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Filomena Borges/XV

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Foi o empresário da companhia, o Bela, o primeiro que se animou a voltar à sala... Mas não trazia aspecto de briga; ao contrário, aproximou-se do Borges com toda a calma, e disse-lhe em voz baixa:

— Tenho uma proposta a fazer-lhe...

— Que é?! gritou o marido de Filomena.

— Contratá-lo para a minha companhia. O senhor, com a força de que dispõe e com o seu Urso, pode fazer chicanas. Dou-lhe duzentos cruzeiros por mês. Aceita?

— Aceito, respondeu o Borges, sem vacilar. Mas com a condição de que o senhor pagará imediatamente o que devo nesta casa.

— Está dito, respondeu o italiano. É só fecharmos o contrato; isso fez-se num instante.

E o estalajadeiro, uma vez embolsado, declarou que retirava o que dissera pela manhã, e pediu que lhe perdoassem o mal que havia causado e afiançou que sua casa e os seus serviços estavam sempre às ordens de Borges.

Este tratou logo de pôr a esposa ao corrente do passo que acabava de dar.

— Magnífico! exclamou ela. Oh! magnífico! Contanto que o italiano esteja disposto a me arranjar igualmente um lugar na sua companhia.

— Hein?! Um lugar... um lugar para ti? Estás gracejando com certeza!

— Juro-te que não. E desde já te previno de que só nesse caso consentirei que cumpras o teu contrato!

— Mas, meu amor, aquilo não te pode convir..., do que iria te encarregar numa companhia de acrobatas?! É preciso ver a coisa por este lado!

— Ora! E o meu talento coreográfico, e a minha voz de contralto, a minha beleza, e o meu espírito, não valem tanto como a tua força e o teu cão?!

No dia seguinte, Filomena estava também contratada. Esperariam apenas que se restabelecesse completamente para mete-la em serviço.

— Diabo era se iam encontrar na platéia algum velho conhecido dos bons tempos! Ainda se fosse eu só!..., pensava o Borges. Mas a questão é minha mulher!

O empresário cortou essa dificuldade lembrando que Filomena, para não ser conhecida, podia muito bem se disfarçar em índia, pondo uma cabeleira e pintando-se de cabocla, e que o Borges, ainda com mais facilidade podia caracterizar-se de inglês. — Um pouco de vermelhão, um par de suíças ruivas, e aí teriam o mais legítimo e completo atleta deste mundo! Quanto ao Urso — pouco seria necessário para reduzi-lo a um urso verdadeiro.

Ficou tudo combinado.

Borges lutaria com a sua fera e com os homens que se apresentassem; faria exercícios de força, suspenderia barras de ferro, carregaria e dispararia uma peça ao ombro, jogaria enormes balas de cinco arrobas, etc... etc... Filomena dançaria vários passos difíceis e cantaria os seus tangos e as suas cançonetas.

Convinha é que ela se restabelecesse quanto antes, para poder abandonar aquela maldita estalagem e cuidar dos primeiros ensaios. Felizmente a cura foi rápida e, graças aos novos recursos, de que dispunham, Filomena, a primitiva, a formosa, a deslumbrante Filomena Borges, surgiu da cama ainda mais bela, mais petulante, como se a idéia de farandulagem que a esperava lhe fizesse ressaltar os encantos, ajuntando-lhes uma nota diabólica de desordem e de boemia.

O empresário esfregava as mãos de contente, quando a viu no dia da mudança. Ou ele muito se enganava, ou aquela mulherzinha ia fazer uma revolução no público!

Principiaram os ensaios, logo depois que saíram da estalagem. Filomena, às primeiras tentativas, revelou um tal jeito, uma tal habilidade para a sua nova profissão, que o Bela ficou deveras encantado.

Ninguém seria capaz de dançar e cantar um tango brasileiro com mais graça nem com mais originalidade.

Em corpo algum de mulher diziam tão bem as penas sensuais da tanga, as axorcas orientais e o emplumado e pitoresco cocar indígena.

— Achei a sorte grande, não há dúvida! considerava o Bela com os seus botões.

É que, além de Filomena, o Borges enchia-lhe as medidas. A luta deste com o Urso faria furor! O cão efetivamente, depois de certos arranjos no focinho, nas patas e na cauda, não deixava, nem de leve, suspeitar a sua modesta procedência.

Espalharam-se logo por todas as esquinas imensos cartazes, anunciando os "dois célebres artistas, que acabavam de chegar de Paris, contratados para o Pavilhão Chinês".

Pavilhão Chinês era o circo do Bela.

"Grande sucesso do dia! A linda Vênus Americana, o invencível Hércules Inglês e o indomável e terrível Urso Negro".

Acompanhava esses nomes um pomposo programa de espetáculo, onde vinham as mais provocadoras considerações a respeito daquelas três celebridades.

Apesar, porém, de tudo isso e das bandeiras e luminárias com que o Bela enfeitou seu pavilhão, a estréia dos novos artistas não foi muito concorrida. Mas, da segunda noite em diante, a formosura irresistível de Filomena principiou a atrair extraordinária concorrência.

Não tardou a rebentar em toda a cidade um entusiasmo apoplético por aquela Vênus cor de amêndoa, que parecia ter furtado às serpentes do Brasil o segredo de suas curvas sensuais, quando ao som dos lundus e das habaneras, quebrava e retorcia o corpo, como numa agonia de amor.

A Faculdade de Direito em peso não abandonou mais as galerias do Pavilhão Chinês: os jornais acadêmicos apareceram repletos de artigos, crônicas, versos, o diabo! a respeito de Filomena. E o povo, o grosso povo, acudia de todos os lados, a um cruzeiro por cabeça.

Ah! mas Filomena tinha um corpo admirável e excepcionalmente correto. Ela não punha espartilhos e, com uma simples camisa de meia cosida à pele, principiava a sapatear, a torcer-se toda aos gemidos das habaneras, fazendo e desfazendo as curvas magnéticas dos rins, expondo corajosamente a pureza grega de sua cintura elástica e vibrante, como se a alma de uma danseuse da Grande Ópera tivesse tido a fantasia de encarnar-se num dos velhos mármores do Partenão.

Era um delírio, quando a banda de música rompia o tango, e Filomena, vestida de índia, saltava ao meio do circo, a jogar o corpo para a direita e para a esquerda, ora num pé, ora no outro, os braços no ar, a cabeça bamba, a boca a sorrir, os olhos a requebrarem-se.

— Bravo! Bravo a Vênus! Quebra! gritavam de todos os cantos.

E choviam flores. E os chapéus, os lenços e as bengalas juncavam o tapete que ela pisava.

Por outro lado, o Hércules inglês ia conquistando as simpatias do público. A sua melhor sorte era a que ele executava com o bom Urso: "a vida pelo combate ou a luta terrível do homem com a fera", segundo diziam os anúncios.

Consistia no seguinte:

Seis homens arrastavam para o meio do circo uma enorme gaiola de grossos varões de ferro, pousada sobre quatro rodas, na qual vinha o pobre animal, arvorado em fera e preparado de modo a iludir os mais espertos.

Logo depois, com as suas suíças ruivas, as suas faces cor de sangue, aparecia o Borges, vestido de guerreiro romano, cheio de escamas e cintilante de lantejoulas: na cabeça um grande capacete de folha-de-flandres e na mão uma pequena vara de ponta encarnada.

A terrível fera, ao ver surgir o domador, começava a agitar-se, a espolinhar-se como sequiosa de sangue.

Ouviam-se então por todo o circo uns rugidos medonhos e atroadores, que o Bela, escondido debaixo da gaiola, soltava com o auxílio de uma trombeta de sua invenção.

Todos emudeciam. E, entre o resfolegar ansiado do público, caminhava o domador a passos firmes para a jaula. Abria a portinhola, entrava, e de carreira ia lançar-se ao monstro, que se erguia logo nas pernas de trás e roncava com mais força.

Principiava a luta.

Por vezes caía o homem, quase vencido, mas de pronto se levantava e de novo investia contra o formidável adversário, até conseguir domá-lo, segurando-lhe o pescoço com uma das mãos e paralisando-lhe com os pés o movimento das pernas.

Nisto, de todas as curvas da barraca, rompiam os aplausos. E, dentre a enorme gritaria, só se destacava uma palavra, que era repetida por mil bocas:

— Basta! — Basta! — Basta!

E o Hércules, inalterável e frio como se tivesse plena consciência de seu valor, saía da jaula, fechava bem a cancela, cumprimentava o público e recolhia-se modestamente ao interior do circo.

Quando por ventura aparecia alguém que quisesse lutar, ele nunca se negava; e, quando não aparecia, era o Bela que desfrutava essa honra, deixando-se vencer no fim de um quarto de hora, e retirando-se depois para os fundos do barracão debaixo de uma tremenda vaia do público.

O fato é que, dentro de pouco tempo, o empresário levantou a cabeça, graças aos seus novos artistas, que eram já considerados os primeiros da troupe. Mas, se quis conservá-los, e conseguir que eles o acompanhassem numa excursão pelas outras províncias, teve que lhes dobrar o ordenado, oferecer-lhes depois novas vantagens, e, afinal, associá-los à empresa,

Borges e a mulher faziam progressos admiráveis. Depois de percorrerem Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão, Pará e Amazonas, achavam-se possuidores de alguns mil cruzeiros e podiam, como desejava o marido, abandonar a vida de saltimbancos e abraçar uma carreira menos repugnante.

Mas, no coração romanesco e aventureiro de Filomena, o prazer do aplauso, o gozo da nomeada, encontraram terreno propício e haviam já cravado bem fundo as suas raízes.

Entretanto, a vaidade de artista festejada pedia-lhe horizontes mais largos e conquistas mais nobres. Agora toda sua ambição era ligar o seu verdadeiro nome, o seu nome de batismo, às glórias que conquistava em público.

Não hesitou em separar-se do Bela, contratar por sua conta novos artistas, formar um novo plano de trabalho e, com o seu vasto repertório de lundus, tangos e modinhas brasileiras, que ela colecionara pelas províncias, e, com as suas vestimentas indígenas, que trouxera do Amazonas, levantou o ferro para as repúblicas vizinhas.

Malgrado os conselhos do Borges, que ardia por um momento de descanso, percorreu-as da Patagônia à Venezuela. Seguiu depois para a América do Norte, onde, durante um ano, ganhou rios de dinheiro e por fim, aguilhoada pela idéia de aparecer na Europa, despediu todo o pessoal e, apenas acompanhada pelo marido e pelo Urso, levantou a proa sobre Paris.