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Filomena Borges/XII

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Por esse tempo a festa do Borges atingia o seu apogeu.

Chegava ao momento do completo delírio, do prazer sem bordas que embala e arrebata os sentidos, como um vasto oceano de delícias, sem horizontes. Chegava ao ponto em que a gente perde a noção justa das coisas e cai num doce modorrar voluptuoso e alheado; quando tudo o que nos cerca vai-se confundindo, dissolvendo, perdendo os contornos num esbatimento de sonho; quando todos os hálitos se misturam no ar; quando os perfumes das mulheres, os gemidos das rabecas, e todas as cintilações da carne, e todas as rebrilhações dos diamantes se fundem e confundem numa atmosfera opalina, que nos penetra até os mais íntimos refolhos da alma.

Mas, no meio de tanta delícia, Filomena recebeu em pleno coração um abalo que ela estava longe de prever.

Este abalo foi causado por uma carta caída do cinto do marido. Filomena apanhou-a, refugiou-se no quarto, abriu-a e leu-a.

Era dirigida por aquela célebre viúva rica, a Chiquinha Perdigão, a mulher de firma comercial, a mesma que em algum tempo tentara seduzir o Borges e que, afinal, a julgar pelo sentido do que vinha escrito, conseguira pouco mais ou menos os seus desígnios.

Eis o que dizia ela, à tinta encarnada, numa pequena folha de papel de seda, rescendente a couro da Rússia:

"Querido barão.

Em data de ontem, recebi a sua amável cartinha e tenho o mais vivo prazer em cumprir com o que ela me determina.

Não sei o que vou ouvir de seus lábios, mas adivinha-me o coração que não será nada de mau.

Durante a sexta quadrilha estarei à sua espera no caramanchão que fica ao fundo da avenida de bambus.

A essa hora ninguém se lembrará de lá ir, e poderemos então conversar à vontade, sem que D. Filomena venha a suspeitar de nossa entrevista.

Por mais cautela levarei um dominó escuro, que previamente ficará depositado no gabinete das senhoras, e acho que o barão deve também se disfarçar com outro dominó.

Por conseguinte, não se comprometa com pessoa alguma para a sexta quadrilha e, à hora marcada, esteja no ponto, sem falta.

Aquela que o estima e sempre o estimou,

C. Perdigão."

— Miseráveis! exclamou Filomena, amarrotando a carta. — Miseráveis!

E, depois que o seu pensamento percorreu num vôo toda a órbita do fato que ali estava provado naquele pedaço de papel, sentiu uma grande indignação pelo marido.

— Trair-me! Trair-me o infame! E logo com quem?... Com a Chiquinha! ... uma mulher que pinta os cabelos e usa enchimentos de algodão! Oh! É indigno!

E, sem se poder dominar, deixou-se possuir de um desespero sombrio, de uma aflitiva sede de vingança; mas, caiu logo em si, e circunvagou olhares sobressaltados, como se receasse ser apanhada na intimidade daquele sofrimento.

Desconheceu-se.

— Pois que... teria ela ciúmes do marido?... Seria crível que ela — Filomela Borges! — amasse aquele homem, aquele impostor?! Oh! não! não era possível!

Ergueu-se da otomana, em que se havia prostrado, e pôs-se a passear pelo quarto, rindo nervosamente, a afetar que não ligava "a menor importância àqueles amores ridículos do marido"

— Que amasse! que amasse à vontade a quem melhor entendesse! que diabo tinha ela com isso?!...

E, sentindo um novelo enrodilhar-se-lhe na garganta, foi à janela e abriu-a bruscamente de par em par.

Sua fantasia fugiu logo noite fora, como ave ominosa e amiga das trevas e do silêncio. E ela ficou, ficou a olhar, a olhar para o espaço, como se acompanhasse com a vista o doido remigiar do pássaro fantástico e agoureiro.

A noite era calma e de uma transparência azul. Sentiam-se no ar emanações balsâmicas que se despediam do jardim, onde ainda bruxuleavam tristemente os últimos balõezinhos venezianos; ao passo que das salas do primeiro andar, em um tom cansado e arquejante, subiam de rastros longos gemidos de outras valsas alemãs.

Filomena apoiou os cotovelos no balcão da janela, cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a chorar.

Nisto, a lua, afastando a cortina de nuvens que a velava, entornou da concha de prata a sua luz tranqüila e misteriosa, que é, como um doce orvalho, refrigerante para os corações abrasados na febre do amor.

Então uma infinidade de considerações veio grupar-se no espírito magoado de Filomena Borges.

Agora, que pela primeira vez o esposo lhe aparecia capaz de esquecê-la por outra, é que ela o desejava e queria como nunca. As palavras da viúva enchiam-na toda de um amor inesperado e punham-lhe no espírito o sobressalto de quem dá de repente pela falta de um objeto precioso que trazia consigo; enquanto a pontinha sorrateira de um nascente remorso aproveitava a perturbação em que ela estava para ir desfibrando, um por um, todos os véus que escondiam as qualidades simpáticas do marido.

E o vulto do Borges, à proporção que se descobria aos olhos da mulher, ia crescendo, crescendo, e tomando dimensões extraordinárias.

— Filomena já o via generoso, bom, intrépido e apaixonado. — Sim!... murmurou ela, como se despertasse de um longo entorpecimento. — Sim!...

Ele era digno de muito mais amor! É um homem completo, um coração enorme, um caráter sublime! Eu, só eu, fui a culpada de o haver perdido: nunca o apreciei devidamente! nunca lhe paguei em amor bastante tudo que a sua dedicação punha aos meus pés! Imprudente que fui!... Mas ele?! ... Ele! como pôde esquecer-se de mim por aquela mulher detestável?! Oh! Eu detesto-o! Eu abomino-o!

E, escondendo de novo o rosto, abriu de novo a chorar.

Estava agora mais formosa na sua fantasia espanhola: toda vergada sobre o balcão da janela, os quadris empinados, suspendendo um pouco mais a saia de seda amarela, guarnecida de rendas pretas; as pernas cruzadas, os ombros vagamente iluminados pela lua, faziam estranha harmonia naquela expressão de angústia, casada com o salero de seu tipo a Fortúnio.

Mas um beijo à queima-roupa, recebido em cheio no pescoço, fê-la soltar um grito e voltar-se rápida como uma espada em duelo.

A seu lado tremulava o irrequieto penacho vermelho do marido, cujas mãos lhe haviam já empolgado a cinta e a puxavam brandamente sobre ele.

Filomena, em vez da costumada resistência, passou-lhe os braços em volta do pescoço e começou a disparar-lhe beijos por todo o rosto, com um tal ardor e com uma tal obstinação, que o pobre homem, pouco habituado àqueles ataques, esteve a perder o fôlego.

— Upa! exclamou ele afinal, atordoado e cheio de espanto.

A mulher fitou-o por alguns segundos e, de repente, atirou-se-lhe de novo nos braços como uma descarga. O Borges, ainda desorientado com a primeira, hesitou entre a resolução de fugir ou implorar graças. Daquela forma a mulher dava-lhe cabo do canastro!... Que menina!

— Tu amas-me Borges?! interrogou ela, segurando-lhe as mãos com transporte.

— Ora, que pergunta! Pois ainda tens alguma dúvida a esse respeito?

— Não sei! Quero que respondas! Quero que digas se me amas, se és só meu!

— Oh! Tu até me ofendes com isso, filhinha! Bem sabes que sim... mas, anda daí. Há meia hora que estou à tua procura... alguns dos nossos convidados já se querem raspar. Anda, vem daí!

— Não! Espera, espera um instante! Desejo ter-te ainda algum tempo nos meus braços! Não me fujas! Vem cá!

O Borges, cada vez mais surpreso, não teve forças para resistir, e os dois, assentados no mesmo divã, abraçados como dois amantes de quinze dias, juravam e tornavam a jurar uma afeição eterna, quando, no fim de meia hora, o sinal da sexta quadrilha os foi interromper.

— Ouviste? exclamou ele, pondo-se de pé. — Vão tocar uma quadrilha; não devemos ficar aqui. A caminho!

— É a sexta, disse Filomena.

— É! é a sexta... repetiu ele.

— Pois vamos. Serás o meu par; ainda não dançaste hoje comigo...

— Impossível, balbuciou o Borges, já tenho par. Dançaremos a seguinte.

— Não quero! Quero esta!

— Mas, meu amor, se te estou dizendo que...

— Quem é o teu par?!

— É...

— A Chiquinha... Aposto!

— É exato, é justamente a Chiquinha, disse o marido enrubescendo.

— Pois vai! Vai!, respondeu a mulher repelindo-o. Eu fico.

— Ficas aqui?

— Fico.

— E os nossos convidados?...

— Que esperem.

— Acho que fazes mal; devias dançar.

— Só dançaria contigo...

— Então, até logo.

— Até já.

E ele foi-se.

A mulher, mal o viu pelas costas, correu ao guarda-roupa, abriu-o, sacou um dominó preto, enfiou-o rapidamente no corpo, pôs máscara, tomou o seu chicote de montaria, e, depois de vencer ligeira o segundo andar, ganhou as escadas do fundo e desapareceu.

Atravessou a chácara como um pássaro que foge, entrou na avenida de bambus e dirigiu-se ofegante, trêmula, para o ponto da entrevista.

A fronde compacta de árvores e o tear das trepadeiras acumulavam sombras. Filomena embrenhou-se por entre elas, só diminuiu a força da carreira nas proximidades do caramanchão.

Ao entrar sentiu dois braços prenderem-lhe o pescoço, ouviu uma voz que se queixava de medo, enquanto um corpo de mulher procurava unir-se ao dela.

Filomena recuou incontinenti, e, puxando da chibata, remeteu duas vergastadas contra o dominó que tinha defronte de si.

Este soltou um grito, menos de raiva que de dor e, arrancando a máscara, exclamou:

— Barão!

— Não é o barão, é a baronesa!, respondeu a outra, tirando também a sua máscara.

— A senhora?!

— Sim! A quem queria trair, miserável!

— É falso!

— Nem uma palavra, e some-te daqui já!

— Mas ouça-me!

— Não quero ouvir nada! Sai já de minha casa! Traidora! Põe-te já daqui para fora, se não queres ser desfeiteada lá em cima, na presença de todos os meus amigos. Rua!

A viúva soltou uma rabanada e fez menção de entrar na avenida de bambus.

— Não! disse a baronesa, cortando-lhe a passagem. Não hás de sair pela frente; passarás por onde sai a gente de tua espécie!

E levou-a aos empurrões até os fundos da chácara, onde havia um portão, que Filomena abriu, dizendo:

— Vai, e quando me vires em qualquer parte, abaixa os olhos!

— Havemos de nos encontrar! ... ameaçou a viúva, depois de atravessar a porta. Juro-te que me pagarás tudo isto!

— Rua! insistiu Filomena, fechando a porta com estrondo; e, já de volta ao caramanchão, disse entredentes:

— Agora o outro!...

Ao chegar aí, um calafrio percorreu-lhe o corpo - já lá estava o marido.

Não disfarçado de dominó, como recomendava a carta, mas com a sua camisa cor-de-rosa, as suas botas de montar e o seu penacho vermelho.

E passeava de um para outro lado, cheio de preocupação, as mãos cruzadas atrás, o capacete na nuca, o ar de quem espera no corredor que lhe abram a porta da sala.

Filomena armou a máscara no rosto, conteve o melhor que pôde a sua cólera, e avançou de braços abertos para o chicard.

Mas qual não foi a sua surpresa ao ver-se repelida brandamente por ele!

— Perdão, disse o Borges, a senhora pelo que parece, compreendeu mal o meu convite.

E oferecendo-lhe lugar num banquinho que havia perto:

— Tenha a bondade de sentar-se. Não levarei muito tempo a dizer o que me obrigou a incomodá-la. Devia ter ido procurá-la em casa, mas é que se trata de um negócio urgente, muito urgente, um verdadeiro aperto! Um aperto sério! Se amanhã não conseguir levantar vinte mil cruzeiros, estou perdido! Não me convém recorrer aos bancos por todo este ano...

E, vendo que a suposta viúva não ia ao encontro de seu pedido:

— Podemos arranjar uma hipoteca... se não lhe convém o n. 6 das Laranjeiras, vê-se outro, contanto que...

E já incomodado com o silêncio do dominó:

— Creio que a proposta é razoável... Que acha?... A senhora pode servir-me, se... Não quis falar ao Fontes, o seu sócio, sem saber de antemão se podia contar com o seu apoio.

Novo silêncio.

O Borges, já enfiado, caiu então nas minudências comerciais. Falou de letras, transações, lembrou firmas, com que ele podia contar.

Porém o silêncio continuava.

— Então?! Que diz?! Perguntou ele, muito desconcertado.

Filomena arrancou a máscara e atirou-se-lhe nos braços desfeita em soluços.

— Tu?! Que significa isto?!

Ela puxou do bolso a carta da viúva e entregou-a ao marido.

— Pois imaginaste que eu seria capaz de... oh!...

E ferido de súbito por uma idéia:

— E ela?! A viúva Perdigão, que fim levou?!

Filomena contou-lhe o que se havia passado.

Borges deixou cair a cabeça, as mãos:

— Fizeste-a bonita!... exclamou ele. — Vais ver as conseqüências!

— Que queres? Tive ciúmes! balbuciou a mulher. Dizem tanta coisa da Chiquinha, que...

— Tolinha! interrompeu o marido, abraçando-a de novo.

— E por que não me falaste com franqueza?... acrescentou ela.

— Temia afligir-te...

— Fizeste mal! Se me tivesses prevenido, nada disto sucederia!

E notando o acabrunhamento do esposo:

— Mas, enfim que há?! Creio que agora já posso saber! De que apuros falavas tu ainda há pouco?...

— Estou sobre um abismo! disse o Borges, afinal — sobre um abismo, minha querida! Se não arranjar certos negócios até o vencimento de umas letras que tenho, creio que irá tudo por água abaixo! A ruína será inevitável!

— Pois que venha a ruína! respondeu Filomena erguendo-se. Eu terei bastante coragem para afrontá-la!