Girândola de Amores/XI

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Cecília, quando tinha apenas quinze anos e recebia de sua própria mãe a educação relativamente boa, que mais tarde fez dela o encanto de algumas salas do Porto, conheceu um rapaz ainda muito novo, bonito, janota, boa mão de rédea e herdeiro presuntivo de uma das famílias mais ricas daquela cidade.

Esse rapaz era Pedro Ruivo. Teria então vinte e cinco anos e gozava já na sua província de uma enorme fama de "homem perigoso" para as mulheres de toda a espécie.

Cecília um mimo de frescura, de graça e de inocência, não lhe poderia passar despercebida. Pedro fez o possível por conquistar a sua simpatia; passara-lhe muitas vezes pela porta, picara o cavalo defronte da sua janela, oferecera-lhe em todas as ocasiões para dançar a valsa e fizera-lhe repetidos protestos de amor. Mas a bela menina sorria de tudo isso e não parecia resolvida a tomar a sério os juramentos do seu ruidoso namorado.

Pedro Ruivo, ferido no amor-próprio, sentia-se cada vez mais estimulado pela indiferença de Cecília, e, longe de desis­tir, redobrava de atrevimento e perseverança nos ataques.

Mas qual! O demônio da menina era intransigente. Ria-se com ele, conversava, aceitava-o para uma, duas e três valsas, porém não lhe dava a menor esperança a respeito de amor.

— Não me quer então definitivamente?... perguntou-lhe uma vez Pedro Ruivo.

— Se o quero? para quê?... interrogou ela, em vez de responder.

— Ora para quê?... exclamou o janota. Para tudo! inclusive para seu marido...

— Marido! O senhor não me parece que sirva para isso...

— Julga-me então assim tão sem préstimo?!...

— Não é isso, mas é que ainda lhe falta o juízo.

— Não sei o que a leva a supor semelhante coisa!...

— Pois se não sabe, procure alguém que lho ensine. Eu confesso que não tenho muita paciência para ensinar!...

— É porque não saiu à sua mãe!... observou o Ruivo, com intenção.

— Nem a meu pai, respondeu a menina, tornando-se ver­melha; meu pai, que era um insigne picador!...

— Ah!

— Com licença! disse Cecília, erguendo-se do lugar em que estava; creio que procuram por mim lá dentro.

E Pedro Ruivo ficou só na sala, entalado pela situação.

— Oh! exclamou ele consigo. Esta rapariga há de abaixar a proa ou, não serei eu quem sou!

No dia seguinte pediu a um seminarista seu amigo que lhe arranjasse uns versos de amor e publicou-os na folha mais lida do Porto, com o seguinte título: "Àquela por quem morro e que tanto despreza os meus protestos; a ti, Cecília de minha alma!" Assinava. "P. R." A menina leu e compreendeu a intenção do suposto poeta. Daí a quatro dias apareceu outra dose de lirismo. Esta agora trazia o seguinte rótulo: "Ainda! Ainda!"

E continuou, duas, três e quatro vezes por mês. Cecília habituou-se àquela música, e todos os conhecidos principiaram a tratar dos amores ingratos do Ruivo e do pertinaz retrai­mento da filha de Helena.

O namorado teve afinal de sair do Porto para fazer uma viagem ao Minho, em companhia da família, e, durante ano e meio que lá esteve, grandes mudanças se tinham de operar no objeto da sua paixão. É que Cecília se tornara de todo mulher; a flor desabrochara. Já não era o mesmo botão de rosa, petulante e empertigado, que parecia sorrir e zombar de tudo; agora a flor desabotoara aos raios de estranhas aspi­rações e deixava-se pender melancolicamente para a haste. Vieram os sobressaltos dos dezenove anos; os sonhos indefini­dos das noites de vigília e as vagas tristezas dessas horas em que o sol parece ir se deixando morrer de volúpia no horizonte.

Cecília sentia acordar-lhe no corpo uma nova alma, que já se não contentava só com os folguedos da menina e só com as doces afeições dos seus parentes.

Alguma coisa pedia-lhe no coração um afeto mais exclu­sivo e mais dela. Já não podia observar sem comoção o arrulhar de dois pássaros no mesmo ninho. Toda a natureza lhe apresentava agora um novo aspecto de vida e fecundidade: as árvores pareciam-lhe mais flácidas e mais afetuosas nos seus requebros ao roçar da brisa; as noites de luar falavam-lhe agora em linguagem para ela desconhecida até aí; e o ar, o céu, as águas de qualquer regato, tudo sobre que ela pousava os olhos e demorava os sentidos, vaporava de si uma alma sensual e misteriosa que a envolvia toda como em uma atmosfera de perfumes inebriantes.

Pedro Ruivo voltou ao Porto justamente nessa época. Cecília não o recebeu em ar de mofa, como até aí costumava fazer; e ele, pelo seu lado, não trazia também aquele aspecto banal de estróina relapso.

É que, durante a ausência, Pedro Ruivo sentira pela pri­meira vez o dente canino da adversidade. Seu pai, que estava à morte no Minho, chamara-o de parte e falara-lhe muito seriamente sobre o futuro.

— Se eu morrer, dizia o pobre velho a chorar; vais tu, meu Pedro, ficar pobre e desprecatado no mundo. Tens todos os hábitos da prodigalidade, sem possuíres nenhum dos agentes da riqueza. Que será de ti, meu filho, se desde já não muda­res de rumo e não cuidares de arranjar meios de vida?!

Pedro Ruivo procurou serenar o pai; prometeu-lhe uma completa regeneração e chegou a falar em casamento com Cecília.

— Casar?! interrogou o velho, franzindo a fronte despo­jada. Sabes lá o que isso é!...

O filho apresentou as suas razões, pintou o caráter da sua pretendida e descreveu o modo pelo qual resistira ela a todos os meios de sedução por ele empregados.

O velho conformou-se mais com aquela notícia, quando Pedro lhe disse que a menina era filha bastarda do conde de S. Francisco e teria um sofrível dote pela morte da mãe.

— Bem, meu filho, disse ele. Já que tanto o desejas, casa-te. Pode ser que esteja aí a tua regeneração e a tua felicidade!...

E alguns dias depois Pedro Ruivo partia para o lugar em que estava Cecília.

Desta vez não andaram as coisas como nos primeiros tempos. Pedro Ruivo desprezou as velhas amizades da pânde­ga e deixou-se das extravagâncias que dantes escandalizavam o Porto; deixou-se de correrias e de namoros arriscados, para se entregar exclusivamente ao amor de Cecília.

E ela, no fim de contas, já o amava; Pedro Ruivo surpre­endera-lhe a alma, justamente quando esta, à semelhança das flores, abria ao amor os seus delicados pistilos; nessa ocasião em que o coração da mulher está em branco e pronto a rece­ber para toda a vida a grande impressão que o fecundará para sempre. Outras virão depois, mas a primeira há de predominar até à morte.

Cecília palpitou nos primeiros arroubos de mulher sob a impressão de Pedro Ruivo, entregando-lhe o segredo dos seus sonhos e o ideal de seus desejos. Ele povoou todo o seu espí­rito com a insubstituível vantagem do primeiro que o ocupava. Apoderou-se dela, uniu-a ao seu destino, antes mesmo de uni-la ao seu corpo.

As coisas neste ponto, pediu-a em casamento e D. Helena concedeu-a de muito boa vontade, indo por bem dizer ao en­contro do pedido, como se com este já contasse.

Havia nos planos da professora uma sutil intenção de conveniência. O futuro genro, como já tivemos ocasião de declarar, passava por homem rico e pressuposto de herdar todos os bens de seu pai; Cecília faria neste caso uma boa aquisição, porque não tinha dote e só com a morte de Helena receberia alguma coisa, se recebesse.

Pedro Ruivo, por sua vez, desde que percebeu a miséria que lhe estava iminente, via em Cecília uma tábua de salvação. Havia por conseguinte, de parte a parte, a intenção de se iludirem. E o receio que tinha cada qual de entrar em claras explicações a respeito dos próprios bens, a ambos tolhia de indagar sobre os do outro.

Desta forma caminhavam imperturbavelmente as circuns­tâncias para a segura realização do consórcio. Helena desfa­zia-se em obséquios e franquezas com o noivo, que supunha destinado a trazer, para sua filha, um futuro opulento e, para ela própria, a segurança e o descanso da velhice. Por outro lado, o rapaz não perdia ocasião de cercar de obséquios e desvelos àqueles a quem julgava dever a salvação e a felicidade.

Nunca houve talvez no mundo tanta harmonia e tanta gentileza entre um noivo e a família da respectiva noiva. Era bastante que algum deles revelasse qualquer desejo, para todos os outros se precipitarem a satisfazê-lo. Ora, cabia a Pedro esta ventura com respeito à rapariga, ora, cabia a Hele­na com respeito ao futuro genro. E neste círculo de galanteios viviam os três em perene dedicação uns pelos outros.

Dentre eles, só a encantadora Cecília andava de boa fé. Essa não procurava armar ao efeito para ninguém e deixava-se simplesmente arrastar pelos impulsos do próprio coração; tudo o que fazia era perfeitamente por seu gosto, sem constrangi­mento e sem cálculo.

Pedro Ruivo julgava ter encontrado a porta do céu.

— Não é que sou um demônio deveras feliz?... conside­rava ele sozinho; tive dinheiro, esbanjei-o e, quando podia sofrer as conseqüências disso, eis que me aparece este anjo, um verdadeiro anjo salvador, a resgatar-me do castigo de meus vícios e da minha prodigalidade! Oh! definitivamente sou um homem feliz!... Queixe-se quem quiser da existên­cia, que eu cá por mim continuarei a achá-la encantadora!

E quando Pedro Ruivo, depois de conversar calorosa­mente com a noiva, se recolhia ao seu quarto de rapaz solteiro, acendia o charuto, atirava as pernas para sobre a mesa e ficava, ou a rever-se nas correrias escandalosas do passado, ou a sonhar-se na tranqüilidade endinheirada do seu futuro conjugal.

Mas... (aqui temos um mas, para autorizar aquele provérbio que sustenta não haver gosto completo nesta vida) uma intempestiva notícia do Minho veio perturbar os sonhos feli­zes do Ruivo. Seu pai não deitaria mais que alguns dias e era necessário que o filho fosse lá para despedir-se dele.

— Ora, com a fortuna! bradou o Ruivo ao receber a notí­cia. Lá se vai tudo quanto Marta fiou! Se o velho comete a imprudência de morrer agora, fico completamente desmora­lizado às vistas da família de minha noiva e arrisco-me a perder o jogo, pois que logo se espalhará a verdade concernente ao estado de meus haveres!

— Nada! considerou ele, receoso de perder o dote da noiva, é preciso quanto antes providenciar de modo a que a morte de meu pai não me destrua os projetos!

E, enquanto o velho agonizava no Minho, talvez demo­rando a morte para ver e abençoar o filho pela última vez, este meditava junto de Cecília novos planos de especulação, os quais foram, com efeito, realizados.

Estavam na primavera. Ruivo combinara com a noiva um passeio no campo. Iria também D. Helena e mais um casal, muito amigo da casa, o Lobato e a mulher. Cecília recebeu o convite com grande alvoroço, tanto gostava ela de passear de vez em quando ao ar livre, sob o trêmulo murmurejar das folhas.

Partiram todos às quatro horas da madrugada. Ruivo fizera vir de véspera um grande carro, apropriado para os conduzir à quinta de um seu parente, que nessa ocasião estava a banhos na Figueira da Foz.

A excursão foi muito alegre, havia em todos o bom humor peculiar às matinadas. O dia apresentava-se cheio de luz e temperado por um doce calor voluptuoso. Os cinco compa­nheiros não se calaram um instante. Tudo era pretexto para fazer riso.

Cecília parecia desfrutar o melhor momento de sua vida: toda risonha, nas suas rendas de linho e no seu claro vestido de fustão, estava como nunca encantadora de frescura e singe­leza. O chapéu de palha de Itália dava-lhe à cabeça, esperta e redonda, uma expressão particular de travessura ingênua. Parecia uma pensionista que voltava do colégio a passar férias com a família. Sentia-se feliz e disposta a descobrir encantos em tudo o que a cercava. Durante a viagem quase que não teve uma só ocasião de esconder os belos dentes brancos.

— Como tens hoje tão boa cor!... observava D. Helena, a rever-se com orgulho na formosura da filha.

E em continuação de uma conversa, que pouco antes sus­tentava com a senhora do Lobato, disse com referência à filha:

— Ultimamente está mais animada...

— Acho até mais gordinha... observou a outra.

— É, confirmou a professora; ela agora come com mais apetite.

— Pudera! disse o Lobato, fazendo um ar cheio de inten­ção. Está noiva!...

Cecília abaixou os olhos, sorrindo, mas ergueu-os logo para ir com eles ao encontro dos de Pedro, que nessa ocasião acabava de tocar com o pé a ponta do pezinho da menina.

— É a melhor época do amor! considerou o Lobato filosoficamente, deixando escapar o gesto para cima da mulher.

— Má língua! respondeu esta a rir-se. E continuou na sua conversa com Helena, que lhe ficava de frente.

Pedro Ruivo é que parecia preocupado exclusivamente com a noiva.

— Não sei o que tanto têm os namorados para dizer um ao outro!... observou o Lobato, em voz baixa, à mãe de Cecília.

— Homem! respondeu a mulher, deixe lá os outros! Quem sabe se você no seu tempo não fez a mesma coisa?...

O Lobato protestou em ar de galhofa. Helena expendeu algumas considerações a respeito de namoros, e os noivos con­tinuaram a conversar, muito unidos, muito seguros da sua felicidade.

— Quando é o dia? perguntou Lobato a Helena.

— No princípio do mês que vem, respondeu Pedro, inter­rompendo a sua conversa com Cecília.

— Ah! então é sempre daqui a uma semana?...

— Infalivelmente.

— Está tudo pronto, acrescentou a professora, com ar de satisfação. Daqui a oito dias sou sogra...

— E em breve talvez avó! profetizou o Lobato, rindo.

Cecília abaixou de novo os olhos, corou, enquanto o Ruivo lhe apertava uma das mãos, como para dar cópia da sua im­paciência.

E desta forma continuou o passeio, até que chegaram afinal à quinta. Era um casarão velho e sem cuidados de arte, mas em compensação cercado de belas árvores frondosas e de enormes tabuleiros de verdura, que alegravam o ar com o cheiro fresco das hortaliças.

Pedro foi o primeiro a saltar e oferecer a mão às senhoras. Estava elegante; vestia um fato alvadio, de casimira-cambraia, tinha polainas, um grande laço na gravata de linho e o chapéu de palha um pouco derreado sobre a orelha esquerda à Marial­va. Ia muito bem esse trajar com a sua fisionomia alourada e com os seus olhos vivos e enfeitados pelas lunetas de cor. Destacava-se-lhe bem da pele branca do rosto o bigode retor­cido e bem alinhado, e de todo ele recendia um bom ar de asseio e trato.

Fez-se logo o almoço ao ar livre, debaixo de uma árvore, e à sobremesa acudiram os brindes à felicidade dos noivos e a tudo aquilo que é de costume brindar nessas ocasiões. Depois, o Lobato estendeu-se sobre a relva, tirou um jornal do bolso das calças e pôs-se a toscanejar sobre o artigo de fundo; enquanto Helena, de camaradagem com a mulher dele se entretinha a adiantar um trabalho de agulha que levava dentro da sua cesta.

Os namorados, sempre juntos, ficaram a conversar.

O sol estava já um tanto alto. Fazia calor. As árvores, agora, pareciam convidar a gente para ir deitar à tepidez aprazível das suas sombras. Reinava um grande silêncio pela quinta; só se ouviam os rumores confusos do campo e a voz longínqua de algum pastor, tangendo além o seu rebanho pelas montanhas.

Helena estendera-se mais na cadeira de balanço em que se havia assentado, deixou cair esquecida sobre os joelhos a costura, e foi pouco a pouco adormecendo no gozo plácido da digestão do almoço. A mulher de Lobato, mal a viu fechar os olhos, levantou-se e foi ter com o marido, que, às voltas com seu jornal, estava prestes a fazer o mesmo que Helena; assentou-se ao lado dele, tomou-lhe no colo a cabeça e come­çou a acariciar-lhe os cabelos. O Lobato aninhou-se melhor no regaço da mulher, e adormeceu de todo.

Cecília, entretanto, passeava do lado oposto pelo braço do noivo. Pedro Ruivo falava-lhe do seu amor e dizia a impa­ciência que o devorava naqueles últimos longos dias.

Ela sorria, olhando para o chão, e deixava que o rapaz lhe apertasse apaixonadamente o braço carnudo e bem feito.

— Se soubesse quanto sofro!... disse ele, aproximando o rosto do de Cecília. É um tormento! Hei de ver chegar o instante de minha felicidade e ainda me parecerá um sonho!...

— Falta tão pouco!... murmurou ela, com um sorriso adorável.

— Oh! faltam séculos! exclamou ele, beijando-lhe a mão. Faltam séculos!

E, arrastados pelo prazer de estar juntos, iam andando por debaixo das árvores, esquecidos de tudo e só cuidosos do seu amor.

A certa altura Cecília quis voltar, mas Pedro pediu-lhe que não, com um olhar úmido de ternura.

— Ainda não voltemos... É tão bom estarmos assim unidos, a conversar sozinhos! Tão poucas ocasiões temos tido para as nossas confidências ...

— Sim, mas é que podem reparar. Voltemos! Não é bonito ficarmos aqui!...

— Espera! disse o moço, segurando Cecília pela cintura; espera um instante...

E puxou-a para si:

— Não te vás! Ouve!

Ela fugiu com o rosto, toda vergada para trás, nos braços do noivo, e suplicava:

— Não! Não insista! Podemos ser vistos! Deixe-se disso!...

Mas ele não atendeu, perseguindo-lhe o rosto com os lábios estendidos.

— Não! repetia ela. Não! não insista! Oh! Eu fico zangada.

— Mas, meu bem, tu não deves ser assim comigo! Nós somos quase casados!...

— Mas ainda não somos!

— Tens medo de qualquer coisa?...

— Tenho medo de tudo!

— Ora!... resmungou Pedro Ruivo.

E ficou muito sério.

— Estás zangado?... perguntou ela com meiguice.

— Não sei. É melhor não falarmos nisso!

E continuaram a andar para diante de braço dado.

Não trocaram uma palavra.

— Estás zangado comigo?... perguntou Cecília novamen­te, vergando o rosto para encarar o rapaz.

Ele respondeu dando-lhe um beijo em cheio nos olhos.

Ela recuou com um grito, mas Pedro Ruivo empolgou-lhe de novo a cintura e puxou Cecília para um banco de pedra que havia próximo.

Quando tornaram para casa, Helena notou a filha um tanto sobressaltada.

— Aconteceu-te alguma coisa? perguntou-lhe. Parece que te assustaste.

Cecília negou.

— Era do calor naturalmente.

E logo que se achou sozinha, cobriu o rosto com as mãos e desatou a soluçar nervosamente.

Contudo o resto do dia correu em paz, e à tarde arruma­ram-se as cestas e puseram-se todos de novo a caminho para a cidade.

Pedro Ruivo encontrou em casa uma carta tarjada de preto: era a notícia da morte de seu pai. Pouco se impres­sionou, esperava já por isso mesmo, e, como estivesse muito fatigado do passeio do dia, adiou para depois os transportes do seu amor filial; deitou-se, e daí a instantes dormia profun­damente.

Causou no Porto e no Minho grande espanto a toda a gente o saber que o pai de Pedro Ruivo, em vez de deixar ao filho uma boa fortuna, apenas lhe deixara algumas dívidas. D. Helena não o queria acreditar, e só se capacitou da verdade, quando a ouviu narrada entre lágrimas pelo próprio órfão.

— Com que o Sr. ficou inteiramente pobre?! exclamou ela, com um ar que nunca até então lhe vira o futuro genro.

— É verdade! respondeu este, sacudindo muito triste a cabeça; infelizmente, é verdade!...

— Ora essa!... resmungou a professora, pálida de raiva. Há coisas neste mundo!...

— É a sorte, D. Helena... acrescentou o Ruivo, limpan­do os olhos.

— E agora?! interrogou ela.

— Resta a resignação! Eu por mim saberei conformar-me com o destino!

— Mas é que nem todos pensam como o senhor! Há de permitir-me observar-lhe que era do seu dever de cavalheiro prevenir-nos em tempo da desgraça que o ameaçava. Ora essa!

— Mas se eu não sabia de coisa alguma, D. Helena...

— É impossível, senhor!

— Mas se lhe digo que é a verdade, minha senhora?!

— Diga o que quiser... eu não acredito!

— Pois não acredite, exclamou Pedro Ruivo, perdendo a paciência. Ora pílulas!

— Faltar-me ao respeito! bradou Helena, possuída de cóle­ra... Ainda bem que o senhor mostrou as unhas antes do casamento. Olha do que escapamos!

— Sim! agora tenho eu todos os defeitos, mas quando me supunham rico, era "um Santo Antoninho onde te porei!" Pois se não me quiser dar a mão de Cecília, não dê! Só lhe afian­ço é que não serei eu só a perder com isso!...

— Hein?! Que quer dizer na sua?!...

— Não posso dar explicações, minha senhora! Sua filha é quem está mais no caso de esclarecer o assunto...

— Minha filha?! Mas o Sr. graceja, com certeza!

— Pode ser! V. Exa. falará com Cecília. E já agora declaro que não me casarei sem ser eu o requestado! Até logo. Quando precisarem de mim, que me chamem; antes disso não voltarei!

E Pedro Ruivo afastou-se, no firme propósito de não voltar sem ser chamado. Aquele desespero de Helena com a notí­cia de sua pobreza estava previsto há muito tempo.

— Olha se não trato com atividade do negócio!... Acha­va-me a estas horas posto à margem! disse ele consigo, quando se viu na intimidade do seu quartinho de rapaz solteiro.

Entretanto, ao que Helena ouvira de Pedro Ruivo, sobreveio-lhe uma grande febre; aquelas ameaças lhe perturbavam o espírito. A viúva procurou inteirar-se do que havia e, com facilidade, chegou a um resultado. Cecília estava desonrada.

A desesperada mãe não pôde resistir ao golpe, e caiu fulminada por uma terrível congestão cerebral. Nada lhe valeu, nem a dedicação de Cecília, nem os socorros médicos. Expirou no dia seguinte, às duas horas da tarde.

Foi então que Pedro Ruivo se apresentou de novo à órfã, oferecendo-lhe, com um gesto heróico a sua mão de esposo. Cecília recebeu-o entre soluços.

— Ele era a última felicidade que lhe restava!

— Pelo menos farei o possível de merecê-la, Cecília! Amo-a ardentemente e todo meu sonho dourado é possuí-la como esposa!

— Casaremos quanto antes, disse ela; será um casamento de luto, mas assim é necessário! Só ele me poderá salvar!

No dia seguinte, porém, Pedro Ruivo chegou ao conheci­mento de que Helena apenas legara à filha uma pequena nesga de terra herdada de seu pai no Alto Douro.

— Raios me partam! exclamou o Ruivo, quando recebeu esta notícia.

E preparou logo as malas, fugindo no mesmo dia para Lisboa, com a intenção de passar ao Brasil.

Cecília oprimida de desgostos, de remorsos e de sofri­mentos, foi recolhida à casa daquele velho amigo de seu avô, de quem fala o começo deste romance. Aí teve ela ocasião de servir de enfermeira à filha do seu benfeitor, como dissera o conde de S. Francisco a Gregório, quando este se achava detido no palacete da Tijuca.

Mas a desgraça não podia ficar tranqüila: o fruto do crime de Pedro Ruivo teria que patentear-se, mais cedo ou mais tarde, aos olhos de todos, e por conseguinte só na morte ela encontraria refúgio!