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Girândola de Amores/XXV

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O comendador levantou-se da moléstia pelos braços da filha e da esposa. Olímpia havia triunfado: o pobre doente consentira em receber de novo a leviana. Mas, ah! nunca mais lhe dispensou a mesma ternura dos outros tempos; tratava-a agora com cerimoniosa indiferença, quase com desprezo; apenas a suportava por condescendência à filha que, desde logo, se convertera na sua única preocupação e no seu único afeto. Não gostava até que lhe falassem da mulher, poucas vezes a via e, quando se encontravam juntos à mesa, não trocavam entre si sequer um olhar.

Ela, entretanto, muito se transformara depois da partida do cúmplice. Já não ostentava os mesmos gostos e as mesmas inclinações; parecia indiferente às festas e aos passeios; não caprichava na escolha das roupas e saía poucas vezes de casa. Vivia triste, concentrada; estava muito mais magra, porém apa­rentemente resignada. Ninguém lhe ouvia uma queixa contra o marido; agora ao contrário, parecia procurar descobrir-lhe as intenções, as mais pequeninas vontades, para correr a satis­fazê-las; adivinhava-lhe os desejos, armava-lhe boas surpresas e mostrava-se para com ele de uma solicitude e de uma ama­bilidade de que nunca dera exemplo em outras épocas.

Mas o comendador afetava não atentar para isso; recebia os obséquios que vinham da mulher com a mesma indiferença com que ouvira falar de qualquer assunto que absolutamente lhe não dissesse respeito. Não a contrariava, não desdizia, não a aconselhava, se ela quisesse sair, que saísse; se quisesse ficar em casa, que ficasse; se quisesse morrer, que morresse! Para ele era tudo a mesma coisa; contanto que lhe deixassem a sua querida, a sua adorada Olímpia.

Para esta, sim, tinha o comendador bons sorrisos, palavras afetuosas e rasgos de amizade. Sempre que entrava em casa perguntava logo por ela e nunca saía sem receber um beijo dos seus lábios finos e perfumados.

Assim se passaram seis meses.

Um dia Olímpia comunicou-lhe que a madrasta estava doente.

— Sim? resmungou o pai. E continuou a falar do assunto de que tratava.

— Oh! disse a menina. Há dois dias!... Pois papai não vê que ela não tem vindo à mesa?...

— Não reparei, afirmou o velho secamente.

— E por que não lhe vai fazer uma visita?... perguntou Olímpia, ameigando-o. Ela havia de estimar tanto, coitada!...

— Sim, sim, eu hei de lá ir, prometeu ele para contentar a filha.

Mas três dias se passaram depois da promessa, sem que o comendador aparecesse no quarto da mulher.

— Antes me castigasse de outro modo! disse esta à enteada em continuação a uma conversa. Nunca pensei que teu pai fosse tão pacificamente mau! Estou arrependida de ter aqui voltado, crê!

Olímpia não se animou a objetar uma palavra em defesa do comendador.

— Sei que mereço censura, acrescentou a enferma, com a voz fraca e infeliz; sei que cometi uma grande falta, mas a minha conduta de então para cá devia obter o seu perdão. Ele vê perfeitamente que estou bem arrependida, por que então nesse caso não me trata de outro modo?... Oh! eu me sinto triste com a idéia da sua vingança, e, todavia, precisava agora, mais que nunca, de desvelos e de amparo... Estou doente, sinto que estou muito mal, por que pois ele me não vem ver?... por que não me vem dar duas palavras de piedade?... Isso não seria também tão grande sacrifício... seria uma simples obra de misericórdia...

E, depois de fitar por algum tempo um mesmo ponto, com as mãos entre as de Olímpia, disse-lhe sem transição:

— Nunca te cases senão com um homem de idade pro­porcionada à tua... Não cometas nunca semelhante levian­dade! Por melhor que seja o teu caráter, por mais perfeito que seja o teu coração, por mais senhora que fores do teu temperamento, dos teus desejos e das tuas aspirações, nunca darás uma esposa perfeita, se ao teu casamento não presidirem, o amor em primeiro lugar, depois a harmonia completa de idades, de espírito, de bens e de educação. Não calculas o inferno em que vive uma mulher moça casada com um velho! Não é simplesmente o fato de lhe não dar o marido o amor de que ela precisa para viver, mas também a desgraçada circunstância de que esse casamento a inutiliza de todo para o amor de qualquer outro homem!

Olímpia ouvia as palavras da madrasta com os olhos muito abertos e a fisionomia transbordante de curiosidade. Era a primeira vez que Teresa se queixava do comendador e deixava transparecer francamente o azedume dos seus des­gostos.

— O amante, prosseguiu a madrasta, também não satisfaz, porque não nos pode dar o que constitui a nossa melhor feli­cidade em questões de amor. O marido velho está em uma extremidade, o amante está na outra; não podem atingir ao meio termo, o centro calmo de um amor legítimo, digno e completo, que é onde encontramos a verdadeira ventura, o gozo plácido e duradouro da existência. Só um marido moço, amigo, com o seu destino ligado ao nosso, a sua dignidade entrelaçada com a nossa dignidade, pode colocar-se nesse meio termo ideal. É preciso que os dois caminhem de mãos dadas para a velhice, unidos, seguros; o seu amor deve ir custodiado, como um perfume sutil e precioso que se pode derramar pelo caminho. E isso só se consegue com o casamento proporcio­nado. Ao contrário, no melhor da viagem, um deixará o outro no meio da estrada. O amante não pode sequer compreender o valor dessa afeição solidária, útil e sem transportes; ele nada arrisca, nada compromete no seu amor, para desejar conser­vá-lo puro e digno. A idéia de que o marido consiga agradar à mulher com as suas ternuras, é o bastante para levá-lo a imaginar meios e modos de suplantar o rival e, como o jogador que arrisca sobre a mesa os capitais alheios, comete o que o marido nunca teria ânimo de fazer. O que vier é lucro! Por outro lado, as circunstâncias que o trazem afastado da amante, lhe facultam acumular por um mês, dois, e às vezes por mais tempo, a porção de ternura que o marido vai diariamente dis­pensando à mulher em doses pequenas; de sorte que, na ocasião de se apresentar, gasta brilhantemente, em uma só entrevista, tudo o que o outro consome durante um prazo longo. As mulheres, em geral, deixam-se iludir com isso e supõem o amante muito mais amoroso que o marido; não se lembram, as desmioladas, que só o fogo lento é suscetível de duração. O amante tem chama periódica como os vulcões; o marido conserva constantemente aceso o modesto braseiro do lar, o lume da sua casa.

Teresa acrescentou depois:

— Não te cases com um velho, minha querida Olímpia; mas, se porventura vier a suceder-te tamanha desgraça, nunca procures remediar esse mal com o mal muito maior de adotares um amante. O homem que é capaz de aceitar semelhante papel, não é digno da nossa menor estima, porque o fato de ser amante de uma mulher casada já é prova irrecusável de deslealdade e de falta de caráter...

Nisto foi interrompida pelo Dr. Roberto que vinha visitá-la.

O médico achou-a mais abatida e gravemente pior, segundo o que disse depois Olímpia.

O comendador recebeu essa notícia sem lhe dar a menor importância. E quando, à noite, Olímpia insistiu com ele para que fosse fazer uma visita à Teresa, o velho respondeu aspera­mente que não, esquecendo-se por um instante do modo cari­nhoso por que costumava tratar a filha.

Dois dias depois o Dr. Roberto declarou que Teresa pre­cisava mudar de ares; e a enferma mudou-se para um hotel que se acabava de abrir no morro da santa de seu nome. Foi só; o marido não a quis acompanhar.

Olímpia iria ter com ela de vez em quando.

O comendador mostrava-se cada vez mais diferente; toda­via não pôde esconder o abalo que lhe causou a figura trans­formada da mulher, quando a viu aparecer, pelo braço de Olímpia e de uma escrava, para tomar o carro.

Ele não a teria reconhecido em outro lugar. Estava completamente desfeita; os olhos mortos, a pele de uma pa­lidez cadavérica, o ar cansado e aflito, os cabelos embaraçados e ressequidos pela febre. Não podia quase andar, arrastava os pés inchados, e gemia, a tomar respiração com muita dificuldade.

Ao passar perto do marido, ela o cumprimentou, procu­rando dificilmente transformar a expressão agoniada do rosto em um sorriso de amabilidade, mas teve logo de cortar o sorriso com um gemido doloroso.

O comendador avançou automaticamente dois passos e procurou ajudá-la.

— Não se incomode! murmurou ela. Eu vou bem!...

E continuou a manquejar, gemendo ofegante.

Nessa ocasião chegava um caixeiro da casa do Figueiredo, que o comendador mandara pedir para acompanhar Teresa ao hotel.

Era o João Rosa; teria nesse tempo uns catorze ou quinze anos. Já denunciava porém o que havia de ser para o futuro; cintilava-lhe nos olhos de criança a cobiça adquirida em con­tacto com os companheiros de trabalho. Era amarelo, seco, com a cabeça grande demais para o corpo, a boca apertada, o nariz grosso, o cabelo cortado à escovinha, unhas e dentes sujos. Passava por muito esperto e aproveitável: os patrões gostavam dele.

— Acompanhe essa senhora ao lugar aí indicado, disse-lhe o comendador, passando-lhe um cartão com o número e o nome do hotel.

E acrescentou-lhe em voz baixa, de modo que a mulher o não ouvisse:

— Demore-se um pouco às ordens dela; pergunte-lhe se precisa de alguma coisa e, dado este caso, comunique-me o que for. Não despeça o carro; se houver qualquer novidade, meta-se nele e venha logo falar comigo. Tome lá para alguma despesa imprevista.

Entregou-lhe uma nota de cinqüenta mil réis.

João Rosa guardou o dinheiro e despediu-se do comen­dador com uma mesura humilde.

— Viva! respondeu este; e recolheu-se ao quarto, inalte­ravelmente, como sempre, teso, limpo, bem penteado.

Mas, depois de fechar a porta por dentro, assentou-se à secretária, fincou os cotovelos na mesa, segurou a cabeça com ambas as mãos, e começou a chorar.

Jacó passeava de um para o outro lado na sala de espera. Estava preocupado. Ouvia-se sobre o tapete o som discreto dos seus grandes sapatos de bezerro, muito engraxados e quase sem salto.

Um gemido mais forte, fizera-o correr para junto dele.

Jacó era o único que havia compreendido bem a pertur­bação do comendador. Para ele o amo não podia dissimular a mais passageira impressão, o velho criado adivinhava-lhe os pensamentos, lia-lhe no rosto tudo o que se passava naquele coração amargurado e cheio de rugas.

Teresa chegou muito fatigada ao hotel, uma enfermeira de contrato trouxe-lhe um caldo e fê-la recolher-se à cama.

— Que horas são?... perguntou a doente, com ar de fastio.

— Deram duas agora mesmo.

— Bem. Dê-me aquele livro de capa encarnada. Esse que tem uma cruz em cima. Justamente!

— A senhora precisa ainda de mim para alguma coisa?... perguntou o João Rosa, de quem Teresa já se havia esquecido.

— Ah! disse ela. Se voltar lá em casa, diga a Olímpia que apareça o mais depressa possível.

— Sim, senhora.

— Adeus. Obrigado.

O comendador não aparecera à mesa de jantar, e à noite pouco conversou com a filha.

O pobre velho sofria.

Criaram-se então duas existências bem diversas, mas igual­mente duras e desconfortadas; a do comendador ao lado da filha, e a de Teresa à mercê dos cuidados mercenários de um hoteleiro.

A esposa faz muita falta ao homem em qualquer situação da vida, mas essa falta só toma um caráter verdadeiramente perigoso e lamentável, quando o homem tem uma filha. E principalmente se a filha for da idade de Olímpia e, como esta, tiver um caráter impressionável e romanesco.

Os pequeninos serviços domésticos, os cuidados do lar, os desvelos para com o dono da casa, os quais exercidos por uma esposa, feitos de mulher a marido, são destinados a prendê-los de parte a parte, a identificá-los cada vez mais e a torná-los indispensáveis um para o outro; tudo isso que, entre um casal, significa virtude e garantia de felicidade, uma vez arrancado das mãos da esposa, para ser confiado às de uma filha, se converte em elemento de efeitos diametralmente opostos.

O que servia para chamar a consciência da mulher aos seus deveres, só serve, no outro caso, para desencaminhar a delicada ingenuidade da filha, chegando até a lhe desvirtuar o pudor.

O comendador Ferreira, à semelhança de muitos pais, viúvos ou separados da mulher, entregou à filha a direção da sua casa.

Foi então que ela viu pela primeira vez o homem a quem veio a esposar: o caixa da casa Paulo Cordeiro, o tal Gonçalves, vítima de Pedro Ruivo no roubo dos vinte contos; homem forte, trabalhador, econômico, senhor de boas economias e apenas com trinta e tantos anos de idade.

Olímpia o encontrou em casa de um velho amigo do pai, um conselheiro dessa época. O Gonçalves ficou logo muito impressionado por ela; Olímpia tocou e cantou. No dia seguinte ele fez uma visita ao comendador. No primeiro domingo voltou e aceitou o convite para jantar. Daí a quinze dias pediu a moça em casamento.

A filha do comendador consentia, sem repugnância, mas também sem o menor entusiasmo. O comendador estava no mesmo caso, permitia por não ter outro remédio; o Dr. Roberto havia declarado que Olímpia, se não tratasse logo de casar, podia vir a padecer muito dos nervos, e então seria mais difícil combater a moléstia.

Todavia esse casamento estava destinado a transformar a casa do comendador e o caráter de Olímpia.

Gonçalves iria morar com o sogro, fazendo assim a vontade ao comendador, que não queria separar-se da filha por coisa alguma deste mundo.

Maior que fosse a família, havia lugar de sobra no pre­ventivo casarão de Botafogo.

O velho, sobre estar muito agarrado ao seu canto, vivia ultimamente aborrecido e enfermiço. A própria filha, de algum tempo àquela parte, não parecia tomar pelo pai o mesmo afetuoso interesse com que dantes lhe arrimava os dissabores e as desilusões. Andava distraída; não tinha as alegrias da sua idade, fugia das amigas, poucas vezes saía de casa, e mesmo assim quase sempre para visitar Teresa. Só os romances franceses e, às vezes, o piano, conseguiam prendê-la por mais algum tempo. Não lhe falassem em festas, passeios e ajuntamentos.

O comendador chamou sobre ela a atenção do Dr. Roberto. Esse declarou que tudo aquilo desapareceria com o casamento.

Foi essa, como já vimos, a única razão que moveu aquele a consentir na união de Olímpia com o Gonçalves. Não é que desdenhasse das qualidades do pretendente, mas o Gonçalves estava longe de ser o ideal que o comendador sonhava para genro. Preferia um homem mais distinto, mais cultivado no trato e nas coisas do espírito; mais brilhante, em suma. E Gon­çalves era ao contrário um sujeito modesto e chão; homem de bom senso, mas de ambições estreitas. O que o puxava mais insistentemente para Olímpia, não foi a beleza da rapariga, que ela nessa ocasião até estava quase feia; nem também o dote, porque Gonçalves não seria capaz de casar por especulação, mas foi justamente aquela indiferença pela vida exterior, aquele desquerer das coisas ruidosas que ele, à primeira vista, descobriu logo na filha do comendador.

Pobre homem! como se havia enganado! O que supunha congênito e natural em Olímpia, não passava de uma crise, de um estado mórbido, que desapareceria prontamente com o matrimônio.

Para qualquer outro seria isso um motivo de felicidade, para ele era um transtorno.

Com efeito, pouco depois do casamento, a menina inso­ciável e bisonha foi desaparecendo, e Olímpia, a verdadeira Olímpia, a mulher formosa, de ombros torneados e peito co­lombino, surgia entre os braços do marido.

Nela tudo se transformou, como por encanto: a pele fez branca e macia; encheu-se o colo e encorparam-se-lhe os braços; as linhas dos quadris serpentearam com mais arrojo; os olhos esparsaram-se, rociados de ternura, e a boca desa­brochou em belos sorrisos ao toque dos primeiros beijos sensuais.

E, se por um lado o corpo se aformoseava, por outro o espírito se desapertava e distendia. Quatro meses depois de casada, Olímpia principiou a sentir-se atrair para as salas, seus encantos pediam a admiração e o aplauso dos homens de bom gosto; precisava de aparecer, precisava de luzir.

Reclamou jornais de moda, freqüentou as modistas do tom, exigiu um cabeleireiro, comprou jóias, tomou carruagem, escolheu cavalos, e dentro em pouco foi ela a ordem do dia na rua do Ouvidor e nos salões de Botafogo.

Os folhetins do Otaviano Rosa, no Correio Mercantil falavam de Olímpia; descreviam-lhe a toilette, endeusavam-lhe as graças. Suas frases foram repetidas, seus gostos imitados.

O comendador não se podia furtar à influência de todas as transformações e com o que essas refletiam. Era com orgu­lho que agora acompanhava ele a filha ao Cassino, ao Lírico e à Campesina.

Já ninguém o via triste e apoquentado. Os alegres hábitos do outro tempo foram ressurgindo simultaneamente. À casa retornou o ar feliz que havia perdido. Bastou que Olímpia se casasse, se fizesse verdadeira dona de casa, para encontrar facilidade em governar os criados, em dirigir tudo o que es­tava sujeito à sua vontade. Os fornecedores deixaram de roubar, os fâmulos já não esbanjavam como dantes, a chácara voltou ao que era primitivamente. Tudo endireitou, tudo entrou nos eixos. Reapareceram as visitas, iluminaram-se as salas, distribuíram-se chávenas de chá, desarrolharam-se gar­rafas de vinho caro.

O único descontente era Gonçalves; aquela mulher, que a todos deslumbrava com os seus encantos pessoais, aquela adorável Olímpia de quem se falava com tanto entusiasmo por toda a parte, não lhe convinha a ele para esposa.

Não era essa a mulher que havia sonhado.

Imaginara ter descoberto na singela filha do comendador uma companheira sossegada e amiga do lar; quando de repente lhe surgiu aquela doidejana, a reclamar sedas, carruagens, bailes, e o diabo a quatro!

— Fui lesado! dizia ele consigo, plenamente arrependido do casamento. Se adivinhasse semelhante coisa, nunca a teria tomado para mulher!... Mas também quem poderia descon­fiar que em tal songamonga estivesse escondida a Olímpia de hoje?...

E o pior é que o pobre Gonçalves não tinha ânimo de contrariar a esposa. Esta o arrastava para Petrópolis, para Nova Friburgo; obrigava-o a perder noites, a bocejar, assentado em uma cadeira na sala de jogo, enquanto ela dançava pelo braço dos melhores valsistas do tempo.

— Isso não pode continuar assim!... resmungava o pobre homem, entre bocejos. Pois eu tenho lá jeito para essas cousas...

Além disso era um gastar sem conta. Ora, ele que se casara justamente para metodizar a vida e ver se conseguia assegurar o futuro com algum pecúlio, não podia suportar de cara alegre semelhantes imposições de Olímpia. Para deixá-la sozinha, também era o diabo; havia tantos olhos assestados sobre ela; havia tanta cobiça a lhe farejar aqueles ombros nus, que o marido não se animava a arredar pé.

— Antes me ficasse ela feiazita e magra como era dan­tes... suspirava o infeliz; ao menos não gostaria tanto de aparecer!...

E, apesar de ninguém até aí ter ousado arriscar a menor palavra contra o procedimento de Olímpia, o triste marido sentia zelos cruéis apertarem-lhe silenciosamente o coração.

Um dia, não mais se pôde ter, e procurou o comendador para desabafar.

— Não é possível, seu Ferreira! dizia ele muito desgostoso; não é possível continuarem as coisas como vão!... Eu não me casei para perder as noites em pagodes e andar por aí em cor­rerias altas!... Não sou nenhum nababo! não posso com semelhante vida!

E passeava agitado pelo gabinete do sogro.

— Mas que quer você, homem de Deus?!...

— Quero endireitar a minha vida! está aí o que eu quero! Pois meu sogro acha que não tenho razão para estar abor­recido?!...

— Mas que é que lhe falta?!

— Falta-me a paciência para andar todas as noites de casaca, a fazer mesuras pelas salas e a aturar massadas con­secutivas. Sua filha, ao que parece, não desejava um marido; desejava ter um pajem, um criado às ordens dos seus capri­chos!... Ora, eu estou lá disposto a semelhante coisa!

— Você fala de boca cheia, meu genro, respondeu o co­mendador, a sacudir a cabeça. Sabe lá você a mulher que tem!... Renda graças a Deus, meu amigo, porque principio a acreditar que você nunca a mereceu.

— Antes mesmo nunca a tivesse merecido! Dou-lhe a minha palavra de honra que preferia isso!

O outro mordeu os beiços e conteve a impaciência.

— É melhor pararmos aqui, disse ele; nada lucramos em estar a trocar palavras. O senhor, meu genro, me falará quando estiver mais tranqüilo!...

— Já não tenho momentos de tranqüilidade! exclamou desabridamente o Gonçalves. Apre! preciso desabafar! Há cinco meses que estou cheio até aqui! (E mostrava a garganta com a mão aberta). Ou entramos em um acordo ou vai cada um para seu lado! Safa! Não posso mais!

— Pois então vá plantar batatas! gritou o comendador, perdendo de todo a paciência. Quer fazer reclamações, faça-as à sua mulher. Que diabo!

— Ela faz mesmo muito caso do que lhe digo!...

— Pois então queixe-se de si próprio, meu caro senhor! Quando o marido não se sente com forças para governar a mulher, não pode exigir que o sogro a governe! O que lhe afianço é haver por aí muito homem casado que não se queixa como o senhor, tendo muito mais razão para isso! Você ao menos não pode dizer que sua mulher o ilude!...

— Sei cá! respondeu o marido de Olímpia, sacudindo os ombros.

— Hein?! exclamou o comendador, furioso. Não sabe?! Pois o senhor se atreve a duvidar da conduta de minha filha?... Insolente! bradou o velho, trêmulo de cólera. Não sei onde estou que...

Olímpia estava nessa ocasião a passeio. Quando voltou, soube logo da contenda entre o pai e o marido.

— O senhor foi então queixar-se de mim a meu pai?!... perguntou ela a Gonçalves quando o viu.

— Não! é que a senhora...

— Não seja idiota! bradou-lhe a mulher, franzindo o nariz. Quando quiser pode-se ir embora!

— E sou muito capaz de o fazer!... Não sei o que parece andar agora uma criatura a correr seca e meca, para ver danças e ouvir tocar piano!...

— Eu é que não estou para aturá-lo! Tenha a bondade de me não aborrecer! disse Olímpia friamente e recolheu-se ao quarto, sem querer ouvir a réplica do marido.

Jacó assistia a toda esta cena, encostado ao aparador com uma toalha no braço.

— Não te parece que eu tenho razão, Jacó?... perguntou-lhe Gonçalves, aproximando-se dele.

— Não me envolva nessas histórias... respondeu o velho doméstico, fugindo por sua vez para outro lado.

Gonçalves cruzou os braços e sacudiu a cabeça sozinho, no meio da sala.

— Então?! que me dizem a isto?! exclamou ele.