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Galeria dos Brasileiros Ilustres/Barão de Iguaraçu

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Se um grande saber junto a uma probidade irrepreensível, se o amor da pátria e a dedicação ao soberano, se enfim a reunião geralmente reconhecida de um belo caráter e de uma urbanidade toda particular merecem uma lembrança histórica, ninguém tinha mais direito do que o Conselheiro Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto de figurar na galeria dos homens ilustres do Brasil.

Lisonjeio-me, pois, eu que fui seu amigo, de ter a honra de referir esta vida toda de abnegação e de trabalho, inteiramente dedicada ao alívio das misérias da humanidade.

O Dr. Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto nasceu em Pernambuco no dia 14 de agosto de 1790, filho legítimo de Luís Ribeiro Peixoto dos Guimarães e de D. Josefa Maria da Conceição Peixoto. Depois de ter feito suas humanidades na sua cidade natal, entregou-se ao estudo da medicina e da cirurgia, não somente sob a direção de seu pai, mas ainda seguindo os cursos de cirurgia nos hospitais.

No ano de 1810, desejando adquirir uma instrução mais completa, veio para o Rio de Janeiro, onde, depois de se ter matriculado na escola cirúrgica desta corte, entrou como aluno interno no extinto hospital militar; apenas tinha concluído o curso de anatomia e fisiologia, foi encarregado (sem ordenado nem gratificação) da instrução médico-cirúrgica dos pensionistas que por ordem do Senhor D. João VI foram mandados vir da costa da África, e a estes explicou um curso completo de anatomia e fisiologia.

Em 12 de maio de 1812 teve carta de cirurgião na conformidade da lei; e em 1813 foi nomeado 2º cirurgião do sobredito hospital, continuando no ensino dos sobreditos pensionistas.

Impelido pelo desejo de aumentar sua instrução, conseguiu, na qualidade de 1º cirurgião, dirigir-se a Coimbra, passando a Lisboa na nau Medusa em 1815. A consideração pública, de que se viu então investido, con-solou-o um pouco de não ter efetuado a sua viagem à Europa.

Em 1817 foi nomeado cirurgião da casa real, em 1820 cirurgião da real câmara. Estas duas últimas distinções lhe foram tanto mais caras, que foram devidas ao favor do Senhor D. Pedro I, então príncipe real.

Foi a partir desta época que a proteção deste príncipe magnânimo imprimiu no coração do Dr. Peixoto sentimentos de gratidão e de veneração, aos quais conservou-se fiel toda sua vida, como teve muitas ocasiões de o provar.

Um incidente de que foi vítima o príncipe real teve uma grande influência na carreira do Dr. Peixoto. S. A. real, ao chegar à tribuna da capela por ocasião de uma festividade, se feriu no lado esquerdo da testa, com um varal de ferro que sobre ele caiu casualmente, fazendo um talho e interessando toda a espessura da pele, no comprimento de uma polegada. Chamado para socorrê-lo, o Dr. Peixoto preveniu as conseqüências, ordinariamente tão graves, em uma parte tão melindrosa, e obteve uma cicatriz regular, sem deformidade.

Depois desta época foi encarregado de tratar a família real, assim como S. M. a Imperatriz, cada vez que o não podia fazer o barão de Goiana. Estas relações tornaram-se de mais a mais estreitas e freqüentes, e quando morreu o dito barão, foi ele quem lhe sucedeu em todos os seus cargos.

Em 1821 foi condecorado com o hábito de Cristo, e agraciado com o foro de cavalheiro e fidalgo.

Um notável acontecimento ocorreu em 4 de fevereiro de 1822, o falecimento do Príncipe de Beira, o senhor D. João Carlos. Pelos movimentos políticos de então, achando-se S. M. a Imperatriz grávida, julgou o Imperador acertado remover a família para a Fazenda de Santa Cruz, donde em poucos dias voltou com o príncipe gravemente doente de febre nervosa com convulsões, às quais sucumbiu na idade de 10 meses e 8 dias. O Dr. Peixoto recebeu a honrosa missão de o embalsamar.

No mesmo ano no dia 11 de março teve lugar o feliz nascimento da princesa imperial; e posto que o barão de Goiana tivesse sido encarregado de a receber, o seu mau estado de saúde obrigou S. M. o Imperador a convidar o Dr. Peixoto para o parto; alta prova de sua estima e confiança para com ele, confiança que nunca desmentiu, como se pode ver nas instruções por escrito que deixou ao Dr. Peixoto, relativamente a seus augustos filhos, quando deixou o Brasil.

Em julho de 1823, vindo pela chácara da Joana, deu o Imperador uma grande queda de cavalo, com fratura de duas costelas; o Dr. Peixoto o tratou por espaço de um mês pouco mais, cabendo-lhe igual honra na ocasião em que Sua Majestade se feriu no pé com a própria espada, quando em exercício de tropa no Campo de São Cristóvão.

Em agosto de 1824 nasceu felizmente a princesa a senhora D. Francisca, e o Dr. Peixoto teve a distinta honra de a receber, sendo remunerado com a mercê de foro de fidalgo cavalheiro.

No mesmo ano foi nomeado cirurgião-mor do Império, e em 23 de fevereiro de 1825 recebeu o título de conselho.

A 2 de dezembro de 1825 nasceu S. M. o Imperador, hoje reinante; ao Dr. Peixoto coube a muito prezada honra de o aceitar em suas mãos, e S. M. o Imperador em seu júbilo de ter um herdeiro varão não julgou poder dar-lhe maior prova de satisfação, do que abraçá-lo em público; e para tornar esta homenagem mais honrosa, quis que a Imperatriz lhe concedesse o mesmo favor, sendo então agraciado com a comenda da Ordem de Cristo.

No ano de 1826, ele acompanhou SS. MM. II. na viagem que fizeram à Bahia.

O dia 11 de dezembro do mesmo ano foi fatal pela morte de S. M. a Imperatriz: a profunda aflição que esta perda tão inesperada causou ao Dr. Peixoto reacendeu em seu coração o antigo projeto de ir formar-se na Europa. Dirigiu pois ao Imperador a sua petição, e obteve a graça da licença, e endurecendo o seu coração sobre os laços de sua família, partiu com destino a Paris, em 16 de setembro de 1827.

Conhecendo a pureza de suas intenções, dignou-se S. M. o Imperador ajudar os seus esforços com a sua proteção, dando-lhe a pensão de 600$000 réis anuais até concluir a sua formatura, com os vencimentos de todos os seus empregos. Enfim os seus votos estavam cumpridos, habitava Paris, centro de todas as ciências e de todas as ilustrações.

Freqüentava as escolas com a maior assiduidade, notava-se a sua cabeça branca em todos os cursos, assim como em todas as clínicas; os professores não contentes de acolher à porfia, o designavam à mocidade estudiosa como um modelo a seguir.

Freqüentava também os salões dos mais célebres professores, e foi num dos saraus do ilustre Cuvier que tive a honra de o conhecer.

Chamado a Paris por um augusto sufrágio, eu esperava que a alta posição que eu ia ocupar deixasse tempo de me entregar aos grandes estudos que me impunha a futura publicação da biblioteca-cirúrgica-poliglota; mas assim como o Dr. Peixoto, eu não tinha contado com as revoluções.

De há muito recebia ele desfavoráveis notícias do Brasil, cujo horizonte político se cobria de nuvens. Já lhe tinham tirado a pensão que devia à munificência do Imperador, assim como o lugar de cirur-gião-mor do Império e os ordenados correspondentes.

O Imperador sempre grande, sempre grato, deu de seu bolsinho a pensão de 800$000 que lhe foi regularmente paga, até que se formou. Durante a sua residência em Paris, recebeu o oficialato da Ordem da Rosa, como prova de sua dedicação e dos seus serviços. S. Exª o Sr. marquês de Resende, plenipotenciário encarregado de receber a rainha de Portugal, o induziu a ir esperá-la em Gênova, onde devia arribar; esta viagem foi inútil, por ter S. M. aportado à Inglaterra; foi contudo útil à ciência: durante a sua assistência em Gênova, o conselheiro Peixoto teve numerosas conferências com o conselho superior de saúde sardo, sobre as questões das quarentenas.

O conselheiro Peixoto apresentou uma tese que fez sensação; tratava de medicamentos pouco conhecidos, ou ignorados na Europa; o Dr. Alibert fez-lhe elogios que muito o deviam lisonjear; mas o que foi para ele um prêmio muito mais elevado foi a viva e sincera amizade que lhe tinham os Drs. Dubois, pai e filho, A. Richard, os dois Cloquet, e sobretudo Orfila, de quem era muitas vezes comensal.

O Dr. Lisfranc o tratava com uma cordialidade rara, de que lhe deu provas públicas.

Deixou Paris, levando consigo a amizade e a estima de todos que o conheceram. Por mim nunca esquecerei seu belo proceder, nem suas vivas instâncias para que eu o acompanhasse ao Brasil; mas não previa então que eu aqui viria sem poder gozar de sua amizade e proteção.

Arrebentando a tormenta revolucionária, o Imperador abdica e se retira a bordo de um navio inglês.

Nada detém o conselheiro Peixoto, e passando impassível pelo meio de uma multidão exaltada por esse recente sucesso, dirigiu-se a bordo do navio em que estava o Imperador, que entre lágrimas e soluços lhe agradece esta nova prova de afeição, recomendando-lhe de não abandonar os seus augustos filhos. A multidão respeita a sua volta, como o fizera no momento em que ia pagar este piedoso e último tributo àquele que tinha sido seu constante Mecenas.

A Regência não podia ficar indiferente às provas de saber e de dedicação que acabava de dar o conselheiro Peixoto, salvando em 1833 a vida ao Senhor D. Pedro II, atual Imperador, pois que num ofício muito conhecido, para que seja mister referir aqui, apressou-se em felicitá-lo oferecendo-lhe uma recompensa pecuniária.

Esta oferta foi recusada com extrema delicadeza, e o conselheiro Peixoto contentou-se com o título de 1º médico de S. M. e da família imperial, impondo como condição absoluta que este título nenhum honorário lhe traria até à maioridade de S. M.

Em 1841 foi agraciado com o título de oficial-mor honorário.

Enfim, o último e não pequeno serviço que terminou esta brilhante carreira foi o de haver recebido, em 3 de fevereiro de 1845, o filho do monarca, que ele mesmo recebera, quero dizer o Príncipe Imperial D. Afonso, pelo que foi agraciado com o título de barão de Iguaraçu.

O barão de Iguaraçu exerceu durante mais de vinte anos a cadeira de Fisiologia, e aí estão os seus numerosos alunos que mais alto falam do que eu o posso fazer, e que todos de comum acordo confessam, que a benevolência com que tratava sempre a mocidade era igual à sua eloqüência e profunda sabedoria.

Além dos numerosos documentos esquecidos na Secretaria do Império, deixou um volumoso manuscrito sobre Fisiologia, que aguarda ainda as honras da publicação.

Foi por várias vezes diretor da Escola de Medicina. Haverá quem ignore os extraordinários esforços, os trabalhos imensos de que necessitou, a princípio, semelhante estabelecimento? Haverá quem ignore que até o dotou com estatutos feitos por ele, e impressos à sua custa, e que para sustentar a dignidade desta sua filha, sempre deixou de lado amizades, considerações e interesses particulares?

Seus serviços à humanidade foram bastante apreciados em toda esta cidade, e mormente na Santa Casa de Misericórdia dessa corte, já como facultativo, já como digno irmão, e duas vezes provedor, consti-tuindo-se credor do maior respeito e gratidão. Faleceu no dia 28 de abril de 1846.

A vida do barão de Iguaraçu foi a de um homem de saber, de probidade e de coração. Não faltou para sua felicidade e de sua família, senão mais alguma firmeza, mais pertinácia na sua resistência aos esforços da inveja e do ciúme, sempre sentados no degrau do trono.

Em posição científica nada tinha a invejar; até hoje nenhum médico brasileiro pôde lisonjear-se de ter sido, como ele, médico correspondente da Academia Imperial de Medicina de Paris, da Sociedade de Medicina da Emulação, da de História Natural, e de Química Médica da mesma cidade, do Instituto Histórico, da Sociedade das Ciências, Belas Letras, e de muitas outras sociedades sábias.

Aqueles que o conheceram lamentaram a sua morte, e ainda hoje conservam dele uma honrosa lembrança.

Dr. Ch. J. F. Carron du Villards