História da Mitologia/XXX

Wikisource, a biblioteca livre
Ulisses na corte do rei Alcínoo, arrebatado com a canção de Demódoco, o bardo cego.
pintura de Francesco Hayez (1791–1882)

Os Féacios[editar]

Ulisses agarrou-se à sua jangada enquanto sua estrutura permanecia íntegra, e quando ele percebeu que ela não poderia mais suportá-lo, amarrou o cinto em torno do seu corpo e nadou. Minerva suavizou as ondas à sua frente, mandando-lhe um vento que empurrava as ondas em direção à costa. A arrebentação batia no alto das rochas parecendo impedir a aproximação, mas finalmente encontrando águas calmas na foz de um tranquilo riacho, ele chegou em terra, cansado pelo esforço, sem forças para respirar, mudo e quase morto. Depois de algum tempo, recuperando-se, beijou o solo, e se regozijou, embora não soubesse ainda que destino seguir. A uma curta distância ele avistou um pequeno bosque, e seguiu em direção a ele. Ali, encontrando um refúgio, protegendo-se tanto do sol como da chuva, com galhos entrelaçados, ele coletou uma pilha de folhas e com elas fez uma cama, onde se deitou, e amontoando as folhas sobre o seu corpo, adormeceu.

A terra para onde ele fora lançado se chamava Esquéria, o reino dos Feácios. Originalmente, este povo vivia perto dos Ciclopes, mas vendo-se oprimidos por essa raça de selvagens, migraram para a ilha de Esquéria, sob o comando de seu rei, Nausítoo. Dizem os poetas, que eles eram um povo familiarizado com os deuses, que apareciam ostensivamente para festejar com eles, quando sacrifícios lhes eram oferecidos, e não se escondiam dos peregrinos solitários quando os encontrava. Era um povo muito rico e viviam desfrutando todos os prazeres sem se incomodarem com os alarmes de guerra, pois, como eles viviam afastados do homem com avidez por lucros, nenhum inimigo jamais se aproximou de suas praias, e eles nem sequer tinham necessidade de arcos e aljavas. Sua principal ocupação era a navegação. Seus barcos, que navegavam com a velocidade dos pássaros, eram dotados de inteligência, pois conheciam todos os portos e não precisavam de pilotos. Alcínoo, filho de Nausítoo, era agora o rei deles, sendo um soberano sábio e justo, amado pelo seu povo.

E então aconteceu que na mesma noite em que Ulisses foi lançado em terra na Ilha dos Feácios, e enquanto ele estava dormindo sobre sua cama de folhagens, Nausícaa, a filha do rei, teve um sonho que foi enviado por Minerva, lembrando-a de que o dia de seu casamento não estava muito distante, e que uma decisão prudente para esse evento seria lavar toda a roupa da família. Esta não era uma tarefa fácil, pois as fontes ficavam a alguma distância, e as roupas tinham de ser levadas até lá. Ao acordar, a princesa correu até onde estavam os pais, para dizer-lhes sobre o que tinha em mente, sem se referir ao dia do seu casamento, mas encontrou outras razões igualmente louváveis. Seu pai rapidamente concordou e ordenou que os noivos fornecessem uma carroça para o transporte. As roupas foram colocadas dentro do veículo, bem como a rainha mãe, além de um abundante suprimento de alimentos e vinho.

A princesa tomou o seu lugar e aplicou o chicote, suas criadas virgens a seguiam a pé. Chegando à margem do rio, soltaram as mulas para pastar, e descarregando a carroça, mergulharam as roupas dentro da água, e trabalhando com alegria e entusiasmo, logo concluíram o trabalho. Depois, estenderam as roupas na praia para secar, e tendo elas também se banhado, se sentaram um pouco para fazer a refeição, depois se levantaram e se divertiram com uma partida de bola, e enquanto brincavam, a princesa cantava para elas. Mas, quando elas tinha dobrado toda a roupa e estavam já se preparando para retomar o caminho de volta à cidade, Minerva fez com que a bola lançada pela princesa caísse dentro da água, com isso todas gritaram e Ulisses acordou com o barulho.

Agora nós ficamos imaginando Ulisses, um marinheiro que havia naufragado, tendo escapado das ondas há algumas horas, e totalmente destituído de roupa, acordando e percebendo que somente alguns arbustos se interpunham entre ele e o grupo de jovens donzelas, as quais, pelo seu comportamento e maneiras de se vestir, ele acreditou que não se tratava de simples camponesas, mas que era de uma classe mais alta. Infelizmente, precisando de ajuda, como poderia ele se aventurar, nu como estava, e se expor e dando mostras de suas necessidades? Era certamente o caso que merecia a intercessão de Minerva, sua deusa e protetora, que jamais deixou de ajudá-lo em momentos de necessidade. Quebrando o galho frondoso de uma árvore, colocou-o diante do seu corpo, e ele saiu da moita onde estava.

As virgens, diante de sua visão, fugiram para todas as direções, Nausícaa sozinha era a exceção, pois Minerva a ajudara e a dotara com coragem e perspicácia. Ulisses, estando de pé à distância e respeitosamente, contou a triste situação em que se encontrava, e implorou à divindade da beleza (pois se era um rainha ou uma deusa ele confessava não saber) por alimento e algo para vestir. A princesa respondeu com cortesia, prometendo-lhe ajuda instantânea e a hospitalidade de seu pai assim que ele fosse informado sobre os fatos. Chamou de volta as donzelas que haviam se espalhado, censurando-lhes o alarido, e lembrando a elas que os Feácios não tinham inimigos para temer. Este homem, disse a elas, era um infeliz peregrino, a quem elas tinham o dever de recebê-lo bem, pois os pobres e os estrangeiros são hóspedes de Jove. Pediu para que elas trouxessem comida e alguma roupa, pois algumas túnicas de seus irmãos estavam entre os utensílios da carroça. Depois de terem feito isso, Ulisses, retirou-se para um lugar protegido, removeu a espuma do mar de seu corpo, vestiu-se e se revigorou com alguns alimentos, Palas expandiu a sua forma e espalhou a sua graça sobre o seu peito dilatado e fronte viril.

A princesa, ao vê-lo, encheu-se de admiração, e não teve escrúpulos em dizer às suas acompanhantes que ela desejava que os deuses enviassem para ela um marido assim. A Ulisses, ela recomendou que ele deveria se dirigir até a cidade, seguindo ela mesma e seu séquito, até que ele tivesse atravessado os campos, mas, quando ele se aproximasse da cidade, ela desejava que ele não mais fosse visto em sua companhia, pois, ela temia os comentários que as pessoas rudes e vulgares poderiam fazer ao ver que ela retornava acompanhada por um estrangeiro tão galante. Para evitar tal transtorno, ela ordenou que ele parasse em um bosque nos arredores da cidade, onde havia uma fazenda e um pomar que pertenciam ao rei. Depois de esperar algum tempo para que a princesa e suas acompanhantes chegassem à cidade, ele, então, tomou o seu caminho até lá, e de lá seria facilmente orientado por qualquer pessoa que conhecesse o palácio do rei.

Odisseu e Nausícaa
pintura de Pieter Lastman (1583–1633)

Ulisses respeitou as instruções dela e em seu devido tempo se dirigiu até a cidade, e ao se aproximar, encontrou uma jovem que carregava um cântaro com água. Era Minerva, que assumira essa forma. Ulisses a abordou e pediu a ela para que o orientasse até o palácio do rei Alcínoo. A jovem respondeu respeitosamente, oferecendo-se para ser seu guia, pois o palácio, informou ela, ficava perto da casa de seu pai. Sob a orientação da deusa, e envolvido por sua magia em uma nuvem que o impedia de ser observado, Ulisses passou em meio à multidão atarefada, e maravilhado, observou o porto, os navios, o fórum (refúgio dos heróis), e as muralhas, até que chegaram ao palácio, onde a deusa o deixou, depois de ter-lhe fornecido algumas informações sobre o país, o rei, e as pessoas que ele iria encontrar.

Ulisses, antes de adentrar no pátio do palácio, parou para examinar a paisagem. Seu esplendor era assombroso. Muros bronzeados se estendiam da entrada até o interior da casa, cujas portais eram de ouro, os batentes de prata, padieiras de prata enfeitadas de ouro. Em ambos os lados haviam figuras de mastins forjadas em ouro e prata, enfileiradas protegendo a entrada. Ao longo das paredes ficavam assentos que se estendiam por todo o comprimento com revestimentos dos tecidos mais finos, obra das donzelas dos Feácios. Sobre estes assentos os príncipes se sentavam e festejavam, enquanto estátuas de ouro de graciosas jovens que seguravam em suas mãos tochas acesas, derramando esplendor por todo o cenário. Um total de cinquenta criadas serviam nos ofícios domésticos, sendo que algumas eram empregadas na moenda de trigo, enquanto que outras desfiavam a lã púrpura ou manobravam teares.

Pois as mulheres dos Faécios eram mais extremamente hábeis do que as outras mulheres nas artes domésticas, assim como os marinheiros daquele país superavam as demais pessoas no trato com os navios. Lá fora, ficava o pátio de um espaçoso canteiro, com quatro acres de extensão. Nele crescia muitas árvores imponentes, romãs, peras, maçãs, figos, e oliveiras. Nem o frio do inverno, nem a seca do verão impediam seu crescimento, mas eles floresciam em constante sucessão, algumas brotavam enquanto outras amadureciam. Os vinhedos eram igualmente produtivos. Em determinado espaço você poderia ver parreiras, algumas florescendo, outras carregadas com uvas maduras, ao passo que em outros locais se observava os vinhadeiros pisando a prensa na produção de vinhos. Nas laterais dos canteiros flores de todos os matizes floresciam o ano inteiro, dispostas com a mais pura arte. Na parte central, duas fontes despejavam suas águas, uma, correndo através de canais artificiais por todo o jardim, a outra, conduzindo até o pátio do palácio, onde todo cidadão poderia completar seus suprimentos.

Ulisses ficou olhando com admiração, sem ser ele mesmo observado, pois a nuvem que Minerva espalhara ao redor dele ainda o protegia. Finalmente, tendo observado a cena durante tempo suficiente, avançou a passos rápidos até o salão onde os líderes e os senadores estavam reunidos, fazendo libações a Mercúrio, cuja adoração era seguida por uma refeição noturna. Nesse instante, Minerva dissolveu a nuvem e o revelou aos chefes da assembleia. Avançando para o lugar onde a rainha estava sentada, ele se ajoelhou aos seus pés e implorou a sua misericórdia e socorro a fim de possibilitar que retornasse à sua terra natal. Então, retirando-se, sentou-se como faziam os peticionários, ao lado da lareira.

Durante algum tempo ninguém falava. Finalmente, um chefe de estado já de idade, se virou para o rei, e disse, " Não é adequado que um estrangeiro que pede a nossa hospitalidade seja mantido esperando, com jeito de quem pede, sem que ninguém o acolha. Portanto, deixemos que ele seja conduzido para sentar-se junto conosco e que alimento e vinho lhe sejam fornecidos." Diante destas palavras, o rei se levantou e deu sua mão a Ulisses e o conduziu até um assento, tirando do lugar seu próprio filho e oferecendo-o ao estrangeiro. Alimentos e vinho foram colocados diante dele e ele comeu e se revigorou.

O rei então, dispensou os seus convidados, notificando-os de que no dia seguinte ele os convocaria novamente para um conselho para que deliberassem o que de melhor poderia ser feito para o estrangeiro.

Quando os convidados haviam se retirado e Ulisses ficou só com o rei e a rainha, a rainha perguntou quem era ele e de onde ele vinha, e (reconhecendo as roupas que ele usava como aquelas que tinham sido feitas pelas donzelas e por ela própria) de quem ele recebera aquelas roupas. Ulisses contou ao casal real sobre a sua estadia na Ilha de Calipso e tudo sobre a sua partida, sobre o naufrágio da sua jangada, sua fuga a nado, e da ajuda que a princesa havia lhe proporcionado. O casal de soberanos o ouviram com aprovação, e o rei prometeu lhe fornecer um navio no qual seu hóspede poderia voltar para sua terra natal.

No dia seguinte, os chefes do conselho confirmaram a promessa do rei. Um barco foi preparado e uma tripulação de robustos remadores foi escolhida, tendo todos se dirigido até o palácio, onde uma farta refeição lhe foi providenciada. Depois do banquete, o rei propôs que os jovens mostrassem a seu hóspede suas habilidades em esportes masculinos, e todos se dirigiram até a arena para os jogos de corrida, combates, e outros exercícios. Depois que todos tinham feito o melhor, Ulisses, sendo desafiado sobre o que ele sabia fazer, a princípio declinou do convite, porém, sendo hostilizado por um dos jovens, tomou de um disco muito mais pesado do que qualquer um que os Feácios haviam lançado, e o atirou para mais longe do que o maior lançamento deles. Todos ficaram espantados, e olharam o hóspede com muito mais respeito.

Depois dos jogos eles retornaram para o salão, e o arauto conduziu para dentro Demódoco, o bardo cego,--

"... Adorado pela musa,
Que, no entanto, lhe mostraram tanto o bem como o mal,
Tiraram-lhe a visão, mas ofereceram-lhe dons divinos."

E escolheu como tema "O Cavalo de Pau," por cujos meios os gregos conseguiram entrar em Troia. Apolo o inspirou, e ele cantou com tanta emoção os horrores e as façanhas daqueles tempos agitados que todos se deliciaram, mas, Ulisses se comoveu até as lágrimas. Alcínoo, ao observar que a canção havia terminado, perguntou a Ulisses porque suas tristezas foram despertadas ao mencionar Troia. Havia ele perdido lá um pai, ou um irmão, ou algum amigo querido? Ele respondeu revelando-se a si mesmo pelo verdadeiro nome, e a pedido deles, contou as aventuras de que foi protagonista desde sua partida de Troia. Esta história despertou em grau superlativo a simpatia e a admiração dos Feácios pelo seu convidado. O rei então, propôs que todos os líderes o presenteassem com alguma lembrança, dando ele mesmo o exemplo. Eles obedeceram, e disputavam entre si ao encherem o ilustre estrangeiro com presentes carísssimos.

No dia seguinte, Ulisses zarpou em um barco feácio, e em pouco tempo chegou com segurança à ilha de Ítaca, a ilha onde morava. Quando o barco tocou a costa ele estava dormindo. Os marinheiros, sem acordá-lo, o levaram até a praia, e desceram com ele a arca contendo os presentes, e somente então, partiram.

Netuno ficou tão descontente com a maneira de agir dos Feácios resgatando Ulisses assim, desse modo, de suas mãos, que, quando o barco retornou para o porto, ele o transformou em rochedo, recostado bem em frente à entrada do porto.

A descrição que Homero faz sobre os navios dos Feácios foi imaginada como sendo uma antecipação das maravilhas modernas da navegação a vapor. Alcínoo fala para Ulisses:

"Dize de que cidade, de que regiões abaladas,
E quais habitantes dessas regiões se vangloriam?
Para que rapidamente chegues ao reino almejado,
Em navios maravilhosos, movendo-se sozinhos, propelidos pelo pensamento,
Nenhum leme para assegurar o próprio curso, nem pilotos em sua direção,
Como o homem inteligente, singrando as marés,
Conhecedores de toda costa e de todas as baías
Que ficam abaixo da luz do sol que tudo vê."
--Odisseia, Livro VIII.

Lord Carlisle (1802-1864), em seu "Diário nas águas turcas e gregas," assim fala de Corfu, que ele considera ser a antiga Ilha dos Feácios:

"O local explica a "Odisseia". O templo do deus do mar não poderia ser mais perfeitamente localizado, sobre uma plataforma gramada com a relva mais macia, no topo de um penhasco que se ergue sobre o porto, o canal e o oceano. Bem à entrada do porto interno, há uma rocha pitoresca onde um pequeno convento foi plantado em cima dela, e que segundo a lenda é o barco transformado de Ulisses.

" Praticamente o único rio da ilha fica a uma distância razoável entre o provável sítio da cidade e o palácio do rei, como que justificando a necessidade da princesa Nausícaa ter de fazer uso de sua carroça e de almoçar, quando ela foi junto com as donzelas da corte lavar as suas roupas."

A sorte dos pretendentes[editar]

Odisseu partindo da Ilha dos Feácios
pintura de Claude Lorrain (1600–1682)

Ulisses tinha ficado longe de Ítaca durante vinte anos, e quando ele acordou, ele não reconheceu sua terra natal. Minerva apareceu para ele na forma de um jovem pastor, informou onde ele se encontrava, e lhe falou sobre como estavam as coisas em seu palácio. Mais de uma centena de nobres de Ítaca e das ilhas vizinhas estavam há anos pretendendo a mão de Penélope, sua esposa, imaginando-o morto, como governantes de seu palácio e de seu povo, como se de ambos fossem donos. Para que ele pudesse se vingar dos pretendentes, seria importante que ele não fosse reconhecido. Minerva para isso o metamorfoseou em um mendigo sem nenhuma expressão, e como tal ele foi generosamente recebido por Eumeu[1], o criador de porcos, fiel servidor de sua casa.

Telêmaco, seu filho, estava ausente à procura do pai. Tinha ele visitado as cortes de outros reinos, que haviam já retornado da expedição à Troia. Durante a busca, ele foi advertido por Minerva para que voltasse para casa. Ele chegou e procurou por Eumeu para saber algo sobre como estava a situação no palácio, antes de se apresentar diante dos pretendentes. Encontrando Eumeu com um estrangeiro, ele o tratou com gentileza, embora estivesse trajado como mendigo, e lhe prometeu ajuda. Eumeu foi enviado ao palácio para informar Penélope em particular sobre a chegada de seu filho, pois era preciso ser cauteloso com relação aos pretendentes, os quais, como Telêmaco ficou sabendo, estavam conspirando para interceptá-lo e matá-lo. Assim que Eumeu partiu, Minerva se apresentou diante de Ulisses, e lhe ordenou que se desse a conhecer ao seu filho. Imediatamente ela o tocou, libertando-o subitamente da sua aparência de velhice e miséria, e devolvendo-lhe o aspecto de robusta masculinidade que era seu atributo. Telêmaco ficou perplexo ao vê-lo, e a princípio pensou que ele era mais que um mortal. Mas Ulisses se anunciou como seu pai, e explicou que a mudança da aparência era um atributo de Minerva.

"... Então, Telêmaco
Abraçou o pescoço de seu pai e chorou.
Tomado por um intenso desejo de chorar
Os dois, expressando delicados murmúrios,
Cada um perdoando o pesar do outro."

Pai e filho então se consultaram como eles poderiam vencer os pretendentes e puni-los pela ousadia. Ficou decidido então que Telêmaco deveria ir até o palácio e se misturar com os pretendentes, como antes, e que Ulisses também entraria como mendigo, característica que nos rudes tempos antigos tinha privilégios diferentes do que presenciamos na atualidade. Na qualidade de viajante e contador de histórias, os mendigos eram recebidos nos salões onde estavam os chefões, e frequentemente tratados como convidados, embora algumas vezes, também, sem dúvida nenhuma, fossem injuriados. Ulisses pediu a seu filho que permanecesse impassível, e que não demonstrasse nenhum interesse incomum pelo mendigo, que ele pensaria ser outra pessoa e não quem parecia, e mesmo no caso de Ulisses ser insultado, ou agredido, seu filho não deveria intervir de maneira diferente, como ele faria com relação a qualquer estrangeiro.

No palácio, eles encontraram o mesmo cenário de festejos e disputas sendo realizado. Os pretendentes fingiram receber Telêmaco com alegria pelo seu retorno, embora intimamente se sentissem frustados diante do fracasso de seus planos em tirar-lhe a vida. O velho mendigo foi permitido que entrasse, bem como lhe deram o que havia sobre a mesa. Uma cena comovente ocorreu assim que Ulisses adentrou o pátio do palácio. Um velho cachorro estava nas imediações, quase morto por causa da idade, e quando viu o estrangeiro entrar, levantou a cabeça e as orelhas em pé. Era Argo, o cachorro de Ulisses, que ele tinha em outros tempos e que frequentemente levava para caçar.

"... Assim que ele percebeu
Que o Ulisses dos tempos de antanho se aproximava, murchou as orelhas
Abanou a cauda, era o sinal de alegria que dava as boas vindas, pois não conseguia se levantar,
E vendo que o seu mestre de antigamente se aproximava.
Ulisses, ao percebê-lo, enxugou uma lágrima
Imperceptível.
... Então, o destino libertava
O velho Argo, pois ele vivera para ver
Ulisses de volta, vinte anos depois."

Assim que Ulisses se sentou para comer alguma coisa no salão, os candidatos começaram a demonstrar impaciência para com o infeliz. Quando ele tentou protestar, um deles, levantou um pequeno banco e com ele tentou feri-lo. Telêmaco teve que se esforçar muito para conter a indignação de ver seu pai sendo tratado dessa maneira em sua própria casa, mas, lembrando-se das injunções de seu pai, nada disse além do que lhe competia como dono da casa, embora jovem, e protetor dos convidados.

Penélope tinha adiado sua decisão em favor de qualquer um dos pretendentes durante tanto tempo que agora parecia não haver mais razão para novas protelações. A ausência prolongada de seu marido parecia demonstrar que a sua volta já não seria mais esperada. Durante esse tempo, seu filho havia crescido, e já poderia administrar seus próprios negócios. Ela então admitiu submeter a questão de sua escolha para um teste de habilidades entre os candidatos. O teste escolhido seria o lançamento com arco. Doze argolas foram colocadas enfileiradas, e aquele cuja flecha atravessasse as doze argolas receberia a rainha como prêmio. Um arco que um dos heróis e companheiros haviam dado a Ulisses em épocas remotas foi trazido da sala de armas, e com sua aljava cheia de flechas foi colocado no centro do salão. Telêmaco havia tomado o cuidado para que todas as outras armas fossem removidas, pretextando, que no calor da competição poderia haver perigo, de alguém fazer uso impróprio, em algum momento de arrebatamento.

Tudo estava preparado para a prova, a primeira coisa que deveria ser feita era curvar o arco para prender a corda. Telêmaco tentou fazer isso, mas todos os seus esforços não deram resultado, e modestamente, admitindo que tinha tentado tarefa que estava além de suas forças, ele ofereceu o arco à outra pessoa. Este tentou sem maiores sucessos, e, em meio a risos e escárnios de seus companheiros, desistiu. Um terceiro tentou e outro também, chegaram até a esfregar sebo no arco, mas sem resultado, ele não dobrava. Então, Ulisses falou, humildemente, sugerindo que lhe fosse permitido tentar, pois, disse ele, "embora eu seja um mendigo, outrora eu fui soldado, e alguma força em meu braços ainda existe." Os candidatos caíram na gargalhada, e exigiram que ele fosse expulso por causa da sua insolência. Mas Telêmaco se colocou em sua defesa, e, simplesmente como gratidão ao velho, pediu para que tentasse. Ulisses pegou o arco, e o manejou com mãos de mestre. Com facilidade ele ajustou a corda ao seu encaixe, em seguida, ajustando uma flecha ao arco ele esticou a corda e lançou a flecha que atravessou os anéis com grande precisão.

Sem dar-lhes tempo para expressarem seu espanto, ele disse, "Vamos agora para o alvo seguinte!" e direcionou o arco para o mais insolente dos candidatos. A flecha atravessou-lhe a garganta e ele caiu morto. Telêmaco, Eumeu, e outro fiel seguidor, bem armados, se posicionaram ao lado de Ulisses. Os pretendentes, tomados de assombro, olharam ao redor em busca de armas, mas não encontraram nenhuma, nem havia nenhuma possibilidade de fuga, pois, Eumeu fazia a segurança das portas. Ulisses não os deixou indecisos durante muito tempo, e se anunciou como o líder há muito tempo desaparecido, cuja casa haviam invadido, quebrando-lhe a solidez do lar, e perseguindo esposa e filho por dez longos anos, e disse-lhe que sua vingança seria avassaladora. Todos foram mortos, e Ulisses voltou a ser o dono do seu palácio, e governador do seu reino e de sua esposa.

O poema "Ulisses" de Alfred Tennyson representa o velho herói, depois de passados todos os perigos em que nada restara, a não ser ficar em casa e desfrutar a felicidade, até se cansar de tanta falta de atividade e decidir em se expor novamente em busca de novas aventuras.

"... Vinde, meus amigos,
Pois nunca é tarde demais para a renovação do mundo.
Velejemos, bem acomodados para vencermos
As ondas ruidosas, pois o meu destino
É navegar para além do por do sol, e me banhar
Debaixo de todas as estrelas do ocidente, até a morte chegar.
Quiçá nos banharemos nos golfos,
Quiçá chegaremos às ilhas da Felicidade,
Para encontrar o grande Aquiles que conhecemos um dia," etc.

Links externos[editar]

Notas e Referências[editar]

  1. Eumeu: pastor dos porcos e amigo de Odisseu. Seu pai, Ctésios, filho de Ormenos, era rei de uma ilha chamada Síria. Quando ele era ainda pequeno, um marinheiro fenício seduziu a sua babá, uma escrava, que concordou em trazer a criança entre seus tesouros em troca de ajuda para fugir. A babá foi morta por Ártemis durante uma viagem marítima, mas os marinheiros continuaram seu curso para Ítaca, onde Laertes, pai de Odisseu, comprou a criança como escravo. Daí em diante, ele foi criado junto com Odisseu e sua irmã Ctímene, sob os cuidados de sua mãe Anticleia.