Girândola de Amores/XII

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O velho conde de S. Francisco, o pai putativo de Cecília, na ocasião em que se sentiu ir resvalando para a sepultura, estava desacompanhado de sua família legítima e completa­mente desprovido das consolações e dos confortos de qualquer afeto. A ausência das filhas e a desorganização da sua casa, dantes tão metódica e bem dirigida, haviam lhe emborcado no coração esse amargor, espesso e lúgubre, que nos dá, aos últimos dias da existência, um estranho antegosto da morte e nos conduz a sonhar com uma outra vida feita de paz e de esquecimento.

Felizes os que plantam previdentemente na mocidade os colmos com que mais tarde terão de cobrir seus derradeiros dias, e à sombra afetuosa dos quais lhe será permitido abrigar o coração contra os ventos frios da velhice e contra os primei­ros sobressaltos da morte. Desgraçados dos que descem deste mundo sem calor de beijos, que lhes aqueçam as mãos enrege­ladas, e sem ter um peito amigo que lhes recolha o último gemido e a última palavra!

O conde de S. Francisco foi um desses desgraçados. Helena era mãe, mas não era esposa. Só estas sabem ligar heroicamente o seu destino ao destino do pai de seus filhos; só estas sabem resistir às grandes tempestades do lar e às extremas provações do amor. Para morrer abraçado ao navio é preciso ser legítimo comandante: é preciso que a dignidade do seu cargo e a responsabilidade moral da posição o prendam ao teu posto de honra. O falso capitão não está na altura desses sacrifícios e dessas abnegações.

Foi justamente o que sucedeu com Helena. Quando rebentaram as primeiras desavenças no seio da família do amante, ela puxou a filha para si e afastou-se, deixando que o apaixonado velho tragasse, no segredo do seu desespero, as dores lancinantes da soledade.

Vieram logo os padecimentos do corpo, a agravação das enfermidades adormecidas até aí; e o conde caiu prostrado no leito em que tinha de expirar. O filho em Coimbra; as filhas, uma casada e longe com o marido; a outra recolhida ao con­vento; só lhe restavam fâmulos e enfermeiros de aluguel.

Lembrou-se então de escrever a um seu velho amigo, que noutro tempo fizera com ele a campanha contra os franceses. Era um veterano reformado com a patente de coronel, e que há seis anos descansava em terras que possuía no Porto.

Foi um espalhafato a sua chegada ao castelo do conde. Os dois velhos precipitaram-se nos braços um do outro e começaram a chorar como duas crianças. O conde não podia pronunciar palavra; as lágrimas corriam-lhe em borbotão pelas barbas brancas. E, todo trêmulo, a soluçar, humilhado pela nimiedade daquela comoção, sentiu faltarem-lhe as derradei­ras forças e caiu agonizante.

O coronel, estonteado pela situação, maldizendo a idéia de apresentar-se tão de surpresa, procurava consolar o amigo. Pedia-lhe que sossegasse um instante e jurava não abandoná-lo tão cedo.

— Sim! sim, meu velho camarada, preciso de alguém que me ajude a morrer na fé em que me criei! Não te roubarei muito tempo! És o único que ainda vive dos nossos belos tempos da mocidade! Bem dizia eu cá comigo que não faltaria à entrevista da minha morte! Obrigado! obrigado, meu bom amigo!

Mas o coronel pouco tempo teve que ficar ao lado do seu velho camarada: o conde morreu quatro dias depois de chegar ele ao castelo. Assistiram-lhe os sacramentos; o moribundo, após as palavras do confessor, parecia confortado e disposto a deixar o mundo em paz.

Antes porém de morrer, conversou largamente com o amigo a respeito dos seus que deixava:

— Meus filhos legítimos, disse ele, estão abrigados por natureza, têm o que herdar e não lhes faltará lugar na socie­dade. Mas eu tenho uma filha natural, uma filha que adoro e que, apesar da ingratidão com que ela e a mãe me deixaram neste isolamento, não me sai da memória um só instante. Tu já sabes de quem falo! Pois bem; pensa um pouco em Cecília; a infeliz pode algum dia vir a precisar dos teus socorros. Guarda bem estas minhas recomendações! bem sei por que tas faço... Deixo-lhe alguma coisa, mas receio que a mãe não queira que isso aproveite à filha. Por conseguinte, meu velho amigo, segue-a com a tua experiência; é este o único serviço que te imploro para depois da minha morte!

— Descansa, respondeu o coronel; prometo, sob palavra, fazer o que me recomendas!

— Bem! posso então fechar os olhos em paz. Cecília era o meu último cuidado.

— Não te aflijas! Eu velarei pelo seu destino.

— Obrigado! muito obrigado!

E o conde morreu no dia seguinte, repetindo ao coronel as suas recomendações.

Foi desta forma que, por ocasião da morte de Helena e da miserável fuga de Pedro Ruivo, Cecília recebeu em casa a visita do velho coronel.

A figura austera e encanecida do veterano, a calma reso­lução do seu porte marcial, e a singela energia das suas pala­vras, inspiraram a órfã imediata confiança. Ela, porém, não se podia furtar a certa estranheza que lhe causava semelhante visita, principalmente depois de saber que o velho ia resolvido a levá-la para a companhia de sua família. O coronel compreendeu a surpresa da menina e acrescentou:

— Cumpro um dever sagrado, minha filha; seu pai reco­mendou-me que a não desamparasse quando a visse carecedora de algum auxílio. Creio que chegou a ocasião: está órfã e sem arrimo... Cumpre-me ampará-la; serei seu pai de hoje em diante!

Cecília aceitou comovida a generosa mão que se lhe estendia; mas a idéia dolorosa do seu estado perturbava-lhe o espírito e a fazia recear de qualquer conseqüência má de tudo aquilo. Entretanto, que remédio tinha ela senão aceitar de olhos fechados aquele recurso ou voltar então à primitiva idéia do suicídio?...

Mas é tão difícil morrer, pelas próprias mãos, naquela idade!... é tão difícil abandonar a vida, quando ainda temos o coração cheio de ilusões!... Se aceitasse, porém, como suportar a exibição da sua falta?... como patentear o corpo de delito, que mais tarde lhe avultaria nas entranhas? como conseguiria justificar-se de tamanha criminalidade?! Se ao menos pudessem avaliar, julgava a infeliz consigo, quanto nós, as mulheres, somos escravas do coração; quanto a natureza nos fez passivas e crédulas! se pudessem avaliar o modo pelo qual sucumbimos à primeira falta; se soubessem como acredi­tamos no homem que nos assalta o coração pela primeira vez! Mas não! ninguém criminará o sedutor e todos amaldiçoarão a vítima! ninguém se lembrará de que minha culpa vem da minha inocência, da minha própria virgindade e da singela espontaneidade do meu amor! Todos escarnecerão de mim, todos rirão da minha desgraça, só porque não fui tão friamente calculada, tão previdentemente refletida, que soubesse empregar as astúcias e artimanhas necessárias para equilibrar o amor do meu noivo, de modo que este não me fugisse por uma vez desesperançado, nem tampouco me abandonado por haver conseguido já o que desejava. E porque não tive o talento de ser hipócrita, de fazer negaças e de tirar partido da minha mocidade e da minha beleza, hei de passar por uma criatura ruim, por uma mulher de maus instintos, por um ente desprezível e perverso, a quem a sociedade fecha as suas portas!

Mas se assim é, continuava ela a considerar, por que singular capricho criou a natureza o amor com toda a sua cegueira, com toda a sua boa fé e com todos os seus irreme­diáveis perigos?... Se tínhamos de fazer calar todas as vozes interiores, para que então inventaram na natureza outras tantas vozes que às nossas correspondem, e que nos ensinam a desco­brir no pecado o objeto dos nossos primeiros sonhos de mulher?...

E Cecília revoltava-se de antemão contra a injustiça que pressentia à sua espera. Na própria consciência e no próprio coração nada a acusava; ela não sentia apetites de vingança contra ninguém. Se tinha algum desejo, era de perdoar o homem a quem se barateou tão ingenuamente e pedir-lhe que não amaldiçoasse o filho.

Resolveu seguir imediatamente para a casa do coronel.

Morava este retirado da cidade, em uma bela e simples vivenda campestre, na companhia de uma irmã, tão velha como ele, e de uma filha, que era o encanto de seus olhos já amortecidos e o sol da sua longa viuvez.

Chamava-se a moça Margarida. Um sonho de vinte e dois anos: olhos azuis, de uma grande doçura ingênua, cabelos louros, quase sempre enastrados em uma trança solitária que lhe caía singelamente ao comprido das costas.

Contradizia um tanto do seu sorrir triste, de mulher, o doce ar de menina enferma, que obrigava o velho soldado a constantes sobressaltos pela saúde da filha. Receava que ela não tivesse forças para viver: Margarida fora sempre propensa às moléstias pulmonares; em pequenina os médicos a desenga­naram, e, desde então, sua vida era tratada como objeto delicadíssimo que se pode quebrar com o menor abalo. E seria isso o que sem dúvida teria sucedido se, com a viuvez do coronel, não se apresentasse a irmã deste, disposta a servir de mãe a Margarida.

O coronel enviuvara quando a filha tinha apenas cinco anos, e desde então nunca mais D. Germana, sua irmã, os desamparou. Pode-se, por conseguinte, calcular o estado em que ficou o coronel, sabendo, ao chegar à casa, que Germana estava perigosamente enferma, e que Margarida não lhe abandonava a cabeceira e passava em claro noites consecutivas.

Mas não tinha de ficar aí a sua amargura. Dias depois morria a mãe adotiva de Margarida, e esta por sua vez caía seriamente prostrada pela moléstia. Foi então que, de volta dos estudos, apareceu em casa do coronel o conde de S. Fran­cisco. Ia agradecer os últimos obséquios prestados pelo veterano a seu pai. Levava de companheiro um capitão de marinha ainda bastante moço, com quem travara relações no mar e de quem se tornara muito amigo.

O conde ofereceu à irmã bastarda os seus serviços e apresentou-lhe o oficial de marinha com as palavras mais lisonjeiras que encontrou para este. Esse oficial de marinha era o Leão Vermelho.

Tencionavam os dois amigos, uma vez desempenhados da obrigação delicada que os levara ali, voltar imediatamente, cada um para o seu destino. Mas assim não sucedeu. Os desvelos de Cecília à cabeceira de Margarida, o modo cari­nhoso, a abnegação, o amor com que ela disputava a amiga às garras da morte, foram laços que os seduziram e prenderam.

Cecília com efeito havia, desde logo, tomado muito interesse pela enferma. Uma certa afinidade de temperamentos, e como que uma estranha necessidade de padecer pelos outros, a jungiam à cabeceira de Margarida. Suas dores escondidas, talvez já o seu arrependimento de ter sido tão crédula e tão fraca, pediam-lhe aqueles trabalhos penosos, como o remorso pede ao criminoso a dura expiação dos seus delitos.

A vítima de Pedro Ruivo comprazia-se naquela dedicação; achava prazer, conforto, no martírio em que se impusera por um reclamo da sua consciência. E dessa forma não abando­nava um só instante a câmara da enferma, pronta sempre a correr ao seu mais leve gemido e a sustentá-la nos braços horas esquecidas, sempre risonha, sempre meiga, sempre consoladora.

Quando a doente, um mês depois, principiou a convales­cer, adorava a sua enfermeira. O conde de S. Francisco e o seu amigo da marinha foram encontrá-las nessa situação. Margarida acabava de erguer-se pelo braço de Cecília.

Principiou então uma nova época para todos eles. Os dois rapazes se tinham apaixonado pelas duas belas amigas. O conde pretendia a filha do coronel e o oficial a outra.

Mas Cecília ignorava tudo isso. Uma tarde Margarida tomou-lhe as mãos e disse-lhe que tinha um pedido a fazer-lhe.

— Só um?... perguntou aquela, beijando-lhe na face.

— Só, porém tão sério, que vale por muitos...

— Que é?

— É o pedido de tua mão...

— De minha mão? exclamou Cecília, empalidecendo.

— Sim, e tu já sabes para quem, disfarçada!...

— Para o Leão Vermelho!...

— Justamente; para esse rapaz, que tanto estima teu irmão, quanto te adora...

Cecília não respondeu e deixou-se possuir de um fundo embaraço. A outra insistiu, dizendo-lhe, entre afagos, as vantagens que poderiam vir desse casamento.

Começou então para a filha de Helena uma grande luta interior. Seu caráter leal e generoso revoltara-se contra a mentira e a falsidade; mas o perigo iminente da sua falsa posição, a vergonha que a esperava, sobressalto em que ela vivia, acabaram por lhe sufocar os bons impulsos.

Entretanto Leão Vermelho tinha de partir e precisava de uma resposta definitiva.

— É muito cedo! interveio o coronel, lembrando que Cecília apenas o conhecia havia poucos dias.

— Estas coisas, ou se resolvem assim ou se não resolvem nunca, respondeu o oficial. Tenho muito em breve de partir para uma viagem longa, talvez a última que faça, e desejo saber se vou feliz e casado, ou se vou triste e consumido pelas saudades que daqui levo!

Cecília concordou finalmente. Daí a dois dias se casava com Leão Vermelho e seguiam juntos.

A sua ausência causou enorme tristeza em casa do coronel, mas o conde procurava suavizá-la do melhor modo possível, o que em grande parte conseguiu.

O médico aconselhara a Margarida uma viagem a bons climas antes do casamento. Partiram os três, os noivos e o coronel, dentro de quinze dias. Atravessaram a Espanha, passaram-se depois a Nice, foram a Nápoles e à Sicília. De volta a Portugal recolheram-se ao antigo castelo da família do conde; reuniram-se então os parentes deste e celebrou-se afinal o casamento com muita pompa e com muita alegria.

Entretanto, Leão Vermelho voltava ao Porto com a mulher, que já se achava em adiantado estado de gravidez.

O comandante, como vimos, tratou então de obter a sua reforma, e com ela um lugar que lhe deixasse gozar em terra firme o descanso e a felicidade do lar doméstico.

Conseguiu, enfim, realizar esse desejo, mas por outro lado principiou a sofrer na sua vida íntima com Cecília. A mulher parecia-lhe estranhamente reservada; dir-se-ia dissi­mular algum segredo que a fazia sofrer constantemente. Embalde, porém, o comandante a espreitou por muito tempo; embalde procurara apanhar-lhe um gesto, uma palavra, qual­quer coisa, que lhe indicasse a ponta do mistério. Nada! Um dia, afinal, surpreendeu-a a fazer, com muito empenho, uma carta e, na ocasião em que, pé ante pé, foi espiar o que ela escrevia, Cecília soltou um grito, cobriu o papel com ambas as mãos e empalideceu.

— Deixe-me ver esta carta! disse Leão Vermelho seca­mente.

Cecília respondeu que tinha vergonha de mostrá-la; era uma futilidade, uma tolice!...

— Não faz mal! quero ver!

— Não... objetou a mulher, procurando compor um gesto de meiguice e de sangue frio.

— Pior! exclamou o comandante, encolerizando-se. Dê-me isso por bem, se não quiser dar à força!

— Pois aí a tens!

E Cecília sacudiu os ombros, resignadamente.

Leão Vermelho leu a carta com visíveis sinais de cólera na fisionomia. Os olhos parecia crescerem-lhe debaixo das sobrancelhas crespas e negras, e os lábios contraíam-se-lhe, mostrando cada vez mais os dentes fuliginosos de tabaco.

— A quem era isto dirigido?! perguntou ele, cerrando as pálpebras e atravessando a mulher com um olhar frio e pene­trante.

— Para que o queres tu saber?! Não vês, pelo que está escrito, a digna posição que tomava eu para quem me dirigia?.

— Nada tenho a ver com isso! Quero saber para quem era esta carta!

— Mas que lucras tu em saber a quem era ela dirigida?!

— Mau! responda à minha pergunta e guarde as consi­derações para depois!...

— Pois então declaro que te não digo coisa alguma!

Leão Vermelho segurou Cecília pelo braço e repetiu a sua pergunta, mas ainda assim nenhuma resposta obteve.

— Bem! disse ele, saberei por outro lado!

Todavia a carta, longe de depor contra a mulher, dizia o seguinte:

"Caro senhor. — Se como diz, é cavalheiro, peço-lhe que não insista na sua perseguição; se é meu amigo, como também o diz, poupe-me a inquietação a que me obrigam os seus mal-entendidos protestos de amor. Lembre-se de que sou casada e procuro todos os dias esquecer-me do passado, desse passado que me acabrunha, não pelo remorso, mas pelo desgosto e pela aflição. Já sofri em demasia por sua causa, pague-me agora de tudo isso, deixando-me em paz; não queira aumentar os motivos de queixas que tenho contra o Sr. Se supõe que algum laço ainda nos une, está completamente iludido, porque meu..."

Leão Vermelho guardou a carta consigo, e principiou desde então a desconfiar de Cecília. Foi por esse tempo que lhe apareceram as ameaças de perder o emprego e que ele se viu obrigado a seguir para Lisboa, a ir entender-se com o ministro da marinha.

Sabe já o leitor qual foi o resultado da sua viagem e da má vontade do governo português. Leão Vermelho demitiu-se e, depois de ir ter com a mulher e o filho, resolveu dar velas para o Brasil em um navio mercante. Sabe também que ele, na ocasião de seguir, já no beliche, fez ao seu fiel servo reco­mendações especiais a respeito de Cecília e lhe entregou uma boa navalha de marujo.

O marinheiro, como vimos depois, ficou deveras impres­sionado pelas palavras do comandante. Não lhe saíam elas da cabeça; parecia-lhe estar ainda a ouvir Leão Vermelho dizer-lhe com a voz engrossada pela comoção: "Não te des­cuides, meu amigo! o horizonte anda turvo; cheira-me que teremos borrasca! Olho na bússola e mão no leme! Se desconfiares da senhora, comunica-me qualquer sinal, e, se descobrires coisa série, já sabes, não precisas esperar por mim... dá-lhe duas naifadas e manda-a de presente aos melros!"

Tubarão não queria ligar muita importância às suspeitas do comandante, mas a cena do jardim, aquela entrevista fora de horas com um vulto mais que suspeito, vieram justificar no ânimo do bom marinheiro a recomendação de Leão Vermelho.

Quem o havia de acreditar?... dizia ele consigo. Uma pessoa tão séria e tão meiga, que era mesmo a imagem de Nossa Senhora do Socorro!... Ah! mas, tanto ela como aquele maldito papa-figos, que tenham paciência; se os pilho, trabalha a faca!

E nunca mais se descuidou, a respeito da patroa, nas suas observações e na sua espionagem.

Entretanto Cecília não era absolutamente culpada do que­ presenciara Tubarão: Pedro Ruivo saíra do Porto com o intento de seguir para o Brasil, como dissemos, mas, chegando a Lisboa, recolheu-se à casa de uma família que fora muito da amizade de seu pai, e aí se deixou ficar ao saber que Cecília afinal havia casado, e que de por conseguinte não seria perseguido. De volta ao Porto, dois anos depois daqueles acontecimentos, Pedro Ruivo, certa manhã em que passeava pelo jardim das Virtudes, encontrou Cecília acompanhada de uma bela criança loura.

Ela não o viu; ele porém reconheceu-a logo e começou de segui-la a distância.

Cecília, depois de fazer o seu passeio, recolheu-se a casa, e Pedro Ruivo ficou sabendo ao certo onde residia a sua noiva de outro tempo.

— E não é que o demônio da rapariga está ainda mais bonita do que era?!... considerou ele ao voltar pelo mesmo caminho. E, possuído de estranhas comoções, principiou desde então a sentir-se pender para Cecília, por esse estímulo traiçoeiro que aos homens comuns faz desejar as coisas proibi­das. Ela nunca lhe pareceu tão desejável, tão bela, tão digna de ser gozada. Dantes a extrema inocência, a franca confis­são do seu amor sem cálculos e sem artifícios, a candura de suas palavras quase infantis, faziam de Cecília um tesouro tão fácil de alcançar, que Pedro Ruivo nunca se lembrara de calcular-lhe o valor.

Procurou um pretexto para poder aproximar-se dela. Mas a coisa não seria assim tão fácil, pensou ele. Cecília devia guardar fundo ressentimento da sua desgraça; não era natural que a presença de Pedro Ruivo lhe fosse muito agradável. Foi então que o miserável se lembrou do filho.

— Ora esta! exclamou, abrindo os braços com entusiasmo; tenho o melhor condutor que se pode desejar e não me lem­brava disso!.. . Nem há de ser preciso grande esforço; ela será talvez até a mais interessada em me tornar a ver!

E, certo de que o filho era um instrumento seguro para os seus projetos, escreveu uma extensa carta a Cecília, na qual procurava pintar o arrependimento que o pungia nessa ocasião, as saudades que o arrebatavam para ela, e o desejo apaixonado de ver e de beijar o seu querido filhinho. "Contento-me com pouco’ dizia ele; desejo apenas, uma outra vez, contemplar o inocente fruto dos nossos amores infelizes. Sei que deve haver no seu coração, Cecília, muito ressaibo de desgosto mas, se soubesse quanto tenho sofrido por amor disso, perdoa­va-me tudo! Oh! sofri muito! os remorsos não me desampa­raram um só instante o coração. Chorei muita lágrima! amarguei muito soluço! Entretanto era preciso resignar-me ao destino sombrio, que eu mesmo preparara para mim. Fui culpado! fui muito culpado, mas o arrependimento foi maior que a culpa. Não lhe peço que me ame; não lhe peço até que me perdoe, contanto que, se ainda existe no seu coração alguma coisa daquela ternura compassiva de outrora; se não se apagaram de todo aqueles piedosos sentimentos, que faziam da senhora uma santa e que depois fizeram de mim um mártir pelo remorso de não a ter adorado como devia e de não a ter merecido em castigo da minha maldade e da minha cegueira; se ainda existe no seu coração algum resíduo dessas virtudes, permita, por quem é, permita, pelo amor que tem naturalmente ao lindo ser que lhe saiu das entranhas, que eu abrace meu pobre filhinho! Estou convencido de que as lágrimas de um pai desgraçado não terão em resposta a indiferença e o desprezo... Oh! só agora acredito na cólera divina!"

Seguiam-se ainda algumas considerações sobre a fatali­dade, sobre o destino e outros pretextos de que se costumam servir os sedutores malandros, terminando a carta por um formidável "Adeus", com ponto de admiração e reticências.

Pedro Ruivo contava seguro o efeito daquele chorrilho de falsidades.

— Em lendo isto, calculava ele, as lágrimas saltam-lhe dos olhos, e Cecília abre-me logo os braços. E, se assim não fosse, para que diabo servia então manter-se a gente a apren­der um bocado de retórica?...

Mas enganou-se: Cecília leu a carta sem a menor comoção e não deu resposta.

Depois de cinco dias encontraram-se de novo na rua:

Desta vez o Ruivo não esperou que ela o lobrigasse, foi ao seu encontro; mas sofreu nova decepção, porque tinha como certo o sobressalto e o espanto de Cecília, quando esta aliás lhe falou sem se perturbar absolutamente.

— Que frieza!... disse consigo o velhaco, mordido no seu amor-próprio.

E vaidosamente procurou descobrir naquela própria indi­ferença um certo cunho de afetação, que traduzia o medo feito por ele a Cecília.

— Não quis então responder à minha carta?...

— Não, senhor.

— E por quê?...

— Porque assim o entendi.

— Não consente então que eu de vez em quando abrace esta criança?...

— Não, e por quê?

— Por quê?! Ora essa! porque é meu filho!

— O senhor está gracejando com certeza!...

— Cecília! nega então que eu seja pai de seu filho?!

— Com licença.

E a senhora afastou-se muito tranqüilamente.

Pedro Ruivo ficou deveras pasmado com aquela indi­ferença.

— Além de tudo, pensou ele, gesticulando sozinho; tem a finória o cinismo de negar que sou eu o pai do pequeno!... Ora esta! Confesso que não a supunha tão matreira!...

E depois de cogitar um plano de ataque, bateu com a mão na testa, e exclamou:

— Ah! Tenho uma idéia!