Filomena Borges/XXIII
Borges não descansou mais um instante, sem ter arranjado o necessário para abandonar a cidade.
Obteve uma casa em Paquetá; comprou tudo que lhe pareceu mais ao gosto da mulher, pois que ela se obstinava a guardar silêncio e não se pronunciava por coisa alguma, como se tudo lhe fosse indiferente.
— Faze o que entenderes..., respondia ela, sem abrir os olhos. Quanto fizeres será bem feito. Tudo me agradará...
— Mas não fiques desse modo!... pedia o esposo afagando-a.
Ela sorria tristemente e não dava mais palavra.
Partiram na manhã seguinte para Paquetá.
Havia um belo sol. Toda a natureza palpitava às carícias da luz; um panorama radiante desenrolava-se em torno da poltrona, onde Filomena se sumia entre grandes almofadas.
Os horizontes iam fugindo e azulando; as águas da baía estendiam-se a perder de vista, refletindo nas suas lâminas de prata as pequenas ilhas verdejantes que surgiam de todos os lados. E a serra dos Órgãos aparecia ao longe, apunhalando o céu com as suas pontas cor de aço, enquanto as nebulosas cordilheiras derramavam-se-lhe aos pés, formando grupos de nuvens paralisadas.
Filomena, entretanto, parecia indiferente a esses mesmos esplendores que dantes a arrebatavam.
Embalde o marido fazia por chamá-la às antigas impressões; embalde procurava despertar-lhe na alma o extinto entusiasmo: — Filomena, muito abatida, os olhos mortos, as mãos esquecidas sobre o regaço, deixava-se ficar no seu entorpecimento doentio.
Já não era a mesma Filomena de dois meses atrás. Seu sorriso agora era triste e cansado; sua cabecinha redonda e outrora esperta como a cabeça de uma rola, caía-lhe sobre o peito em uma prostração de luto e viuvez.
O resto da viagem correu fúnebre.
Ao chegarem a casa, Filomena não se mostrou interessada por coisa alguma; entrava ali como se entrasse para um hospital; a criada que encontrou às suas ordens, pareceu-lhe uma irmã de caridade. Em vão o marido pedia a sua opinião sobre o que tinha preparado para recebe-la ou sobre a beleza natural do lugar, a esplêndida vista que se desfrutava deste ou daquele ponto.
Filomena sacudia os ombros, sem uma palavra; Urso em vão lhe farejava os pés, à espera de uma carícia.
Veio o almoço, Borges, para chamar a mulher, ao bom humor, lembrava tudo que lhe parecia ter graça: e inventava anedotas, recorria a todos os meios para distraí-la, fazendo-se pilhérico, fingindo-se alegre, procurando reconstruir as mesmas fisionomias, os mesmos movimentos ridículos, com os quais ele, antes, sem querer, fazia-a rebentar de riso. — Engasgava-se com o vinho, tossia, fingia-se parvo, imbecilizava-se propositadamente.
Mas tudo era baldado. E o infeliz sentindo acudirem-lhe as lágrimas, fugia, abafando os soluços com as mãos, para que a mulher os não percebesse.
E no entanto, a melancolia de Filomena avultava de instante a instante, como uma nuvem que se espalha no céu. E tudo se foi tornando sombrio, carregado, trevoso, até que a última réstea de azul desapareceu totalmente.
Então a enferma deixou-se ficar de cama, sem querer ouvir falar de coisa alguma desta vida, nem querer suportar outra companhia que não fosse a do marido.
Ele, só andava na ponta dos pés, só falando em segredo, tresnoitado, aflito, como louco, servindo a um tempo de enfermeiro e de criado. Não queria que ninguém se aproximasse do quarto da mulher, com receio de incomoda-la. Ela não podia ouvir a menor bulha; o mais leve som de passos eqüivalia a marteladas na cabeça.
E o Borges, em meias, com pisadas de ladrão, o ar sobressaltado, não ficava quieto num lugar, andava por toda a casa, evitando o que pudesse contrariar a doente. E quando se punha ao lado dela, seguia-lhe os movimentos da pálida fisionomia, como um cão ao lado do senhor, pronto a lançar-se de carreira para a direita ou para a esquerda, conforme o decrete o olhar do dono.
— Ó minha Filomena! minha querida companheira, dizia-lhe em segredo, sem poder distrair as lágrimas que lhe transbordavam dos olhos. — Que tens?... que sentes... Que te falta? Dize! fala, minha vida! Pode ser que isso te faça bem!... Desabafa, ordena — eu sou o teu escravo, estou aqui para te obedecer! Vamos, por quem és! dize o que queres!
Filomena desviou o rosto vagarosamente, pedindo ao marido, com um gesto, que se afastasse, e dois grossos fios luminosos principiaram a lhe correr pela nublada palidez do rosto. Depois, no fim de alguns minutos, como se ganhasse alívio com aquele choro, fechou os olhos e adormeceu tranqüilamente.
Borges, encostado à porta do quarto, vigiou todo esse sono, que durou mais de cinco horas.
Só se animou a entrar, quando a sentiu novamente acordada.
Eram seis da tarde: de uma tarde melancólica de julho. Ouvia-se grunhir lá fora, o vento nos flabelados ramos das palmeiras, e o mar estrebuchava em soluços pela extensão da costa.
No aposento da enferma crescia o silêncio escuro das igrejas. Tudo era triste e concentrado; ao longe, vozes de crianças rezavam em coro a Ave-Maria.
Borges parou defronte do leito da mulher.
Viu-a toda branca, destacando-se do claro-escuro dos lençóis, como uma figura de cera. Mas a fisionomia dela repousava numa expressão de inefável doçura.
Aproximou-se lentamente, sonâmbulo, e foi ajoelhar-se aos pés daquela imagem adorada; tomou-lhe uma das mãos, que pendia fora da cama.
— Meu amigo, disse Filomena com dificuldade, derramando sobre o marido um suplicante olhar de extrema ternura, como se lhe quisesse pedir perdão. — Meu bom amigo, sinto que morro, e só me punge a idéia do bem que te não fiz e do muito que merecias!
— Ó minha querida! não penses nessas coisas! ... Espalha essas idéias de morte!
Filomena meneou a cabeça.
— Não, não! disse-lhe o marido, tomando-a nos braços. — Tu não morrerás! Havemos de viver ainda muito! — felizes! — eternamente unidos como dois pombos! Eu continuarei a ser o teu escravo, o teu amante, o teu fiel companheiro; tudo aquilo que entenderes! Voltarei alegre para onde quiseres! Tornaremos à agitação da corte, à febre das paixões; principiarei de novo a minha vida! Saltimbanco, touriste, superintendente, jornalista, homem célebre, serei tudo de novo, contanto que tu vivas, meu amor, minha felicidade! Contanto que não te deixes assassinar por essa tristeza, que te abafa, a existência, ó minha vida! ó minha doce esposa!
E o Borges, tomado de um desespero febril, estorcia-se ao lado da cama, desfazendo-se em lágrimas.
— Obrigada! muito obrigada, meu generoso e honrado amigo! De tal modo te habituaste às minhas quimeras e à minha loucura, que não podes acreditar que eu tenha um momento lúcido antes de morrer.
— Não! não! não penses em morrer, minha querida!
Filomena, em resposta passou os braços em volta do pescoço do marido e repousou a cabeça no colo dele.
— Só tu és bom! ... dizia arquejando — só tu mereces todas as bênçãos do céu!... Como eu te adoro e como eu te amo, meu...
Não pôde acabar. E, depois de uma breve aflição, retesou as pernas e os braços, exalando, num estremecimento geral, o último suspiro.
— Filomena! Filomena! bradou o esposo, sem a largar das mãos, mas afastando-a rapidamente a toda a distância dos braços e encarando-a desvairado e sôfrego: — Fala, fala! Dize por amor de Deus que não estás morta!
Ela, porém, em vez de responder, deixou pender cabeça para um dos lados e, assim, ficou na sua imobilidade de cadáver.
Borges ainda a encarou em silêncio arquejante. Depois, sacudiu-a toda, com impaciência; chegou repetidas vezes ao seu rosto esfogueado o lábio frio da morta, para ver se lhe descobria um último sopro de vida. E, afinal, soltando um bramido formidável, repeliu-a de súbito e atirou-se ao chão, a espolinhar-se, a rolar por todo o quarto, entre gargalhadas de louco.
Entretanto, lá fora continuava o surdo marulhar das vagas; zumbia ainda o vento nos palmares; e as crianças, no seu coro de arcanjos, pediam à Virgem Santíssima que as amparasse neste vale de lágrimas.
Dias depois, no modesto cemitério de Paquetá, à sombra de um velho cajueiro, via-se uma pobre sepultura, em cuja lápide dois nomes se entrelaçavam com o mesmo apelido. E defronte, estático e silencioso, como uma esfinge de mármore negro, um enorme cão velho e trôpego, fitava-a, deitado sobre a relva.