decide o negócio!... pensava ele, esfregando as mãos — desta vez parece que vai.

Efetivamente, se tudo isso não conseguia logo a abolição do tal ferrolho, não deixava, entretanto, de modificar as reservas de Filomena e de faze-la mais dócil e mais chegada ao esposo. Mostrava-se agora muito agradecida às finezas que dele recebia; mostrava-se amável e prometedora; ao jantar, tocavam os pés por debaixo da mesa; tinham apertos de mão ligeiros e assustados, beijinhos furtados e longos idílios ao luar, nos bancos do jardim ou debruçados no balcão da mesma janela.

— A bordo é que eu te quero pilhar!..., dizia o Borges de si para si, mentalizando planos de ataque.

— A bordo é que serão elas!

E tratou de realizar a viagem. A casa ficaria entregue aos criados.

Dias depois, embarcavam num paquete francês, que seguia para Lisboa.

— Ora até que afinal!..., considerou ele, quando viu a mulher já instalada no beliche.

— Ora até que afinal estou livre do maldito...

E, de fato, pelo seu ar condescendente, por sua linguagem doce e pelas maneiras de tratar agora o esposo, Filomena parecia muito pouco disposta a morrer de saudades pelo ferrolho.

Mal, porém, começou a caminhar o paquete, que um terrível enjôo apoderou-se do pobre marido apaixonado e o prostrou no fundo de seu beliche, inútil e arquejante.

Filomena não lhe perdoou semelhante coisa. Enjoar!..., enjoar em sua companhia! Oh! o Borges acabava de perder todo o prestígio que ultimamente havia conquistado!

— Mas não é culpa minha!!! lembrou ele, sem ânimo para erguer a cabeça.

— Reagisse! Tivesse mais domínio sobre si! Os espíritos fortes governam a matéria! Enjoar! Oh! Shocking!

E só acalmou um pouco a sua indignação, lembrando-se de que D. Juan, de Byron, enjoara também na primeira viagem que empreendeu. Todavia, em Lisboa, foram ocupar aposentos separados no Hotel de Bragança.

Apenas se demorariam o tempo necessário para tratar do título e seguiriam logo caminho de Espanha, porque Filomena declarou que aquela cidade lhe fazia mal aos nervos.

Todo o seu ideal era a Itália; sonhava-a através das descrições que lhe depararam centenas de romances. Queria Nápoles, com o clássico Vesúvio em plena erupção, o seu golfo legendário, o seu famoso céu azul, estrelado de pombos.

Exigia Veneza. Veneza com todos os seus acessórios pitorescos — as suas serenatas em gôndola, o seu palácio dos Doges, os seus romances debaixo de velhas e melancólicas abóbadas, consagradas pelos séculos. Reclamava excursões ao Lido, às ilhas decantadas da Laguna, a S. Lázaro dos Armênios, a Murano, a Torcelo. Queria saturar-se bem da "filha gentil do Adriático"; mergulhar nas sombras azuis de seus canais, onde rebrilham de espaço a espaço as competentes lanternas dos gondoleiros; não morreria sem passar algumas horas de concentração mística e deliciosa sob a melancólica ponte dos Suspiros.

— Oh! a ponte dos Suspiros!

Depois Gênova, "cidade do mármore!", com a sua acumulação de palácios célebres, seus jardins silenciosos, suas colinas fortificadas! — Oh! a Itália, a Itália era então toda a sua ambição, todo o seu viver!

E deixam-se os dois seguir o itinerário comum das viagem à Europa. Atravessaram a Espanha a ruidosa França, percorreram a Suíça, "a livre Helvécia", como poeticamente a classificou Filomena, e, afinal, depois de uma semana de Mônaco, onde ela teve a fantasia de ver o marido perder dinheiro ao jogo, acharam-se em caminho de Nice, da qual, mediante nove horas de mar, passaram-se a Gênova.

Chegaram às oito da manhã, quando um sol esplêndido punha em relevo as magnificências da cidade de mármore. Filomena, porém. estava sequiosa de Nápoles e, como seu vaporzinho seguia para aí, mal deu um passeio em terra, tornou a embarcar com o esposo.

— Oh! Nápoles! Nápoles dizia ela, entusiasmada, ao chegar à famosa cidade. Como desejava eu viver e morrer sob o teu sol dourado, passando os dias e as noites a contemplar o teu céu azul, o teu golfo da cor do teu céu!... E ter perto de mim, ao alcance de meus olhos, Capri, Ischia e o Vesúvio, e essa extensa costa, que vai de Portici a Castellamari e aos belos penhascos de Sorrento! Ó Nápoles!

O Borges escutava essas e outras declamações com um profundo silêncio de respeito.

— Sim senhor! Não fazia a mulher tão entendida em geografia!..., pensava ele, ensoberbecendo-se.

Não obstante, a romântica senhora sofreu uma triste decepção ao saltar na desejada cidade. Não era o seu Nápoles que tinha defronte dos olhos; não o reconhecia; faltava-lhe fosse o que fosse — um certo pitoresco, um certo encanto, que ela, por mais que procurasse, não encontrava ali.

— Não! decididamente não era aquele o Nápoles de seus sonhos! O que ela via defronte de si era uma população maltrapilha e desordeira, que a acotovelava grosseiramente, obrigando-a a segurar-se ao braço do marido, o qual, por mais de uma vez, esteve a cair com os encontrões que recebia de todos os lados.

— Safa! gritou o Borges, tonto. — Assim nem a praia do Peixe!

Sobre o cais e nas longas ruas, agitadas, que vão a Chiaja, a Santa Luzia, à rua de Toledo, ao Forte de Sant’Elmo o mesmo formigar, o mesmo burburinho impertinente e grosseiro.

E que confusão de pescadores, camponeses, frades, mercadores, garotos nus e lazarones de todos os feitios e de todas as cores.

— Isto parece uma cidade de doidos! observou Filomena ao marido — isto nunca foi Nápoles.

E aquela multidão irrequieta parecia justamente um bando enorme de doidos, que iam e vinham em vertigens, empurrando-se uns aos outros, metendo-se pelas pernas dos estrangeiros, invadindo-lhes a bolsa e as algibeiras com olhares de ganância, e, às vezes, com os dedos. Vendedores d’água, de frutas e de peixe, passavam a gritar como perdidos; burros carregados de legumes seguiam a trote, chocalhando guizos barulhentos; transeuntes de todos os matizes sociais, conversavam e gesticulavam agitadamente, E carruagens a galope cortavam as ruas, em várias direções, num estardalhaço febril de matracas, ferragens e campainhas. E tudo, até as casas, as árvores e as pedras da rua, parecia gritar, mover-se, espolinhar-se num frenesi estrepitoso, sem tréguas.

Filomena declarou que estava roubada!

— Qual! Pois aquilo era lá um Nápoles! Impossível! Bem longe estava de ser o Nápoles que ela queria — o seu rico Nápoles! — Aquele era um Nápoles de segunda mão! Um Nápoles pulha! Antes não tivesse lá ido! Mil vezes antes!

Que lhe mostrassem as belas cenas napolitanas, que ela vira em pequena nas litografias coloridas! Que lhe apontassem os bem conhecidos e muitos pitorescos pescadores napolitanos, com as suas calezoni, a perna nua, a facha e o gorro vermelho, e o amuleto ao pescoço.

A excursão ao Vesúvio, como um passeio que fez à Torre dei Greco, impressionou-a mediocremente, No Vesúvio não viu erupção de espécie alguma; não percebeu vestígios de salteadores. — A Calábria desacreditou-se para ela. Nada encontrou de tudo aquilo que reclamava a sua terrível sede de comoções.

— Experimenta a tal Pompéia! aconselhou o marido, incomodado por vê-la ccntrariada. Pode ser que te dês bem... E lembrou também Herculanum — de cujo nome não se recordava.

— Qual Pompéia, nem qual histórias! respondeu a mulher, furiosa contra os seus poetas e romancistas. Canalhas! Súcia de empulhadores!

E, muito indignada, abandonou Nápoles, para tomar a direção de Veneza, à qual sua imaginação insistia em agarrar-se como a um recurso extremo.

Mas a bela filha do Adriático, a pátria do amor e do arrepio, a sede da comoção e da poesia, a cidade dos palácios de abóbadas mouriscas, a terra, enfim, das patrícias apaixonadas, também não correspondeu à expectativa de Filomena.

Lá estava a ponte triangular do Rialto; o cais dos Escravos; as cúpulas de S. Marcos; os indispensáveis pombos; as ramalheteiras, que vendem flores aos estrangeiros; os oficiosos cicerones; os gondoleiros, encapotados como monges, que passeiam tristemente por baixo das pontes; lá estava tudo isso de que constavam as notas de Filomena, mas, valha-me Deus! — nada a satisfazia, nada a saciava, nada correspondia ao que ela julgara encontrar, nada realizava o que antevera nos seus sonhos cheios de impaciência e de sobressalto.

Passearam em carruagem de Burgano a Leco, sobre as margens do lago de Como; foram depois a Menaggio, na margem oposta, e daí partiram resolutamente para a calma Suíça, fartos de Itália, cujos nomes de grandes e pequenas cidades, aqueles mesmos que dantes arrebatavam Filomena e lhe punham no espírito uma nostalgia doce e melancólica, já nem ao menos tinham para ela a mesma sonoridade de então. Livurnia, Civita-Vechia, Chija, Bellinzona, lschia, Gaeta, nada, nada possuía já o primitivo encanto!

E um grande vácuo abriu-se nas suas aspirações; um de seus sonhos acabava de esfacelar-se como uma nuvem dissolvida pelo vento. E Filomena, desde que se convenceu de que, se quisesse a comoção e a aventura, tinha de prepará-las por suas próprias mãos, caiu num estado sombrio de atonia e desânimo.

O Borges, sobressaltado com essas tristezas, procurava cercá-la de mil cuidados, fazia-se meigo, muito seu camarada, seu amigo, adivinhando-lhe as vontades, correndo ao encontro de seus caprichos.

— Que tens tu, meu anjo, minha vida? Fala! Conta-me tudo.

Ela em vez de responder, atirava-se-lhe nos braços e escondia entre soluços o rosto no peito dele.