Galeria dos Brasileiros Ilustres/Francisco de Lima e Silva
Francisco de Lima e Silva, regente do Império, marechal-de-campo, comendador das Ordens de Aviz e da Rosa, grão-cruz da do Cruzeiro, gentil-homem da câmara imperial, e do conselho de Sua Majestade, foi um dos mais notáveis caracteres que atravessaram as fases do Reinado, da Independência, da Abdicação, da Minoridade e da Maioridade.
O resumo das principais épocas da sua vida militar e civil, quer como general, quer como regente, comprova as raras qualidades de sua alma, e o quanto deve ser grata a memória deste benemérito da pátria; respeitável pela sua intrepidez como soldado, admirável pela sua humanidade como chefe e vencedor, estimável pela sua prudência e justiça como juiz, unia a todos estes dotes o da urbanidade e modéstia, os da caridade e de um pai extremoso.
Deus, nas eventualidades da sua vida, deu-lhe grandes consolações e grandes dores; porque, se viu seu filho Luís, o ilustre marquês de Caxias, subir honrosamente os mais altos graus da escala social, e seu filho José, pela eminência de suas qualidades, gozar da estima do país e do soberano, viu também descerem prematuramente à sepultura seus filhos Francisco e Carlos, militares completos e merecedores de um grande futuro.
Descendente da ilustre família dos alcaides-mores de Faro e de S. Ivo, nasceu no Rio de Janeiro a 8 de julho de 1785, filho legítimo do marechal José Joaquim de Lima e Silva e de D. Joana da Fonseca Costa. Segundo os seus usos e privilégios das famílias militares, assentou praça na idade de cinco anos como cadete no regimento de Bragança, onde seguiu todos os postos até o de substituir seu pai no comando do mesmo batalhão.
Na época da Independência prestou os maiores serviços: à sua coragem, firmeza, atividade e confiança pública, deveu a cidade do Rio de Janeiro muitos bens naquela perigosa conjuntura, e ele adquirir a fama de um soldado completo.
Para acalmar a revolta pernambucana de 1824 era necessário um homem que, pelo seu passado, inspirasse a maior confiança, tanto ao governo como aos que não compartilhavam os sentimentos dos revoltosos; e para esta perigosa e difícil missão foi escolhido o brigadeiro Lima e Silva, não só para comandar a brigada expedicionária, como também para presidente interino da província, e da comissão militar, criada por carta imperial de 27 de julho de 1824.
Combateu a revolta com todas as armas de um coração bem formado. Aos que não vencia pelo ferro, venceu pela magnanimidade, pela piedade, e por todos os meios de que uma heróica generosidade pode dispor em posição tão difícil e tão ampla como o exigiam as circunstâncias.
Mas não eram os rebeldes à integridade do Império os seus maiores contrários; eram sim os homens armados de um zelo excessivo, e os que disfarçavam seus ódios com todas as cores do falso patriotismo quando invocam a lei. O general Lima tinha horror ao sangue. Para melhor descrever essa situação e o estado dos espíritos, ouçamos o que dizia, de Pernambuco, ao Sr. D. Pedro I o general M., e o que ao governo do mesmo Imperador escrevia o general Lima; o contraste das expressões revela salientemente o que acabamos de dizer, e o quanto era nobre e sumamente humano o coração de Lima, e o alcance de suas vistas políticas naquele tempo.
Ao Sr. D. Pedro I escrevia o general M.:
"Senhor. — Chegou finalmente a época em que a minha consciência principia a acusar-me ou argüir-me de não haver eu participado a V. M. a repreensível conduta do brigadeiro Francisco de Lima, que, insensível às honras com que V. M. I. o tem sobejamente distinguido (julgando em seu orgulho que talvez mais se lhe deva), tendo antes em vista seus fins particulares do que a cega obediência às imperiais ordens, quando todas tendem unicamente ao bem geral do Brasil; que, esquecido do solene juramento de fidelidade que, quer antes, quer depois de ser nomeado para comandar a expedição de Pernambuco, deve ter prestado nas mãos de V. M. I., ousa insensato novamente cabalar e iludir o governo, deixando de cumprir ordens tão claras como positivas, pretextando dúvidas e tropeços que a cada passo o estorvam e embaraçam. Sim, Senhor, chegou o momento em que é preciso arrancar a máscara à impostura, e fazer aparecer o homem tal qual é. O brigadeiro Lima em nada tem cumprido as ordens de V. M. I.; ele não estabeleceu a comissão militar, parece que muito de propósito, para apresentar dúvidas que tivessem em resultado o demorar a posse do presidente nomeado por V. M. I., e a mim; e enquanto esperava decisões, engolfado na desmesurada ambição de mando, urdia novas tramas, escogitava novas dúvidas para de novo iludir o Ministério, entretanto que as rédias do governo da província eram sustentadas de uma maneira tal, que os rebeldes, que a todo o momento deviam ter esperado a justa punição do seu horrendo crime, principiavam a encarar o Brigadeiro Lima, senão como seu consócio, ao menos seu patrono, seu protetor e amigo: resolvendo entretanto o Brigadeiro Lima, em seus, para mim ocultos, planos, e em seus clubes intrigar e enredar o presidente Mayrink..."
O vago e a linguagem deste documento confidencial, cujo original temos à vista, justifica o caráter de quem o escreveu, e o do General Lima e Silva. Não seria esta a linguagem dos Sejanos e Tigelinos quando aguçavam as iras de Tibério e Nero para se fartarem de sangue? O Sr. D. Pedro I foi surdo a todas estas misérias.
Vejamos agora o que ao mesmo tempo escrevia o general Lima, e conjuntamente o contraste que apresenta este documento pela elevação dos sentimentos, pela humanidade e alcance de vistas políticas! Escreve uma circular ao Conselho de Estado:
"Pelos papéis oficiais estará V. Exª bem ao fato do que se tem passado de quanto tenho feito, tanto nesta malfadada província, como nas outras do Norte, e até mesmo na da Bahia."
"A comissão militar, tendo sido aberta imediatamente que me chegaram com o total destroço dos rebeldes; os presos que estavam no caso de ser considerados chefes da rebelião, foram já executados; e outros suspensa a execução de suas sentenças, até a decisão de Sua Majestade Imperial, por haver a mesma comissão julgado melhor demorar a execução e esperar as imperiais ordens, do que fazer repetir a cena de 1817, que se julgaram depois não serem cabeças indivíduos que já tinham sido precipitadamente fuzilados na Bahia e nesta cidade, cujos acontecimentos são aqui mui recordados por estes povos o que, junto às mais violências e despotismos inauditos que então se praticaram, criaram a obstinação que hei encontrado e causaram esta reação e ódio ao governo, supondo talvez que eles se repetissem; era-me portanto mister desmenti-los por fatos de moderação, e germinar nestes corações endurecidos por uma educação pervertida pela lição de infernais periódicos, o amor que deviam ter à sagrada pessoa do Imperador, e a confiança no governo; e é por isso que tenho sido mais humano que severo, sem deixar de ser justiceiro, e me persuado ter alcançado algum fruto."
"V. Exª, como sábio e experimentado nos grandes negócios, estará bem certo quão dificultoso é classificar e punir crimes de opinião, e em negócios tão melindrosos, mediante as circunstâncias em que se tem achado o Brasil, e as vicissitudes das coisas, os diferentes caracteres com que se têm apresentado; a propugnação pela independência, os desejos da liberdade dos povos; a aluvião de escritos incendiários e subversivos da ordem, que têm posto todos os povos em desconfiança e em atitude de resistirem ao que eles chamam roubo de seus direitos individuais e de sua decantada liberdade."
Diz franca e lealmente que a comissão militar não deve continuar por ser um tribunal de horror; e que, a executar-se à letra a última carta imperial, ainda seria preciso condenar à morte mais de cem pessoas, o que não seria praticável e nem consentâneo com as pias intenções do Imperador. Pede para que os comprometidos sejam julgados pelos tribunais ordinários, que não são odiosos; e lastima a casualidade de ser composta comissão de quatro portugueses imprudentes que davam a entender o contrário, espalhando que vieram de propósito! Mostra o ponto culminante onde este odioso poderá chegar, assim como a execração em que ele é tido, pois o chamam publicamente de verdugo dos seus patrícios e o sustentáculo das vinganças dos europeus.
Requer a eleição dos deputados; aconselha uma política mais branda, medidas prudentes e enérgicas, e o maior zelo na observação da constituição; bons e honestos empregados, escritores que dirijam a opinião pública, e uma correspondência ativa e regular por meio de correios de vapor para mais estreitar os laços de amizade e comércio, e sobretudo pede inteira confiança nos altos funcionários que se mandarem para a província.
Aquele que venceu à força de armas Pernambuco, que fez parar a revolução, é o que fala desta maneira ao governo e aos seus conselheiros. Digam os homens de hoje se o regente Lima não era um homem das mais altas qualidades, um espírito vidente e digno de ocupar o lugar que posteriormente ocupou!
Acalmadas as paixões, e antes que alguns dos revoltosos escapados tomassem assento em ambas as câmaras, o nome do general Lima foi de dia em dia convertendo-se em um hino de concórdia e gratidão, porque o tempo foi pouco a pouco revelando atos de sua magnanimidade que fazem honra à espécie humana, e que serão admirados por todas as idades.
A Providência havia ligado os destinos da monarquia brasileira àquele brioso soldado por mais de um fato, e colocado nele e em seus ilustres filhos a continuação da mesma missão.
Arauto da ordem no primeiro movimento contra a integridade do Império, depois da Independência, coube-lhe a glória de amparar a monarquia mais tarde, e de ver em seu filho Luís o pacificador de quatro províncias revoltas e o general-em-chefe que mandou um contingente a Buenos Aires para destronar o governador Rosas, que em nossos dias fez reviver as loucuras de todos os tiranos da Antiguidade.
De volta de Pernambuco, e estando de semana no paço de S. Cristóvão como veador da santa Imperatriz Leopoldina, coube-lhe a honra de apresentar em seus braços à corte o Sr. D. Pedro II, que acabava de nascer em 2 de dezembro de 1825! Quem diria então que seis anos mais tarde ele o havia de proclamar imperador no Campo de Santana, no meio do povo e da tropa, e que lhe salvaria a coroa através das tempestades que passaram durante a sua regência?!
Mandado para São Paulo em 1828 como governador das armas, ali correu perigo de vida no dia 17 de outubro, quando passava revista às tropas, por se haver espalhado que fora ali mandado a fim de proclamar o absolutismo. Homens armados de bacamarte o seguiam a cada movimento de um lado e de outro, com o fim de o acabarem ali se acaso desse a menor mostra de um tal intento. Tudo se desvaneceu ao primeiro — Viva à Constituição do Império.
O que escreve este resumo biográfico do regente Lima ouviu isto da boca do muito respeitável bispo eleito Moura, no momento em que reprovava o ato e o narrava ao bispo do Rio D. José Caetano.
De fins de 1829 até 9 de dezembro de 1830 foi comandante das armas interino na corte, e novamente nomeado para São Paulo, onde não voltou por ter sido nomeado efetivo em 13 de março de 1831 para a capital e província do Rio de Janeiro, lugar que deixou no dia 7 de abril, por ter sido eleito membro da regência provisória.
Na noite de 6 de abril dirigiu-se o general Lima a São Cristóvão para solicitar do Sr. D. Pedro I algumas providências, à vista do estado em que se achavam o povo e a tropa; e ouvindo a este o firme propósito em que estava de abdicar, disse-lhe: "Pois bem, Senhor, eu parto para o Campo a unir-me com o povo e tropa, e a colocar-me à frente da revolução que se prepara, mas juro a Vossa Majestade que ela será sempre no sentido monárquico." E o imperador, dando-lhe um abraço, respondeu: "Sr. Lima, sempre o considerei como meu amigo sincero: vá, e lhe entrego o destino de meus filhos."
Voltou-se, e o general veio para o Campo até chegar o momento em que o Sr. D. Pedro mandou depositar em suas mãos o decreto de sua abdicação.
O general Lima reuniu em torno de si e de todos os amigos da Constituição, leu o decreto, e proclamou imperador do Brasil ao Sr. D. Pedro II.
Na eleição da regência permanente ninguém pretendeu o seu lugar, todas as divergências foram na nomeação dos dois outros, o que se fez sem agitação no palácio dos senadores.
Desenganado o partido republicano, descontente os que se julgavam com direito ao governo, começaram a prorromper anarquias de todas as espécies. O regente Bráulio Muniz morreu de hipertrofia do coração; e o regente Costa Carvalho, hoje marquês de Monte Alegre, não podendo suportar a pressão de seus amigos políticos, as incon-seqüências da época e as exigências de novos ambiciosos, retirou-se para São Paulo, e deixou o velho general com o peso e responsabilidade do governo do Império.
As câmaras, pela fatura do ato adicional, decretaram a unidade da regência, e no dia 12 de outubro de 1836, entregou o general Lima a Diogo Antônio Feijó a regência do Império sem deixar nenhuma queixa, e sem ser acusado de um ato imprudente.
Escolhido senador pelo regente Feijó, obteve ainda mais esta prova do povo fluminense e do governo do quanto era respeitado e das lembranças de grata memória que deixara após uma regência tempestuosa, e de amargas provações. Amigos e inimigos lhe fizeram justiça, porque todos reconheceram os eminentes serviços e a constância do general Lima e Silva.
As câmaras unânimes lhe concederam uma pensão vitalícia, igual à metade do subsídio que percebia como regente. Essa pensão valeu a muitos desgraçados, consolou muitos infelizes, mormente militares velhos, porque o regente Lima era de uma generosidade a toda prova; e que o digam as vítimas de Pernambuco, as viúvas desvalidas e desgraçadas, e os próprios complicados, que acharam sempre na tênue bolsa do soldado um pão para si, seus filhos e sua família. O senador Manuel de Carvalho o confessava publicamente, dizendo que Lima tinha sido o anjo consolador de todos os seus desgraçados companheiros, e o seu também.
Retirado à vida doméstica, e testemunhando os acontecimentos posteriores, as mudanças de idéias, as acusações feitas ao passado por alguns proteus políticos, resolveu-se a escrever umas memórias a fim de que a posteridade não ficasse enganada; e dizia ele, que fora o tempo mais agradável da sua vida aquele em que se ocupou com este escrito.
Uma vez passeando ele pelas salas do paço da cidade com o que escreve estas linhas, e olhando para o retrato da Senhora D. Maria I, que estava no gabinete do despacho da regência, exclamou: "Ah! Sr... se este retratado falasse, se ele contasse o que ouvira neste gabinete quando se quis vender a coroa imperial e mandar o imperador estudar a arte de governar nos Estados Unidos, muita gente fugiria desta casa e nunca mais aqui apareceria. Eu e os outros que salvamos a monarquia, aqui andamos a admirar estes senhores, que passeiam como se nunca nada houvera: a influência política é como a moda, que muda com os tempos."
O homem que ocupou os mais altos empregos do estado, que teve em suas mãos os destinos do Império, que, senhor de uma revolução, tinha por si a tropa e o povo, morreu pobre e foi enterrado pela irmandade da Cruz dos Militares. Seus ilustres filhos viram nesta forma de enterro mais um brasão de família e um documento indeclinável da probidade daquele que deixou a regência muito mais pobre do que quando para ela entrara, porque uma parte dessa pensão do estado também foi destribuída para a amortização de suas dívidas.
No dia 2 de dezembro de 1853, no momento em que descia para o paço o Sr. D. Pedro II, deu a alma a Deus, aquele que o havia... anos antes sustentado em seus braços, e no dia 7 de abril de 1831 segurado em sua fronte infantil esse diadema americano que começa lançar seu brilho por todo o mundo.
O regente Lima tinha um amor particular ao Senhor D. Pedro II, tinha-lhe uma afeição paternal. Contar-se-lhe os progressos intelectuais do imperador, suas boas ações, era uma delícia indizível para ele; e logo acudia cheio de ufania: "Aqui, aqui nestes braços o apresentei à corte no dia do seu nascimento; com esta boca o aclamei no campo de Santana, e com este coração leal fiz tudo quanto devia para conservar-lhe a coroa."
Nos despachos que houveram pela sagração, foi nomeado barão da Barra Grande, sem grandeza. Julgou de sua dignidade não aceitar, e morrer com o título de regente do Império. Os indivíduos que aconselharam este proceder ao governo devem hoje gemer, pensando que sobre ele recai somente tão grande ingratidão, e a responsabilidade de quererem rebaixar o velho general, o pio herói de Pernambuco, o primeiro regente do Império, com um título que o colocava abaixo de seus sucessores no governo, e de quem trazia ao peito a grã-cruz do Cruzeiro, e a medalha de ouro dos que pugnaram pela integridade do Império.
Era o regente Lima um homem de mediana estatura, de proporções fortes, de uma fisionomia austera e de um olhar firme, mas bondoso. No seu trato familiar era de uma urbanidade tal e de uma modéstia que cativava a todos.
A sua conversação era variada, cheia de fatos, de anedotas interessantes e de formas muitas vezes originais; mas em tudo isto desco-bria-se sempre o soldado, mas o soldado ilustrado por um longo e meditado estudo das cousas humanas. Às vezes encarando os acontecimentos pátrios, resumia-os por admiráveis sentenças que tinham o cunho da simplicidade na forma, da intensidade na matéria, e da modéstia que lhe era natural.
O que escreve este bosquejo passageiro da vida de um benemérito da pátria, contrai por amor da mesma pátria o dever de escrever mais de espaço a biografia de um varão, cujo nome deve ser caríssimo a todos os que vêem na monarquia o princípio de nossa estabilidade e grandeza, e o elemento mais seguro para a ordem e prosperidade do Império do Brasil.
Os que passaram pelos dias tempestuosos da menoridade reconheceram a verdade do grande princípio, e os serviços prestados ao Brasil pelo general Francisco de Lima e Silva.