Girândola de Amores/XXIX

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A casa da festança era em Catumbi, pouco adiante do lugar até onde mais tarde havia de chegar a linha de bondes.

Um casarão antigo e abafadiço, com janelas de peito e dois degraus de cantaria à porta da rua.

Para se chegar lá, subia-se uma pequena ladeira à esquerda, enquanto se deixava à direita um correr de casas, que lá se iam estendendo, até confinarem com o pardacento e melan­cólico muro do cemitério de S. Francisco de Paulo.

Seriam quatro horas da tarde quando os dois se apearam do carro que os conduzia. O padre Beleza deu o braço a Gregório e seguiram.

— É ali! disse ele, apontando para o casarão. O outro olhou indiferentemente na direção indicada pelo companheiro.

O tempo estava duvidoso; parecia vir chuva. O céu cor de pérola, apenas em alguns pontos mais vizinhos do horizonte abria rasgões de uma claridade desbotada e brancacenta.

Os montes de Santa Teresa, atufados na verdura felpuda e trêmula, enchiam-se de sombra. Palmeiras, destacadas e soli­tárias, abriam para o céu, aqui e ali, as suas estrelas irrequietas e murmurosas. Toda a natureza se ressentia de um triste aspecto de recolhimento; só os carrapateiros quebravam a uni­formidade melancólica da verdura com o seu verde Paris, cru e alegre. Em vários lugares, por entre o relvejar do capim, aparecia a custo uma nesga de terra avermelhada, cor de carne em conserva. Mais para o sopé dos montes, casinhas, pintadas de claro, apareciam no sombrio das matas com os ângulos das suas fachadas de madeira.

Não havia raios de sol, nem sombras projetadas no chão. As montanhas desenhavam minuciosamente no fundo plúmbeo do céu o seu contorno acidentado e guarnecido de árvores.

Gregório e o companheiro acabavam de entrar na casa de batizado.

Veio recebê-los à porta um sujeito gordo e muito alto, cheio de vermelhidão, olhos claros, azulíssimos, cara raspada, pouco cabelo na cabeça e o pouco que havia quase todo branco. Esse sujeito tocava trompa nas orquestras de teatros e, pelo entrudo, trabalhava de enderecista para as sociedades carna­valescas. Era homem popular, prezava-se da estima de algu­mas pessoas de gravata lavada, mas não desdenhava a amizade dos colegas.

— Olá! olá! Viva o nosso reverendo padre Beleza! excla­mou ele. E puxou familiarmente o padre para o corredor, enquanto esse lhe apresentava Gregório. Vão subindo! vão subindo! Aqui não se faz cerimônias! Estejam em sua casa! A troça está toda na dança lá em cima... Vão entrando!

Ouvia-se com efeito barulho de música.

Gregório, ao chegar à sala, sentiu-se constrangido. Não conhecia aquele meio. Nunca havia penetrado em casa de uma família de artistas brasileiros; ignorava da existência desse gênero de pessoas, incontestavelmente dignas, mas entre as quais a pilhéria decotada tem bom curso, a dança toma um caráter assombroso de cancã, e as mulheres discutiam simultaneamente sobre tudo, desde os assuntos mais familiares e mais castos até às últimas extravagâncias da meretriz que estiver na moda.

Ninguém todavia fala tanto em conveniências, e ninguém se esforça tanto para cumprir com os rigores da hospitalidade. As pequenas obrigações da cortesia, nessas casas, tomam às vezes as proporções de verdadeiros suplícios — obrigam-nos a comer e a beber sobre posse. Não nos consentem rejeitar nada do que nos oferecem. Há uma febre terrível de obsequiar.

Gregório todavia passara quase despercebido, porque um acontecimento prendia a atenção dos que não dançavam. Era a chegada do pequenino, que acabavam de batizar, e mais a dos padrinhos e dos convidados que o acompanharam à igreja. Havia reboliço por toda a casa.

Em torno do bebê forma-se um grupo enorme de homens e mulheres, sôfregos por fazerem festinhas ao pequenino herói da festa. Este toscanejava babando-se, a resmungar, fatigado pela cerimônia do batizado.

Daí a pouco chamaram em gritos para a mesa.

Houve então um rumor ainda mais alegre, e as pilhérias da ocasião choveram de todos os lados.

Entretanto, Gregório era nesse momento apresentado à dona da casa pelo padre, com exagerados rasgos de cortesia.

Sobre a mesa enorme, que se havia arranjado especial­mente para aquela ocasião e que parecia entalada na estreiteza da sala, destacavam-se as grandes peças de forno. Via-se o leitão inteiro com os dentes à mostra e os olhos substituídos por azeitonas, ao lado o peru empertigava o peito recheado; tortas, do tamanho da aba do chapéu do padre Beleza, recamavam a branca toalha de fustão. As garrafas cintilavam ale­gremente; liam-se vistosos rótulos de Bordeaux, Porto e desco­briam-se garrafas de vinho branco, cheias de Colares e vinho virgem. As compoteiras de doce de caju, abacaxi, e laranja, jaziam meio escondidas nos tinhorões dos grandes jarros de porcelana. Os quartos de carneiro, as galinhas assadas e os pastelões esperavam resignadamente a hora do ataque. Um cheiro farto e gorduroso de comida enchia o ambiente.

A dona da casa disse em voz alta a Gregório que se fosse assentando à mesa. Ali não havia cerimônia! Ela, como quase todos os atores antigos, tinha o costume de falar sempre em voz alta.

Gregório assentou-se.

As mulheres olharam logo para ele com interesse. O seu pequeno rosto branco embelezado de frescura e de mocidade, sobressaía ali, como uma coisa rara e bem trabalhada. O rapaz fazia esforços supremos envergonhado da natural distinção das suas maneiras.

Os convidados não cabiam todos à mesa; Gregório er­gueu-se duas vezes para oferecer o seu lugar, mas de ambas o obrigaram a ficar assentado, empurrando-o pelos ombros. Sentia-se ele cada vez mais constrangido no meio daquela gente mesclada e ruidosa; fusão de família e boêmia, argamassa de sorrisos discretos, olhares pundonorosos, gestos cheios de escrúpulo e amplos movimentos de caixa de teatro misturados com frases de botequim e pilhérias de sociedade carnavalesca.

Luzia Pereira, a dona da casa, apesar de idosa, ainda mos­trava ter sido bonitona na sua época.

Fora atriz por muitos anos, enviuvara de um ator do tempo de João Caetano e vivera sempre entre gente de teatro. Era em geral estimada como mulher honesta e querida por muitas famílias do Rio de Janeiro.

A gordura desformara-lhe um pouco os membros e a fazia parecer mais baixa e menos elegante; mas os olhos brilhavam ainda com o fulgor dos outros tempos, e os lábios conservavam o fino sorriso espiritual, com que ela arrebatara as platéias de 1840.

Luzia Pereira era tia legítima da nossa bem conhecida Júlia Guterres, que representava uma das principais figuras do batizado.

A atmosfera tornava-se mais e mais abafada. O calor, anunciativo da tempestade que se formava lá fora, quase que não consentia no agrupamento dos comensais naquela sala estreita e coagida pelo teto. Das janelas, abertas sobre o quin­tal, não entrava o menor sopro de ar novo; as luzes do petróleo agravavam a situação.

Gregório desfazia-se em finezas com Júlia Guterres, que lhe ficara ao lado direito, mas impacientava-se por sair daquele forno.

Principiaram a comer. Não havia método no jantar; algu­mas pessoas iam logo se servindo dos assados antes de tudo; outras tomavam à sopa os vinhos da sobremesa. Mas todos os copos se esvaziavam alegremente. Foi preciso fechar as janelas porque começavam a cair as primeiras gotas do aguaceiro, que lá fora trovejava já sobre as montanhas.

Redobrou então o calor. Um sujeito gordo erguera-se, pedindo que o acompanhassem em um brinde a uma pessoa, que se achava presente, muito distinta e digna de todas as considerações.

Fez-se logo um respeitoso silêncio, e o orador declarou que se referia a D. Luzia Pereira. Seguiu-se uma enfiada de elogios, e os hurras rebentaram de todos os lados.

Desde então os brindes apareciam sem intervalo. Os comensais erguiam-se a dar vivas, e estendiam o braços, ofere­cendo os copos aos vizinhos, para tocar.

Ainda não estava terminado o jantar, quando Gregório pediu licença e se retirou ofegante para a sala de visitas.

A chuva percutia com força nas vidraças e no telhado. O rapaz assentou-se no canapé e ficou a olhar para as fotografias suspensas da parede.

Lá estava o João Caetano, o Martinho, o Costa, e outros contemporâneos. Por um álbum, que Gregório se pôs a folhear, via-se que era enorme a família da Luzia Pereira. Algumas filhas e netos estavam presentes à festa.

Terminada a primeira mesa, assentaram-se os que ainda não haviam jantado, e a sala, onde estava Gregório, encheu-se logo de pessoas a palitarem os dentes.

Em uma alcova contígua, dez rapazes preparavam estantes de músicas e acendiam velas. Pouco depois, cada um desses dez tocavam o seu instrumento de sopro, e um grande barulho metálico, ensurdecedor, encheu totalmente a sala, impedindo qualquer conversa.

Era uma polca, composta por um dos músicos e oferecida ao pequeno que se batizara naquele dia.

Gregório foi obrigado a dançar, escolheu Júlia Guterres. Ela deixara-se conduzir com certo desprendimento gracioso. Era louca pela dança.

Quando acabou a música, houve uma carga de vivas ao autor, vivas ao batizado, vivas à dona casa. Abriram-se gar­rafas de cerveja nacional, e os copos espalharam-se por todos os convidados.

Gregório sentia-se ir agitando pouco a pouco: tudo aquilo começava a perturbá-lo; a música, o ar quente, os perfumes de Júlia, produziam-lhe vertigens e chamavam-lhe o sangue à cabeça. O padre Beleza não tinha um momento de descanso, ria, saltava, gritava fazendo troças, pregando caçoadas às velhas, abraçando as mulheres, pisando de propósito os homens e rebolando na dança. Todos lhe achavam graça.

Entretanto Júlia, depois que dançou a segunda vez com Gregório, lhe pediu que não reparasse naquela desordem: as festas em casa da tia eram sempre assim... Não havia meio de obter certa seriedade! Ela ia ali, porque a tia era o único parente a que estimava deveras no mundo, mas fazia com isso um verdadeiro sacrifício; aquilo era uma gente levada do diabo! Em seguida começaram a falar a respeito de Olímpia, a princípio por meias palavras, depois abertamente. A viúva sabia muita coisa que lhe contara a vizinha.

— Gregório não havia procedido bem...

— A culpa foi só ela, justificou-se o rapaz; Olímpia se quisesse teria feito de mim um escravo! Eu não pensava em mais nada que não fosse nela...

— E ainda hoje, observou a outra, pelo entusiasmo com que diz isso, percebe-se que...

— Qual! respondeu ele, sacudindo os ombros. Está tudo acabado!

— Ela, porém, ainda o estima muito!...

— Não sei! É verdade que a mulher só ama quando o homem amado a despreza...

— Isso são histórias! contradisse Júlia. O senhor, se não gosta mais dela, é porque gosta de outra!...

— Juro-lhe que não! afirmou vivamente Gregório, lançando sobre a viúva um olhar que era já um programa.

Ela havia compreendido perfeitamente o efeito que pro­duzia no rapaz, e não procurou destruí-lo. As mulheres têm sempre um gostinho muito particular em possuir um homem amado pelas outras.

Quando, às seis horas da manhã, dissolvia-se a festa, e cada um procurava às tontas o seu chapéu e a sua bengala, Júlia e Gregório invadiram um pequeno quarto que ficava ao lado da varanda e, na febre de achar os chapéus, seguraram duas vezes por engano as mãos um do outro e, por estar o quarto ainda escuro, cremos que os seus lábios também se esbarraram.

Gregório saiu palpitante de esperanças.

O diabo era a vizinhança de Olímpia e o fato de freqüentar esta a casa da viúva. Oh! mas tudo se haveria de arranjar. Gregório estava muito satisfeito com a sua nova conquista: notava em Júlia certa graça desdenhosa e satânica, um modo petulante de dizer liberdades, uma sem-cerimônia peculiar às atrizes, uma espécie de encantadora malignidade, que a filha do comendador nunca possuíra.

E já no dia seguinte principiou ele a formar o seu plano de batalha. Fez-lhe uma visita, mas a viúva, muito ao con­trário do que esperava o assaltante, recebeu-o friamente e não insistiu para que se demorasse.

Foi a primeira esporada. Gregório saltou. Depois da faísca, a explosão seria fatal.

Principiou a persegui-la por toda a parte, a escrever-lhe cartas apaixonadas, a pedir-lhe ternura por amor de Deus.

Nesse tempo morava ele em Santa Teresa.

Uma noite, mal havia chegado à casa, quando sentiu parar à porta uma carruagem e logo em seguida alguém que subia apressadamente a escada.

Era Olímpia. Gregório a reconheceu imediatamente e fê-la entrar.

Vinha ofegante, pálida de raiva, com a fisionomia endu­recida por qualquer grande contrariedade.

Era a primeira vez que se animava a tanto; nunca havia penetrado em casa de um rapaz. De sorte que, logo depois dos primeiros passos, toda a energia que ela trazia engatilhada para fulminar o pérfido amante, rebentou em soluços.

Gregório correu a socorrê-la; foi repelido com um murro.

— Deixa-me! exclamou ela. E tirou da algibeira uma das ultimas cartas dirigidas por ele à viúva.

— Você é um infame!

Gregório estava perplexo e achava tudo aquilo muito estranho. Havia já seis meses que ele se não entendia com Olímpia. Ela, da última vez em que estiveram juntos, tratara-o mal... Que diabo queria então tudo aquilo dizer??... Por­ventura era ele casado para ter de dar contas dos seus atos!? Se escrevia cartas era porque assim o entendia! Ora essa!

Olímpia não teve uma palavra para lhe opor. Gregório nunca a tratara daquele modo. Até aí sempre lhe dispensara delicadeza e consideração.

— A senhora é que fez muito mal em vir cá! disse ele, pas­seando agitado pelo quarto. Não sei o que a autoriza a supor que ainda existe alguma coisa entre nós dois!

— Tem razão! respondeu Olímpia, afastando-se, na espe­rança de que ele a chamasse.

Mas Gregório contentou-se em fazer um gesto de des­pedida.

Ela, assim que se convenceu de que o amante não a ia buscar, voltou sorrindo humildemente.

Já não chorava, nem parecia contrariada.

Quando chegou junto de Gregório, atirou-se-lhe nos braços e principiou a soluçar com a cabeça pousada no colo do rapaz.

Ele, comovido, beijou-a na face.

As pazes estavam feitas.