História da Mitologia/IX

Wikisource, a biblioteca livre

Capítulo IX[editar]

Morfeu assume a forma de Ceix
diante de Alcíone

Ceix e Alcíone:
ou os Pássaros Alciônicos[1][2]
[editar]

Ceix foi o rei da Tessália, onde ele governou em paz, sem violência nem atos equivocados. Ele era filho de Héspero, a Estrela-da-Manhã, e o brilho da sua beleza fazia lembrar o seu pai. Alcíone, a filha de Éolo, era esposa de Ceix, era extremamente dedicada a ele. Ora Ceix estava profundamente aflito por causa da perda de seu irmão, e prognósticos assustadores, que se surgiram após a morte do seu irmão, fizeram com que ele sentisse que os deuses estavam sendo hostis em relação a sua pessoa. Ele pensou melhor, então, e decidiu fazer uma viagem até Carlos, na Jônia, a fim de consultar o oráculo de Apolo.

Mas assim que ele revelou os seus planos para sua esposa Alcíone, ela sentiu um arrepio pelo corpo, e o seu rosto ficou pálido como se fosse morrer. "Que falha devo ter cometido, meu querido marido, para que afastes de mim o teu afeto? Onde está o amor que sempre te dediquei, e que costumava ter atenção especial nos teus pensamentos? Terá você conquistado o abraço da felicidade na ausência de Alcíone?"

"Escolheste ficar longe de mim?" Ela tentava dissuadi-lo, descrevendo a violência dos ventos, que havia conhecido em família, quando viveu no lar em casa de seu pai, — Éolo, que era o deus dos ventos, e que havia tentado controlá-los, tanto quanto pode. "Eles se lançam juntos," disse ela, "com tamanha fúria que fogos são disparados por causa do conflito. Mas se você precisa mesmo ir, meu querido marido,” disse ela, “permita-me que vá contigo, caso contrário, irei sofrer muito, não apenas os males reais que talvez possas encontrar, mas também aqueles forjados pelos meus temores."

Estas palavras pesavam duramente na mente do rei Ceix, e não era tampouco seu único desejo, como também o dela, de acompanhá-lo na viagem, mas ele não podia suportar a ideia de expô-la aos perigos do mar. Então, ele respondeu, consolando-a tanto quanto podia, concluindo com estas palavras: "Te prometo, pelos raios do meu pai, a estrela do dia, que se o destino permitir, retornarei antes que a lua tenha dado duas voltas em torno do orbe." E tendo falando isso, ele ordenou que o navio zarpasse do estaleiro, e que os remos e as velas fossem colocados à bordo. Alcíone, ao ver os preparativos, estremeceu, afogada com seus maus pressentimentos. Entre lágrimas e soluços despediu-se do amado, caindo desfalecida ao solo.

Ceix teria se demorado ainda, mas agora os viajantes já haviam posicionado os remos, que eram vigorosamente impulsionados pelas ondas, com movimentos longos e medidos. Alcíone ergueu seus olhos lacrimejantes, e avistou o marido de pé no convés, acenando com as mãos para ela. Ela lhe respondia o sinal até que o navio desapareceu da sua visão e então, ela não conseguia mais distinguir a imagem dele da paisagem. Quando ela não mais conseguia visualizar o navio, ela forçou os olhos, para enxergar a vela tremulando pela última vez, até desaparecer completamente. Em seguida, retirando-se para os seus aposentos, ela se lançou sobre o divã solitário.

Enquanto eles se afastavam para longe do porto, a brisa soprava feliz balançando as cordas. Os marinheiros sulcavam seus remos nas águas, e içavam suas velas. Quando metade ou menos do trajeto havia transcorrido, e a noite se aproximava, o mar começou a ficar esbranquecido e as ondas mais intensas, e o vento leste soprava forte ventania. O capitão deu ordens para recolher as velas, mas a tempestade impedia a obediência, pois tamanho era o furor dos ventos e das ondas que suas ordens não eram ouvidas. Os homens, em comum acordo, estavam ocupados com a segurança dos remos, dando força ao navio, para enrizar a vela. Enquanto executavam o que para cada um parece o melhor, a tempestade aumentava sua fúria. Os gritos dos homens, o rangido dos mastros, e as ondas arremessando, se misturavam com os estrondos do trovão. O mar turbulento parecia querer subir ao céu, para dissipar as suas ondas entre as nuvens, mas depois, descendo até o fundo assume a cor de um cardume — uma escuridão infernal.

O navio participa de todas essas transformações. Parece um animal selvagem que furioso se arroja contra as flechas dos caçadores. A chuva cai torrencialmente, como se os céus estivessem desabando para se juntar ao mar. Quando o relâmpago cessa por um momento, a noite parece juntar sua própria escuridão à da tempestade; então, surge um clarão, partindo a escuridão ao meio, e iluminando tudo ao redor com um brilho intenso. A habilidade fracassa, a coragem naufraga, e em cada onda, a morte parece cavalgar. Os homens são presas de um terror profundo.

O rei Ceix durante uma tempestade.
ilustração de Virgil Solis para a obra Metamorfoses de Ovídio (1581)

A lembrança dos pais, dos parentes, e dos compromissos assumidos no lar, ressurgem em suas mentes. Ceix pensa em Alcíone. Nenhum nome habita os seus lábios, exceto o dela, e embora sinta saudades dela, ele se regozija na sua ausência. Nesse instante, um mastro é despedaçado pela ação de um raio, o leme se rompe, e uma onda gigante desaba em rodopio, causando o naufrágio, reduzindo-o a destroços. Alguns dos marujos, aturdidos com o imprevisto, afundam, para nunca mais emergirem; outros se prendem a pedaços dos destroços. Ceix, com a mão que usava para segurar o cetro, segura uma prancha com força, e grita por socorro, — que infortúnio, de nada adianta — para seu pai e seu sogro. No entanto, Alcíone não lhe sai dos lábios. Seus pensamentos se agarram nela. Ele reza para que as ondas levem o seu corpo até onde ela se encontra, para que possa ser sepultado pelas mãos da amada. Finalmente as águas sequestram-lhe as forças, e ele naufraga. A estrela do dia era pouco perceptível nessa noite. Como ela não podia se ausentar dos céus, ela cobriu o rosto com as nuvens.

Enquanto isso, Alcíone, que desconhecia tais horrores, contava os dias até a volta prometida por seu marido. Agora, ela preparava as roupas que ele usaria, e também as que haveria de vestir quando ele chegasse. A todos os deuses ela oferecia incensos frequentes, mas principalmente a Juno mais do que a todos os outros. Pois a seu marido, que estava ausente, ela orava incessantemente: para que ele pudesse estar salvo; e pudesse voltar para casa; e para que ele, na sua ausência, não encontrasse ninguém para amar mais do que ela. Mas, de todas estas preces, a última era a única fadada a ser atendida. A deusa, então, não podendo mais suportar advogar por alguém que já estivesse morto, ou levantar suas mãos em súplica diante de altares que seriam mais apropriados a ritos funerários. Então, chamando Íris, ela falou, "Íris, minha fiel mensageira, ide até a lânguida habitação do Sono, e diga a ele para enviar uma visão na forma de Ceix para Alcíone, para informar a ela sobre o acontecido."

Íris usava muitas cores em suas roupas, e tingindo o céu com o seu arco, ela busca o Palácio do Rei do Sono. Perto do país onde vivem os Cimérios, uma caverna na montanha é a morada do entediante deus do Sono. Febo jamais se atreve a ir até lá, tanto ao se levantar, ao meio-dia, como ao se deitar. Nuvens e sombras são exalados do chão, e a luz brilha debilmente. O pássaro do amanhecer, com crista na cabeça, jamais chama a Aurora em voz alta, nem o vigilante cachorro, nem o ganso mais sagaz ousa perturbar o silêncio. Nenhum animal selvagem, nenhum gado, nem um galho se mexe com o vento, nem o som da conversação humana, quebra a tranquilidade.

O silêncio reina absoluto; mas no fundo dos rochedos o Rio Lete flui, e com seu murmúrio suave é um convite ao sono. Papoulas crescem com abundância diante da porta da caverna, e outras ervas, de cujos sucos a Noite recolhe o torpor, que ela espalha sobre a escuridão da terra. A mansão não possui portões, para ranger suas dobradiças, nem sequer um vigia; mas no centro da caverna há um divã de ébano preto, adornado com plumas negras e cortinas pretas. Lá o deus se reclina, seus membros estão relaxados pelo sono. Em torno dele desfilam os sonhos, com aspectos multiformes, tantos quantos os caules da colheita, ou as folhas de uma floresta, ou os grãos de areia da praia.

Assim que a deusa entrou e afugentou os sonhos que pairavam em torno dela, o seu fulgor iluminou toda a caverna. O deus, que mal abria seus olhos, e que de vez em quando descansava suas barbas sobre o peito, finalmente sacudiu o corpo, e apoiando-se em seus braços, perguntou sobre a mensagem que trazia, — pois, decerto, ele sabia de quem se tratava. Então, ela respondeu, "Sono, o mais gentil dos deuses, tranquilizador das mentes, e consolador dos corações aflitos, Juno envia-te ordens para que avies um sono para Alcíone, na cidade de Traquina[3], representando-lhe o marido desaparecido e todos os eventos do naufrágio."

Morfeu aparece para Alcíone disfarçado de Ceix,
ilustração de Johann Wilhelm Baur
para o livro XI da obra Metamorfoses de Ovídio.

E depois de entregar-lhe a mensagem, Íris se retirou apressadamente, pois ela não conseguia mais suportar o ar estagnado, e a medida que ela sentiu que a sonolência estava tomando conta dela, fugiu imediatamente, e retornou com seu arco do mesmo jeito que chegou. Então, Sono chamou um de seus inúmeros filhos, — Morfeu, — o mais experiente na imitação das formas, no jeito de caminhar, na aparência, e no modo de falar, mesmo nas roupas e atitudes mais características de casa ser. Mas ele só imitava os humanos, deixando para outros a personificação de pássaros, animais, e serpentes.

Eles o chamavam de Ícelo; e Fântaso era um terceiro, que gostava de se transformar em pedras, águas, florestas, e outras coisas sem vida. Estes ficavam à espera de reis e grandes personagens durante suas horas de sono, enquanto que os outros povoavam a mente das pessoas comuns. O Sono escolheu, de todos os seus irmãos, Morfeu, para executar a ordem de Íris; então, ele pousou a mão em seu travesseiro submetendo-o a agradável repouso.

Morfeu voou imediatamente, sem fazer barulho com suas asas, e assim que ele chegou na cidade hemoniana, onde, colocando suas asas de lado, ele assumiu a forma de Ceix. E assim disfarçado, porém, pálido como um defunto, e sem roupas, ele ressurgiu diante do divã da desventurada esposa. Sua barba parecia encharcada de água, e a água escorria de seus cachos ensopados. Apoiando-se na cama, lágrimas vertiam de seus olhos, então, ele disse, "Reconheceis o teu Ceix, ó desditosa mulher, ou terá a morte alterado tanto a minha aparência? Eis-me aqui, reconheceis-me, a sombra de teu marido, e não ele próprio. As suas orações, Alcíone, de nada me ajudaram, pois, estou morto."

"Não te iludas mais com vãs esperanças do meu retorno. Os ventos tormentosos naufragaram meu navio no Mar Egeu, as ondas encheram a minha boca enquanto eu gritava o teu nome. Nenhum mensageiro desconhecido está dizendo isto a você, não é um vago rumor que chega aos teus ouvidos. Eu venho em pessoa, qual um náufrago, para falar sobre o meu destino. Levanta! oferece-me suas lágrimas, declara para mim tuas lamentações, não permitas que retorne ao Tártaro sem ter sido chorado." A estas palavras, Morfeu imitava a voz, que parecia ter sido do marido dela; parecia que ele derramava lágrimas verdadeiras; as mãos dele imitavam os gestos de Ceix.

Alcíone, chorava e gemia, e no sono estendia os seus braços, esforçando-se para abraçar o corpo do esposo, mas apenas o ar tinha em seus braços. "Fica!" ela exclamava; "para onde vais agora? vamos juntos." E acordou ouvindo a própria voz. Levantando-se subitamente, olhou ao redor como se procurasse algo, para ver se ele ainda estava ali presente, pois, os criados, assustados com os gritos dela, vieram e lhe trouxeram luz. Não encontrando o marido, começou a bater no peito e a rasgar as vestes. Ela não se preocupava que seus cabelos se soltassem, mas chorava descontroladamente.

Sua camareira lhe pergunta a causa de tanto sofrimento. "Alcíone não existe mais," respondeu ela, "ela morreu junto com seu amado Ceix. Palavras de conforto não devem ser ditas, porque ele naufragou e agora está morto. Eu o vi, e o reconheci. Estendi minhas mãos para abraçá-lo e detê-lo. No entanto, sua sombra desapareceu, mas ela era a sombra verdadeira do meu marido. Não com as características habituais, não com a sua beleza pessoal, mas estava pálido, e nu, e seus cabelos estavam molhados pela água do mar, qual um desventurado, ele apareceu para mim."

"Bem aqui, neste mesmo lugar, estava a triste visão," — e ela olhava para ver as marcas de seus pés. "Aqui estava ela, a sombra que minha mente preocupada previu, quando lhe implorei para que não partisse, para se atirar nos braços das ondas. Oh, como desejei, uma vez que tu foste, para que tivesses me levado contigo! Teria sido muito melhor. Então, eu não teria o resto da vida para viver sem ti, nem teria morrido separado do teu coração. Se eu conseguir viver e lutar para suportar tudo isso, eu seria mais cruel para mim mesma do que o mar teria sido para comigo mesma. Mas eu não lutarei, não me separarei de ti, meu desafortunado marido. Desta vez pelo menos, permanecerei em tua companhia. Na morte, se um túmulo não quiser nos aceitar, um epitáfio terá; se eu não puder sepultar minhas cinzas com as tuas, meu nome pelo menos, não ficará separado do teu." A sua dor a impedia de falar, sendo continuamente interrompida por lágrimas e soluços.

O dia já amanhecera. Ela foi até a praia, e procurou o lugar onde o vira pela última vez, em sua partida. "Enquanto ele aqui se demorava, e soltava as amarras do barco, ele me deu seu último beijo." E enquanto revia cada objeto, e se esforçava por recordar todos os detalhes, olhando em direção ao mar, ela divisa, flutando na água, algo que não conseguiu reconhecer. A princípio, ficou em dúvida do que seria, mas, pouco a pouco as ondas vão trazendo para mais perto, e era nitidamente o corpo de um homem. Como não soubesse de quem era, embora parecesse ser de algum náufrago, ela ficou profundamente emocionada, e se entregou às lágrimas, dizendo, "Ó não! desventurada, mil vezes desventurada, tua esposa assim seja!" Trazido pelas águas, se aproximava cada vez mais. Quanto mais olhava se aproximar, mais tremia ainda. Até que ela caminha em direção à praia. E agora, sinais que ela reconhece, aparecem. Era o seu marido! Estendendo as mãos trêmulas em direção ao corpo, ela exclama, "Ó, meu querido marido, é assim que retornas para mim?"

Longe da praia, uma barreira havia sido construída, para impedir os assaltos que vinham do mar, e conter a entrada violenta das águas. Ela saltou esta barreira e (seria maravilhoso se o conseguisse) ela voou, e golpeando o ar com asas produzidas naquele momento, ela deslizou pela superfície da água, qual pássaro desditoso. A medida que voava, de sua garganta fluíam sons de grande pesar, a expressar-se na voz de alguém que sofre.

Quando ela tocou o corpo silencioso e sem vida, ela envolveu os braços dele com as asas recém formadas, e tentou beijar-lhe o rosto com seu bico duro de ave[4]. Se Ceix sentiu os beijos, ou se foi apenas a ação das ondas, aqueles que olhavam tiveram dúvida, mas o corpo pareceu ter levantado a cabeça. E de fato ele havia sentido, e pela graça dos deuses misericordiosos ambos foram transformados em pássaros. Acasalam-se e tem seus filhotes. É por isso que, durante sete plácidos dias, no período do inverno, Alcíone permanece sentada, chocando em seu ninho, o qual flutua acima dos mares. Então, o caminho é seguro para os marinheiros. Éolo recolhe os ventos e os impede de perturbarem as profundezas. Durante esse período, o mar fica entregue aos seus netos.

As linhas seguintes do poema "A noiva de Abidos" escrito por Byron parece ter sido emprestado da parte final dese relato, como se não soubéssemos que o autor tirou a ideia na observação do movimento de um corpo que flutua:

"Sacudido inquieto em seu travesseiro,

A cabeça dele levanta com o movimento das ondas,

A mão, onde a vida não mais está presente,

Ligeiramente parece ameaçar,

Arremessando para o alto pela maré que sacode,

E que se acalmam com as ondas ..."

Milton, em seu poema, "Hino da Natividade," se refere à fábula de Alcíone desta maneira:

"Porém, pacífica era a noite

Quando o príncipe da luz

Iniciou seu reino de paz na terra;

Os ventos num silêncio admirável

Beijam suavemente a água

Murmurando alegrias novas para o calmo oceano,

Que agora se esqueceu de delirar

Enquanto pássaros tranquilos chocam sobre ondas encantadoras."

John Keats, também, no "Endimião," diz o seguinte:

"Ó sonho mágico! Ó pássaro consolador

Chocas teu ninho sobre o mar perturbado da imaginação

Até tudo ser silêncio e calma."

Veja também[editar]

Notas e Referências do Tradutor[editar]

  1. Viva a Literatura
  2. Fantastipedia
  3. Traquina, cidade da Tessália.
  4. Alcíone havia se transformado num [[:w:Ganso-patola|ganso].