História das Psicoterapias e da Psicanálise/V/I
1) Por volta de 1923, após quarenta anos de estudo do psiquismo humano, quando pareceria ter amadurecido seu sistema psicanalítico, Freud veio elaborar uma teoria geral da personalidade do homem. Para sua melhor compreensão dividiu-a em três "estâncias" ou compartimentos: o ID, o EGO e o SUPER-EGO, sendo representadas por três círculos concêntricos. No centro estaria localizado o ID, no exterior o SUPER-EGO e no intermediário o EGO.
2) Diz Freud: "Damos ao mais antigo desses compartimentos, estâncias ou classes de processos mentais o nome de ID. Sob a influência da realidade do mundo exterior, uma fração do ID primordial começa a ser conscientizada até formar uma estrutura especial, que vai servir de intermediário entre o ID interior e o mundo exterior. A essa fração do nosso psiquismo damos o nome de EGO. No longo período da infância e adolescência, no qual depende dos pais, dos mestres e dos contatos sociais, vi formar-se, ao lado do EGO uma outra estância particular, que se impõe a seu EGO, prolongando a influência paterna e constituindo-se num terceiro poder, do qual o EGO é obrigado a reconhecer-se devedor. Chamamos a esta terceira estância de SUPER-EGO".
4) ID é o neutro do pronome impessoal latino, expressão que Freud copiou de Nietzsche, e como qualidade impessoal e individualizante, está constituída por uma espécie de reservatório de impulsos caóticos e irracionais, construtivos e destrutivos, não harmonizados entre si ou com a realidade exterior. O ID representa, de uma parte, o núcleo biológico hereditário de reflexos incondicionados e, de outra parte, o formado pelos reflexos incondicionados e, de outra parte, o formado pelos reflexos condicionados, que dão origem aos impulsos, tendências, hábitos, apetências e desejos inconscientes que conhecemos sob o nome de instintos. Envolve os impulsos primitivos da natureza humana, dentre os quais Freud destaca as qualidades raciais herdadas e os instintos construtivo e destrutivo de vida e de morte, Eros e Tânatos, junto com as experiências reprimidas ou recalcadas, por serem demasiado penosas para permanecer na vida consciente.
Ele é dominado pelo princípio do prazer e desprazer, e a satisfação imediata e incondicional de seus impulsos, sem qualquer consideração de oportunidade de tempo ou lugar, conveniência ou desconveniência pessoal ou social. O ID é ativo e dinâmico e sua atividade colocará, muitas vezes, o EGO em perigo de desequilíbrio, diante das barreiras do mundo exterior ou do princípio da realidade. Obrigado a reprimir ou recalcar esses impulsos inconvenientes e irracionais, para o neurótico representa, principalmente, o mundo de seus impulsos recalcados, mesmo que contenha também outros que nunca foram recalcados. O ID, portanto, está integrado pelo mundo do inconsciente, com ou sem recalque.
Para Freud o bebê recém-nascido é essencialmente ID, isto é, massa de impulsos caóticos, sem nenhuma consciência organizadora ou diretora. O bebê pode ser considerado, mais como uma "coisa" que como uma pessoa. é algo impessoal, um indivíduo "coisinha", aquilo... Ainda não possui psiquismo, nem personalidade. Terá que formá-los.
5) Certo que nas crianças muito novas existe a predominância do ID, mas aos poucos aprende a testar a realidade. Começa a saber que existem barreiras que impedem a consecução de seus desejos. Por vezes seus desejos e caprichos provocam castigos ou de alguma forma são impossibilitados. A penosa experiência de cada dia lhes ensinará que o mundo é ingrato e não cede facilmente à satisfação de seus desejos. Isso faz com que, gradualmente, se modifique uma porção desse ID, dele emergindo, lentamente, uma pequena área de consciência e de racionabilidade. Essa modificação dentro do ID, pela qual o mundo exterior se torna consciente, foi denominado por Freud de EGO.
O EGO surge, pois, do marasmo caótico das forças ou impulsos e tensões hereditárias, inconscientes e involuntárias, como princípio integrador e unitário. Primeiro como EGO semi-inconsciente e, logo lentamente, personificando mais e mais todas as operações até chegar à posse da plena consciência. Tomando seu ponto de partida na percepção consciente, a tarefa do EGO é ir submetendo à sua influência setores cada vez mais vastos e camadas sempre mais profundas do ID.
Desde o ponto de vista psicológico a função do EGO é a de elevar os processos do ID ao nível mais alto da racionabilidade e da conveniência, da moralidade e da sociabilidade. Assim como o ID obedece exclusivamente ao princípio do "prazer-desprazer", o EGO é dominado pelo princípio da "realidade" e pela inquietação da segurança ou temor de insegurança. Sua missão é a própria conservação do ID, coisa que este parece negligenciar... Sua tarefa, na opinião de Freud, é o de dirigir e coordenar as exigências do ID, bus-cando satisfazê-las num nível de realidade, mais ou menos aceitável.
As relações entre o ID e o EGO, Freud as comparou à relação entre um cavaleiro e sua montaria. Geralmente o cavaleiro domina e dirige a sua montaria por onde ele quer. Isto acontece quando o cavaleiro é forte e experimentado. Do contrário, a montaria domina o cavaleiro e vai por onde ela quer... No primeiro caso, trata-se de um EGO fortalecido, bem treinado, bem formado, de pessoa normal e sadia, com um ID submisso, disciplinado e obediente; no segundo caso, teremos um ID prepotente, insubmisso, indisciplinado e desobediente, diante de um EGO enfraquecido, imaturo ou dissociado, subdesenvolvido, indeciso e medroso diante da insegurança, quando obrigado a tomar uma decisão consciente e racional, ao ponto de deixar-se arrastar pela imposição do ID.
6) O nascimento do EGO vem da primeira infância, quando os laços emocionais da criança com seus pais são muito intensos, nessa época, o EGO da criança ainda é muito fraco para enfrentar a terrível e monstruosa realidade e para ocupar-se, sozinho, das imperiosas exigências do ID. Como o cavaleiro inexperiente precisa de alguém que lhe ajude a dominar a montaria, assim a criança precisa da ajuda dos pais. As ordens, orientações e proibições dos pais, aplicadas do exterior à criança, são gravadas em sua mente como poderosos focos psíquicos de inibição e de censura, que favorecem ou contrariam os impulsos cegos, maus ou bons, dos instintos. Essas ordens ou proibições formam padrões de comportamento que se introjectam no inconsciente da criança, dando origem ao EGO IDEAL, que ordena e aprova o que deve ser imitado, e ao SUPER-EGO, que proíbe e castiga o que não deve ser feito.
Se o EGO representa a racionabilidade e consciência individual, nascida da experiência individual, o SUPER-EGO representará a racionabilidade e consciência baseada na experiência coletiva. O SUPER-EGO é, pois, uma modificação do EGO fraco ainda para enfrentar os problemas e exigências do ID e da realidade exterior. Enquanto a consciência individual do EGO constitui a ética individual dizendo a mim o que convém e é bom para mim, indivíduo, a consciência coletiva representa a ética coletiva e sócio-política, ensinando-nos o que convém e é bom para a sociedade. Desta forma, o SUPER-EGO nos leva a aceitar os padrões e modos exógenos de comportamento, que passando pelo EGO, numa fase não crítica da infância ou adolescência, infiltram-se e ficam formando parte do ID e continuam a exercer sua influência compulsiva na vida adulta. Incorporando o código sócio-moral da comunidade através dos ensinamentos patrióticos, éticos e religiosos, que são ministrados ao indivíduo, na Igreja, na Escola e na família, o SUPER-EGO, seja desde o consciente ou desde seu inconsciente, torna-se uma instância psíquica das mais poderosas no processo dinâmico do comportamento humano. E tal como concebido por Freud, o SUPER-EGO exerce uma censura tanto mais resistente e mais drástica, quanto mais for inconsciente, e em mais alto grau for investido das energias recalcadas.
Aos olhos de Freud, o EGO vinha a ser como uma pobre criatura submissa a uma tríplice servidão e vivendo sob a ameaça de um tríplice perigo; o mundo externo da terrível realidade, impetuosidade dos instintos do ID e a severidade da censura SUPER-EGO. Formado o exprimido entre essas três forças poderosas, não é estranho que o EGO, em muitíssimas pessoas, desenvolva-se de um modo imaturo, infantilizado, enfraquecido, inseguro e amedrontado, como é o caso da enorme massa dos gregários, e pior ainda, da não menos numerosa dos neuróticos.
7) Em suma, no conceito freudiano, a psicodinâmica estrutural da personalidade depende, principalmente, do poder coordenador de adaptação e ajustamento do EGO sob a ação supervisora da razão consciente e da censura crítica do SUPER-EGO, tentando modelar os impulsos instintivos e cegos, fundamentalmente "maus" e anti-sociais, ajustando-os a padrões de conduta sócio-morais, culturais e religiosos, impostos através da família, da escola e dos contatos sociais.
Exemplificaremos isto com um novo esquema, que completará o esquema freudiano, com alguns novos elementos que ele parece ter esquecido.
é claro que um esquema que pretenda abranger a personalidade integral do homem não pode esquecer aspectos tão diferentes e essenciais como o biológico, o psiquismo e o espiritual ou transcendental. O aspecto pessoal e coletivo, tanto na área inconsciente, consciente e transconsciente, também deve ser posto em relevo, bem como a ação exógena do SUPER-EGO nessas três áreas.
Assim sendo, a estância freudiana do ID deve ser integrada num plano biológico e no outro psíquico, com um inconsciente pessoal e outro coletivo, representando a ação do SUPER-EGO, filtrado nele através do EGO.
Por sua vez, o EGO deve ser integrado pela área do plano psíquico e do plano transcendental filosófico, espiritual e cultural ou artístico, tendo em conta os aspectos do consciente pessoal e coletivo e do transconsciente, também pessoal e coletivo.
O SUPER-EGO abrange também os três planos e os três estados de consciência: o inconsciente, consciente e transconsciente, pois sua ação, representando a experiência coletiva como diretora da experiência pessoal, chega a todas as áreas do comportamento humano.