História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/Dedicatória
O motivo que teve Aristóteles para se divertir da especulação, a que o seu gênio e inclinação natural o levava, como consta da sua Lógica, Física, e Metafísica, e dar-se a escrever livros históricos e morais, quais as suas Éticas epólicas e a história de animais, além de lho mandar o grande Alexandre, e lhe fazer as despesas, foi ver também, que estimava tanto o livro de Homero, em que se contam os feitos heróicos de Achiles, e de outros esforçados guerreiros que, segundo refere Plutarco in vita Alexandre de ordinário o trazia consigo, ou quando o largava da mão o fechava em escritório guarnecido de ouro, e pedras preciosas, melhor peça, que lhe coube dos despojos de Dario, ficando-lhe na mão a chave, que de ninguém a fiava, e com muita razão, porque como diz Túlio, de oratore, os livros históricos são luz da verdade, vida da memória, e mestres da vida; e Diodoro Siculo diz in proemio sui operis, que estes igualam os mancebos na prudência aos velhos, porque o que os velhos alcançam com larga vida e muitos discursos, podem os mancebos alcançar em poucas horas de lição, assentados em suas casas.
Eis aqui a razão por que o grande Alexandre tanto estimava o livro de Homero, e se hoje houvera muitos Alexandres, também houvera muitos Homeros, porque como diz Ovídio
scribentem juvat ipse favor, minuitque laborem:
Cun-ique suo crescens pectore fervet opus.
O favor ajuda o escritor, alivia-lhe o trabalho, anima-o, e dá-lhe fervor a sua obra; porém o que agora vemos é que querendo todos ser estimados, e louvados dos escritores, há mui poucos que os louvem e estimem, e menos que lhes façam as despesas, só temos a V. M. em Portugal que os estima, e favorece tanto como se vê na sua livraria, que quase toda tem ocupada de livros históricos, e principalmente no que fez de louvores dos três historiadores portugueses, Luiz Camões, João de Barros e Diogo do Couto, favor tão grande para escritores de histórias, que se pode dizer, e assim é, que aos mortos da vida, ressuscitando-lhes a memória, que já o tempo lhes tinha sepultada, e aos vivos excita, dá ânimo e fervor, para que saiam à luz com seus escritos, e folgue cada um de contar, e compor sua história. Este foi o motivo que tive, para sair com esta do Brasil, junto com V. M. ma querer fazer de tomar a impressão à sua custa para em tudo se parecer com Alexandre. Outro tive, que foi pedir-mo Vossa Mercê, e pelo conseguinte mandar-mo, pois os rogos dos senhores tem força de preceitos. Glos. ï l unica, et in L. I. ff., quod jussu, donde é aquele verso
Est rogare ducum species violenta jubendi.
E assim foi este de tanta força, que não só incitei a um amigo que a mesma história compusesse em verso, de sorte que pudesse dizer o que disse Santo Agostinho ao Santo bispo Simpliciano, que havendo-lhe pedido um tratado breve em declaração de certas dificuldades lhe ofereceu dois livros inteiros, desculpando-se, ainda, com ser a letra tanta, que pudera causar fastio, de não satisfazer que lhe foi pedido, conforme ao desejo do suplicante; são suas palavras as que se seguem:
Vereor ne ista, quae sunt a me dicta, et non satisfecerint expectationi et taedio fuerint gmavitati tuae, quandoquidem et tu ex omnibus, quae interrogati unum a me libellum misti veles, ego duos libros, eosdemque longissimos misi, et fortasse quaistionibus nequaquam expedite diligenter respondi. Aug. Lb. 2 º quaistion. ad Simplic.
Desta maneira havendo-me Vossa Mercê pedido um tratado das coisas do Brasil, lhe ofereço dois, leitura, que pudera causar fastio, se o diverso método a não variara, e dera apetite, e contudo receio de não satisfazer curiosidade de Vossa Mercê, segundo sei, que gosta desta iguaria. Donde tomei também motivo para a dedicar a Vossa Mercê e não a outrem, lembrando-me que por dar Jacó a Isac seu pai uma de que gostava alcançou a bênção como a mãe lho havia certificado, dizendo:
Nuncergo, fihi mi, acquiesce consiliis meis: et mihi duos hcedos ut faciam ex eis escas patri tuo, quibus libentar vescituri quas cum intulenis, et comedenit bençdicat tibi.
Bem enxergou o santo velho, ainda que cego, que Jacob o enganava, pois o conheceu pela voz. Vere quidem voz Jacob, est; mas levado do gosto da iguaria a que era afeiçoado depois da inspiração do céu lhe concedeu a bênção, esta peço eu a Vossa Mercê, e com ela não tenho que temer a maldizentes. Nosso Senhor, vida, saúde, e estado conserve e aumente a Vossa Mercê, como os seus lhe desejamos.
Bahia, 20 de dezembro de 1627.
Servo de Vossa Mercê
FREI VICENTE DO SALVADOR.